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Revista portuguesa "Colóquio/Letras" dedica edição especial à obra do poeta pernambucano (1920-1999)
As paisagens de João Cabral
Eder Chiodetto/Folha Imagem
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O poeta João Cabral em sua casa no Rio |
Alcir Pécora
especial para a Folha
Paisagem Tipográfica", número especial (157/158) da revista trimestral portuguesa "Colóquio/ Letras" dedicado a João Cabral de
Melo Neto, é de tirar o chapéu. Tudo nele
é feito com talento e profissionalismo: da
bela capa à consistência da escolha dos
artigos; da qualidade das ilustrações,
com destaque para as de Tiago Manuel,
aos documentos apresentados; da qualidade do papel e da impressão ao rigor da
revisão. É chato dizer -mas como não
dizer, quando é impossível não pensar?-, mas não há nada nem próximo
disso no Brasil. Claro que algo de tal calibre só pode ser produzido com dinheiro
investido a fundo perdido, sem a consideração de que o investimento cultural
necessite de alguma justificativa econômica, isto sim, impensável no deserto
mental da elite caubói.
Revista literária
As virtudes que
referi, contudo, não são exclusivas desse
número, mas extensivas ao padrão notável da revista. Como não é suficientemente conhecida no Brasil, permito-me
aqui dar algumas informações a seu respeito. A "Colóquio/Letras", editada em
Lisboa pela Fundação Calouste Gulbenkian, nasceu de uma divisão da antiga
"Colóquio - Revista de Artes e Letras",
que existiu de 1959 a 1970. Além daquela,
apareceu então a "Colóquio/Artes", cuja
publicação foi interrompida em 1996,
sendo José-Augusto França seu último
diretor. Já os primeiros diretores da "Colóquio/ Letras" foram Hernâni Cidade e
Jacinto do Prado Coelho, que tiveram
importantes atividades acadêmicas também no Brasil. De 1984 a 1996, David
Mourão-Ferreira ocupou a direção da
revista. A partir daí, Joana Varela, que
era então sua diretora-adjunta, assumiu
o cargo principal, que mantém até hoje.
Abel Barros Baptista, um dos principais
nomes da crítica portuguesa mais recente, cujos estudos a respeito de Machado
de Assis serão lançados no Brasil, a auxilia na empreitada.
Segundo escreve, a revista passou por
um assinalável processo de reforma, iniciado em 1988, mas manteve a estrutura
básica definida em 1971, bem como os
princípios que a nortearam. Para saber
quais sejam, cito o editorial do primeiro
número, que a define como "uma revista
especificamente literária -com textos
de poesia e ficção, mas, na maior parte,
destinada ao estudo da literatura de modo não puramente erudito, não polêmico, não meramente divulgativo, antes serenamente reflexivo, problemático, ensaístico"; e o que é decisivo para a permanência de sua qualidade: "Sem dependência de escolas, de sectarismos ou
de proselitismos".
Tal disposição de crítica serena e
abrangente está assegurada neste número a respeito de Cabral, que é também o
primeiro a ser dedicado, todo ele, a um
autor brasileiro, ressalvado o número
149/150, de 1998, que foi dividido entre
dois modernistas de Portugal e do Brasil:
Almada Negreiros e Mário de Andrade.
Os mais conhecidos intérpretes da obra
de Cabral estão reunidos na revista, alguns deles representados pelos artigos
historicamente mais importantes que escreveram a respeito do poeta. É o caso do
texto "Poesia ao Norte", de Antonio
Candido, publicado em 1943, no jornal
"Folha da Manhã" (atual Folha), a propósito de "Pedra do Sono", no qual acentua os aspectos do "rigor construtivista"
do poeta, traduzido sobretudo pela presença de "imagens materiais" e "objetos
precisos" a organizar os poemas.
Obsessão da textura material
É também o da resenha escrita por Óscar
Lopes no jornal "Comércio do Porto",
em 1963, por ocasião do lançamento em
Portugal da antologia "Poemas Escolhidos", com seleção de Alexandre O'Neill.
Este, aliás, também comparece no presente número com o poema de abertura,
"Saudação a João Cabral de Melo Neto",
no qual tematiza as diferenças significativas entre as suas poéticas. Quanto a Óscar, anota na poesia de Cabral a "obsessão da textura material das coisas", que
supõe traduzir uma espécie de "nova
maneira do antigo ascetismo, que buscava no deserto as imagens da eternidade"
e não nas coisas profundas, no sentimento, no psicologismo ou na especulação.
Linhagem
De valor documental, há
ainda dois textos. Um, de Haroldo de
Campos, a propósito das relações entre
Cabral e os poetas concretos paulistas,
no qual ratifica a presença dele numa "linhagem de poetas-inventores, voltados
para a materialidade do signo linguístico", que julga iniciar-se com Oswald de
Andrade, passar por Drummond -"o
da primeira fase, de poemas insólitos"-
e transitar por Murilo Mendes, antes de
se deparar com o pernambucano. Outro,
o de sua última mulher, Marly de Oliveira, que refere suas leituras favoritas e o recrudescimento da depressão após a
degenerescência da vista.
Entre os documentos, destacam-se
ainda os que são publicados pela primeira vez, como o plano elaborado por Cabral para "A Educação pela Pedra", de
1966, que demonstra o cuidado do autor
em relação à arquitetura do livro, e um
conjunto de sete cartas que escreveu para Clarice Lispector, quatro delas ao final
dos anos 40; outras três, ao final dos 50.
Dentre elas, chama a atenção a sua insistência para que Clarice lhe envie, para fazer parte da série que vinha publicando
com sua impressora manual, certo livro de"poemas", "O Coro dos
Anjos", ainda hoje não identificado.
No tocante aos artigos críticos recolhidos, talvez seja possível apresentá-los sucintamente por meio do traçado de uma
linha imaginária entre eles, que, entretanto, na revista não há, nem deve haver.
De um lado desta linha estão os artigos
que fornecem uma amostra representativa do que se escreveu de mais convincente e reconhecido a respeito da poesia
de Cabral: por exemplo, os de Benedito
Nunes, Luiz Costa Lima e João Alexandre Barbosa, entre outros. Poderia incluir aí também o artigo de Antonio Carlos Secchin, mas este é, a meu ver, estratégico no volume. Ele tanto pertence ao
primeiro grupo quanto introduz o segundo: o dos artigos que já se ressentem
dos vários truísmos constituídos a respeito da obra de Cabral, vale dizer, das
unanimidades críticas a que ele mesmo
deu ensejo e aval, seja ao formular ensaisticamente suas teses poéticas, seja ao
fazer das prescrições o principal assunto
da sua poesia.
Lugares-comuns
O movimento
desse segundo grupo não é o de negar os
lugares-comuns já bem sedimentados e
tornados quase imbatíveis em sua capacidade explicativa, como o proverbial rigor construtivista e prescritivo; o horror
à musica, ao excesso, ao sentimental e à
eloquência; a economia de meios; o
amor das "coisas"; a metaforização visualizante; a poética da faca e da exiguidade como representação da penúria do
sertão; as articulações sociais e sexuais
entre o Nordeste e a Andaluzia etc. O que
esses artigos notam, todavia, é que tudo
o que a crítica disse parece dar certo demais para a poesia de Cabral e, a ser assim, a própria poesia, suficientemente
explicada, não fica imune ao déjà vu da
crítica. Antevendo o empobrecimento
da poesia pela unanimidade a seu respeito, tentam rever alguns desses lugares
dominantes, encontrando, por exemplo,
o impreciso e até o sentimento, antes banido, deixando que se insinuem, agora,
traços distintos ou mesmo opostos aos
constantes no programa do poeta.
Paradoxos teóricos
Nessa direção,
há alguns artigos, como os de Marta Peixoto, Rosa Maria Martelo, Maria Andresen, mas sobretudo o que fecha o volume, de Abel Barros Baptista. Tomando
por base "O Hospital da Caatinga", este
levanta a hipótese de que o poema tematiza a própria "impossibilidade de deduzir uma construção poética de um princípio hermenêutico". Eis aí o nó da questão: ao mostrar que a teoria que parece
ser de Cabral, ou dar certo demais em relação a sua obra, é impotente para determinar o poema que gera, Abel quer devolver a obra poética de Cabral à liberdade do que não se pode dizer. É uma hipótese brilhante. Mas, convenhamos, um
tantinho otimista.
Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do Sacramento"
(Edusp/Editora da Unicamp).
Onde encomendar:
A revista "Colóquio/Letras", da Fundação Calouste Gulbenkian, pode ser encomendada, em SP, à livraria Fnac (tel. 0/xx/ 11/3097-0022) e, no Rio, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/3641-0991).
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