UOL


São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Revista portuguesa "Colóquio/Letras" dedica edição especial à obra do poeta pernambucano (1920-1999)

As paisagens de João Cabral

Eder Chiodetto/Folha Imagem
O poeta João Cabral em sua casa no Rio


Alcir Pécora
especial para a Folha

Paisagem Tipográfica", número especial (157/158) da revista trimestral portuguesa "Colóquio/ Letras" dedicado a João Cabral de Melo Neto, é de tirar o chapéu. Tudo nele é feito com talento e profissionalismo: da bela capa à consistência da escolha dos artigos; da qualidade das ilustrações, com destaque para as de Tiago Manuel, aos documentos apresentados; da qualidade do papel e da impressão ao rigor da revisão. É chato dizer -mas como não dizer, quando é impossível não pensar?-, mas não há nada nem próximo disso no Brasil. Claro que algo de tal calibre só pode ser produzido com dinheiro investido a fundo perdido, sem a consideração de que o investimento cultural necessite de alguma justificativa econômica, isto sim, impensável no deserto mental da elite caubói.

Revista literária
As virtudes que referi, contudo, não são exclusivas desse número, mas extensivas ao padrão notável da revista. Como não é suficientemente conhecida no Brasil, permito-me aqui dar algumas informações a seu respeito. A "Colóquio/Letras", editada em Lisboa pela Fundação Calouste Gulbenkian, nasceu de uma divisão da antiga "Colóquio - Revista de Artes e Letras", que existiu de 1959 a 1970. Além daquela, apareceu então a "Colóquio/Artes", cuja publicação foi interrompida em 1996, sendo José-Augusto França seu último diretor. Já os primeiros diretores da "Colóquio/ Letras" foram Hernâni Cidade e Jacinto do Prado Coelho, que tiveram importantes atividades acadêmicas também no Brasil. De 1984 a 1996, David Mourão-Ferreira ocupou a direção da revista. A partir daí, Joana Varela, que era então sua diretora-adjunta, assumiu o cargo principal, que mantém até hoje. Abel Barros Baptista, um dos principais nomes da crítica portuguesa mais recente, cujos estudos a respeito de Machado de Assis serão lançados no Brasil, a auxilia na empreitada. Segundo escreve, a revista passou por um assinalável processo de reforma, iniciado em 1988, mas manteve a estrutura básica definida em 1971, bem como os princípios que a nortearam. Para saber quais sejam, cito o editorial do primeiro número, que a define como "uma revista especificamente literária -com textos de poesia e ficção, mas, na maior parte, destinada ao estudo da literatura de modo não puramente erudito, não polêmico, não meramente divulgativo, antes serenamente reflexivo, problemático, ensaístico"; e o que é decisivo para a permanência de sua qualidade: "Sem dependência de escolas, de sectarismos ou de proselitismos". Tal disposição de crítica serena e abrangente está assegurada neste número a respeito de Cabral, que é também o primeiro a ser dedicado, todo ele, a um autor brasileiro, ressalvado o número 149/150, de 1998, que foi dividido entre dois modernistas de Portugal e do Brasil: Almada Negreiros e Mário de Andrade. Os mais conhecidos intérpretes da obra de Cabral estão reunidos na revista, alguns deles representados pelos artigos historicamente mais importantes que escreveram a respeito do poeta. É o caso do texto "Poesia ao Norte", de Antonio Candido, publicado em 1943, no jornal "Folha da Manhã" (atual Folha), a propósito de "Pedra do Sono", no qual acentua os aspectos do "rigor construtivista" do poeta, traduzido sobretudo pela presença de "imagens materiais" e "objetos precisos" a organizar os poemas.

Obsessão da textura material
É também o da resenha escrita por Óscar Lopes no jornal "Comércio do Porto", em 1963, por ocasião do lançamento em Portugal da antologia "Poemas Escolhidos", com seleção de Alexandre O'Neill. Este, aliás, também comparece no presente número com o poema de abertura, "Saudação a João Cabral de Melo Neto", no qual tematiza as diferenças significativas entre as suas poéticas. Quanto a Óscar, anota na poesia de Cabral a "obsessão da textura material das coisas", que supõe traduzir uma espécie de "nova maneira do antigo ascetismo, que buscava no deserto as imagens da eternidade" e não nas coisas profundas, no sentimento, no psicologismo ou na especulação.

Linhagem
De valor documental, há ainda dois textos. Um, de Haroldo de Campos, a propósito das relações entre Cabral e os poetas concretos paulistas, no qual ratifica a presença dele numa "linhagem de poetas-inventores, voltados para a materialidade do signo linguístico", que julga iniciar-se com Oswald de Andrade, passar por Drummond -"o da primeira fase, de poemas insólitos"- e transitar por Murilo Mendes, antes de se deparar com o pernambucano. Outro, o de sua última mulher, Marly de Oliveira, que refere suas leituras favoritas e o recrudescimento da depressão após a degenerescência da vista.
Entre os documentos, destacam-se ainda os que são publicados pela primeira vez, como o plano elaborado por Cabral para "A Educação pela Pedra", de 1966, que demonstra o cuidado do autor em relação à arquitetura do livro, e um conjunto de sete cartas que escreveu para Clarice Lispector, quatro delas ao final dos anos 40; outras três, ao final dos 50. Dentre elas, chama a atenção a sua insistência para que Clarice lhe envie, para fazer parte da série que vinha publicando com sua impressora manual, certo livro de"poemas", "O Coro dos Anjos", ainda hoje não identificado. No tocante aos artigos críticos recolhidos, talvez seja possível apresentá-los sucintamente por meio do traçado de uma linha imaginária entre eles, que, entretanto, na revista não há, nem deve haver. De um lado desta linha estão os artigos que fornecem uma amostra representativa do que se escreveu de mais convincente e reconhecido a respeito da poesia de Cabral: por exemplo, os de Benedito Nunes, Luiz Costa Lima e João Alexandre Barbosa, entre outros. Poderia incluir aí também o artigo de Antonio Carlos Secchin, mas este é, a meu ver, estratégico no volume. Ele tanto pertence ao primeiro grupo quanto introduz o segundo: o dos artigos que já se ressentem dos vários truísmos constituídos a respeito da obra de Cabral, vale dizer, das unanimidades críticas a que ele mesmo deu ensejo e aval, seja ao formular ensaisticamente suas teses poéticas, seja ao fazer das prescrições o principal assunto da sua poesia.

Lugares-comuns
O movimento desse segundo grupo não é o de negar os lugares-comuns já bem sedimentados e tornados quase imbatíveis em sua capacidade explicativa, como o proverbial rigor construtivista e prescritivo; o horror à musica, ao excesso, ao sentimental e à eloquência; a economia de meios; o amor das "coisas"; a metaforização visualizante; a poética da faca e da exiguidade como representação da penúria do sertão; as articulações sociais e sexuais entre o Nordeste e a Andaluzia etc. O que esses artigos notam, todavia, é que tudo o que a crítica disse parece dar certo demais para a poesia de Cabral e, a ser assim, a própria poesia, suficientemente explicada, não fica imune ao déjà vu da crítica. Antevendo o empobrecimento da poesia pela unanimidade a seu respeito, tentam rever alguns desses lugares dominantes, encontrando, por exemplo, o impreciso e até o sentimento, antes banido, deixando que se insinuem, agora, traços distintos ou mesmo opostos aos constantes no programa do poeta.

Paradoxos teóricos
Nessa direção, há alguns artigos, como os de Marta Peixoto, Rosa Maria Martelo, Maria Andresen, mas sobretudo o que fecha o volume, de Abel Barros Baptista. Tomando por base "O Hospital da Caatinga", este levanta a hipótese de que o poema tematiza a própria "impossibilidade de deduzir uma construção poética de um princípio hermenêutico". Eis aí o nó da questão: ao mostrar que a teoria que parece ser de Cabral, ou dar certo demais em relação a sua obra, é impotente para determinar o poema que gera, Abel quer devolver a obra poética de Cabral à liberdade do que não se pode dizer. É uma hipótese brilhante. Mas, convenhamos, um tantinho otimista.


Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).

Onde encomendar:
A revista "Colóquio/Letras", da Fundação Calouste Gulbenkian, pode ser encomendada, em SP, à livraria Fnac (tel. 0/xx/ 11/3097-0022) e, no Rio, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/3641-0991).



Texto Anterior: + política: Liberalismo no front
Próximo Texto: + livros: A crítica e a causa das desavenças
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.