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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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+ brasil 503 d.C.

Sobre o juízo político


por José Arthur Giannotti

Estamos assistindo às mais variadas negociações para formar o novo governo, à retomada do rolo compressor do Executivo sobre o Legislativo, a surpreendentes mudanças de posições e de discurso dos grupos partidários e ao duro ajustamento do sonho à realidade -o que não implica, obviamente, que essa realidade não possa vir a ser aproximada do sonho. Visto que cada negociação se resolve numa trama de juízos e compromissos, este me parece um momento propício para refletir sobre as peculiaridades formais do juízo político. Vale a pena, pois, perguntar como, em política, um programa, uma declaração, a formulação de um juízo, em suma, se relaciona com os compromissos assumidos e com as vicissitudes necessárias à sua implementação. Como o dito se relaciona com a prática? Pergunta indiscreta para aqueles que sempre acreditaram que qualquer obstáculo seria vencido pela "vontade política" ou ainda para aqueles que consideram um mesmo ato -uma aliança com o adversário, por exemplo- adquirindo sentido radicalmente diferente porque se processa agora de seu ponto de vista; a radicalidade imaginada tinge de radical o que outros fazem de uma perspectiva conservadora. Como não creio que mereçam indulgência preventiva, cabe refletir sobre as diferenças entre as propostas e os feitos. Tomemos como ponto de partida uma negociação entre A, partido de um novo governo, e B, partido que se dividiu durante o processo eleitoral, uma fração apoiando A, e outra, o candidato oposicionista. A trata legitimamente de agregar forças políticas para obter maioria estável no Congresso nacional. Pelo acordo, A cede postos no novo governo e B se compromete a votar a favor das propostas que aquele envia ao Congresso. A cuida, pois, de limitar o âmbito de deliberação de B, que aceita essa limitação em troca de posições estratégicas na máquina do governo. Qual é o sentido desse estreitamento do campo da deliberação? Sabe-se que, no ideal, uma democracia consiste numa forma de governo cujos membros são eleitos periodicamente e que deliberam entre si até chegar ao consenso ou a uma decisão pela maioria. Muitos, supondo que o ideal do consenso possa ser postulado como se progressivamente atingisse seu limite sem solução de continuidade, tomam essa regra da maioria como expediente para abreviar uma discussão que, se prolongada, bloquearia a ação. No entanto, mais do que saltar etapas, a regra não terminaria por acionar um poder não deliberante, isto é, uma capacidade de fazer com que o outro se comporte de acordo com a vontade alheia? Sabe-se ainda que a força exercida pelo Estado ao implementar uma decisão tomada pela maioria é dita legítima na medida em que se chega a ela em obediência a um ordenamento jurídico vigente. Mas a legitimidade da decisão expurga dela qualquer núcleo de poder que resistisse à depuração pelo discurso? Tudo depende de como se pensa esse condicionamento, essa determinação recíproca entre norma e força. Nada valeria uma lei votada pela maioria se esta não dispusesse de poder para obrigar a minoria a segui-la, isto é, a não se afastar do parâmetro estabelecido. Esse afastamento, porém, sempre nasceria da vontade de não seguir a regra ou poderia resultar da própria vontade de segui-la?


Nunca é possível assegurar que todos os membros de um grupo estão entendendo rigorosamente a mesma regra que estão votando; essa defasagem não caracterizaria o jogo político?



Diferenças de entendimento
Nunca é possível saber absolutamente como o outro está seguindo uma regra, se apenas está pensando que age em cumprimento dela, embora aja criando diferenciais de inadequação. Depois de ensinar a um menino a regra para enumerar os números pares, ele diz "já sei!", e conta "dois, quatro, seis" e assim por diante. Mas nada o impede de dizer, depois de "mil", "dois mil, quatro mil" etc. Somente a ação vai mostrar se havia uma diferença de entendimento entre a regra pensada por mim e a regra apreendida por ele. Desse modo, nunca é possível assegurar que todos os membros de um grupo estão entendendo rigorosamente a mesma regra que estão votando. Essa defasagem não caracterizaria o jogo político, que teria, como uma de suas funções, a tarefa de cobrir a fissura entre a regra e o caso precisamente por uma força institucionalizada? Não se deve pressupor que o não cumprimento de uma lei votada sempre tenha origem na vontade de não acatá-la? Não poderia resultar, algumas vezes, do desejo de cumpri-la? Excluída a má-fé, não é isso que pode acontecer no acordo político? Nesse plano, como funciona a legitimidade?
Essa fissura entre o enunciado da norma e seu seguimento se amplia quando dois grupos -no caso mais simples, ambos perseguindo o mesmo fim por meios diferentes- passam a julgar como um julga o modo como o outro entende a norma e os meios para fazer com que ela se imponha. Ocorrendo o julgamento de um julgamento, essa mesma norma passa a ser mediada pela dupla capacidade de julgar e implementar o julgado, o que coloca a norma sob diferentes focos de luz, alterando por conseguinte seu sentido. Desse ponto de vista, uma norma que a maioria partidária faz valer para todos seria inócua se esta não possuísse os meios de poder bruto necessários para sanar as diferenças de interpretação, por conseguinte, aquelas diferenças de comportamento que nascem dessa diversidade dos pontos de vista. Mais do que pressupor que o acordo se teceria no limite do processo de discussão, as negociações intra ou interpartidárias -obviamente no plano abstrato que exclui a má-fé e a dissimulação- contam com a posse efetiva de cargos e benesses (de poder), cuja manipulação lança uma ponte entre as interpretações e as condutas divergentes.
Voltemos ao nosso esquema de negociação. Vimos que A, quando acena para que B participe do governo, espera que esse grupo aprove sem deliberação as propostas enviadas ao Congresso. Justifica-se que B, no governo, teria a oportunidade de discuti-las antes de sua apresentação. Mas, de fato, por causa da divisão do trabalho entre ministérios e secretarias, isso não acontece; no máximo, a discussão se faz nas reuniões ministeriais para deliberar sobre linhas gerais de atuação. No fundo, ambas as partes terminam concordando em restringir o âmbito das deliberações possíveis e a capacidade de cada uma julgar publicamente os juízos da outra, porque cuidam antes de tudo de sobreviver politicamente. A sobrevivência do grupo lhe é mais importante do que a formulação de seus ideais. Visto que tudo se passa como se as pessoas se aglutinassem em torno de uma idéia fundamental cujas formulações variam no tempo, a existência do grupo, na medida em que esta condiciona à realização do ideal, vem a ser mais importante do que a formulação passageira dele. Algumas vezes o acordo se tece, sem dúvida, para realizar um objetivo previamente definido, como se forças se somassem para assaltar uma cidade, mas há outras que deliberadamente restringem o espaço das críticas mútuas, desde que a parte governista ceda à outra aquele poder proveniente da ocupação de cargos e distribuição de benefícios.

Representação sem fissura
Desse modo, o acordo só interessa se houver, de ambos os lados, um equilíbrio entre os constrangimentos à deliberação e a cessão ou o ganho de poder. No entanto, não são os partidos que fazem o acordo, mas seus representantes. Estes, ao julgá-lo equilibrado e politicamente conveniente, assumem compromissos que tanto eles como seus representados devem cumprir. Em resumo, cada negociador assume que o novo parceiro, assim como as pessoas que ele representa, formulem e pratiquem o mesmo julgamento. Os representados, porém, podem considerar o acordo desigual. A possibilidade desse desentendimento torna-se maior quando se considera que o representante, em vez de ser escolhido pela maioria de seus representados, tenha sido legitimamente indicado por seu superior eleito. No nível da negociação, ele só pode agir como se não houvesse diferenças entre si próprio e seus representados. É de notar a dificuldade. O representante só pode sentar-se à mesa se acreditar que representa sem fissura a vontade de seus representados, mas isso, em política, quase sempre não é o caso. Os juízos entre os negociadores se firmam como se os representados já tivessem deliberado e julgado. Como isso dificilmente acontece, sendo-lhes atribuído o mandato para caminhar numa determinada direção, cada negociador, sem especificar os casos, precisa ou apostar que seus representados acolherão os termos do acordo, ou apoiar-se em empecilhos institucionais. Se ganhar essa aposta, soma mais poder para si o que incomoda os seus adversários. Estes são motivados a encontrar diferenças de interpretação entre o que foi mandado e o que foi acordado, de sorte que o julgamento do julgamento dos pares abre no partido uma clareira de disputa pelo poder, a qual é impossível de ser dirimida pelo discurso, já que nasce das indeterminações provenientes do funcionamento desse mesmo discurso. O nível de desentendimento interno pode levar à ruptura do acordo, o representante sendo obrigado a recuar, a desdizer o que foi dito, por conseguinte, a comprometer-se moral e politicamente. Sua palavra perde valor e, com isso, diminui seu capital político. Por isso lhe interessa a segunda solução: o debate é evitado em nome da sobrevivência das instituições, de regras congeladas em hábitos que têm servido à tomada, vale dizer, do poder de impor porque é assim que tem acontecido.


A representação indireta é a primeira a introduzir entre o ideal e a prática o interesse do grupo representante, quebrando a inteireza da vontade geral


Moral e política
Esse modelo já me serve para tirar três lições. Em primeiro lugar, percebe-se mais uma vez como são complicadas as relações entre moral e política. Ainda que se pressuponha que uma associação política se reporte a um mesmo sistema ético, não é por isso que todos os seus membros o seguem da mesma maneira. Basta introduzir a cesura entre o representante e o representado para que este possa invocar compromissos éticos mais fortes do que aqueles assumidos pelo representante. No final das contas, como este ousou assumir tal acordo, quando outros assumiram com o eleitorado compromissos mais amplos? Cada grupo interpreta diferentemente esses compromissos. Misturando-se interpretação e interesse, cada um salienta aspectos diferentes quer no acordo interpartidário, quer naqueles outros responsáveis pelo equilíbrio instável entre as facções.

Ajuizamento e interesse
Compreende-se por que é tradição da esquerda, cujo ideal de transparência pensa o poder como se resultasse da divisão do trabalho e da alienação correspondente -portanto, como algo a ser superado- , desconfiar dos processos representativos indiretos. A representação indireta é a primeira a introduzir entre o ideal e a prática o interesse do grupo representante, quebrando a inteireza da vontade geral. Ela converte a política num jogo em que a deliberação somente vem a ser efetiva se apaziguar interesses dos representados e dos representantes, legitimados contudo pela ilusão de que a deliberação sempre seria possível em qualquer nível. Na política existe uma determinação recíproca entre ajuizamento e interesse, sem que um deles seja a causa do outro. Essa determinação se põe de tal maneira que este vem a ser condição necessária da efetivação daquele e vice-versa, o que leva o processo para além do mero discurso deliberativo e da mera formatação discursiva do interesse. Compreende-se ainda por que o pensamento liberal da direita tende a pensar a política a partir do modelo das escolhas racionais, quando tais escolhas não se reformulam em vista das indeterminações dos procedimentos de implementação. Mas a crítica do pensamento da esquerda e da direita vai além dos propósitos deste artigo. Em segundo lugar, fica claro que, muitas vezes, o poder legítimo não provém unicamente da deliberação real ou virtual, mas de um equilíbrio entre interesse e deliberação, de tal modo que o espaço da deliberação cresce quando diminui o poder de certos grupos e vice-versa. Mas nada justifica jogar para o limite essas tendências, quer considerando a política do ponto de vista normativo, como se, na sua essência, ela se resolvesse no processo deliberativo; quer a reduzindo ao mero jogo de interesses, sendo que o discurso nada mais seria que a expressão distorcida de interesses. Os enganos, a meu ver, provêm de tomar o jogo de linguagem em que a deliberação e o interesse se complementam e, levando um dos termos da oposição até seu limite, considerar todo o processo como se derivasse apenas de um de seus pólos.

A metáfora do piano
Se a política só vem a ser no jogo dessa oposição, convém ter presente que nunca poderá ser entendida se for pensada como se derivasse de uma estrutura normativa a priori, quer do travejamento da moral, quer das condições pragmáticas do discurso, quer das condições necessárias para que se estabeleça uma sociedade justa e equitativa. Em contrapartida, pensá-la nesse jogo da deliberação e do interesse implica conferir-lhe uma regularidade que afeta o comportamento de seus agentes, mas igualmente rupturas inventivas ou destrutivas, cujas determinações possíveis têm nessas regularidades apenas o contexto de suas realizações.
Essas determinações enquadram a ação sem causá-la, funcionam como os limites impostos pelo piano às músicas que nele serão tocadas. Desse modo, o jogo da política, vindo a ser conhecimento e arte, não possui um lado inventivo operando em suas zonas de indefinição, uma capacidade de colocar em xeque seus próprios fundamentos? Esse seu lado, além do mais, não escapa ao pensamento estritamente científico?
Finalmente convém notar que a aposta na democracia representativa -e não vejo como apostar na democracia direta nas condições atuais de complexidade do mundo contemporâneo- implica reconhecer o interesse de cada grupo representante na sua própria sobrevivência. Os representantes desapareceriam se não fossem mais do que vigários dos representados. No entanto, isso não torna urgente refinar as instituições capazes de regular suas liberdades? Não é graças ao reforço das instituições que a democracia pode crescer? Se todos os conflitos se resolvessem pelo diálogo, a política seria desnecessária.

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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