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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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Ponto de fuga

O vampiro e o sultão

Reprodução
À esquerda, "Nu Rosa" (1935), tela de Henri Matisse; à direita, "Nu Deitado" (1942), reconstrução cubista que Pablo Picasso fez da obra


Jorge Coli
especial para a Folha

Picasso e Matisse, os grandes rivais. Quando os dois eram vivos, galerias, marchands, críticos, mostras atiçaram a oposição. Matisse, o sereno, o voluptuoso, o hedonista que amava o luxo das cores e a fluência das curvas femininas. Picasso, o inquieto, o insaciável, o brutal, que pintava a sexualidade como um estupro. Matisse, o reflexivo, o artesão que construía imagens com lentidão pensada. Picasso, o inspirado, o possuído que inventava quadros em transes e acessos. Matisse, o burguês indiferente; Picasso, o militante comunista. São contrastes verdadeiros, que o paralelismo das duas carreiras exasperou. Havia entre ambas, no entanto, cruzamentos sub-reptícios, estímulos e emulações, fascínios e cumplicidades. "Tudo o que Matisse e eu fizemos", disse Picasso, "deveria ser posto lado a lado algum dia. Nunca ninguém olhou a pintura de Matisse melhor do que eu. E ele a minha". A mais completa exposição sobre esse duplo percurso foi enfim realizada. Esteve em Londres, primeiro; encerrou-se há pouco em Paris; abre-se agora, dia 13, em Nova York. É um esplendor. É também a melhor prova de que, para compreender as artes, nada substitui a experiência da comparação, que faz ir além da linguagem, da palavra, do conceito. A mostra revela formas ou soluções que, de um artista ao outro, se transferem e se transmutam. Uma obra de Picasso, uma obra de Matisse e, entre elas, aquilo que é invisível aos olhos, mas muito claro para o espírito.

Transfusões - "Vi Picasso chegar com uma jovem muito bonita. Ele foi caloroso ao extremo. Prometeu voltar para me contar um monte de coisas. Não voltou. Tinha visto o que queria: meus recortes de papel, meus novos quadros (...) Isso vai fermentar no seu espírito, em seu benefício. Ele não precisa de mais nada." Esta passagem de Matisse, escrita em 1945, indica o sentido mais profundo contido na célebre afirmação de Picasso: "Eu não procuro, acho". É uma gênese criadora que não parte nunca de uma busca interior, nem persegue novas soluções formais. Em vez disso, Picasso capta descobertas ou sugestões vindas de outros artistas para modificá-las e, muitas vezes, levá-las a uma direção extrema, inesperada. Não é um desbravador; nele opera-se uma síntese intuitiva e fulgurante, a partir do observado. Tudo o que apreende se transforma em Picasso. Vem daí seu incessante retomar de obras produzidas pelos mestres do passado, como Goya, Velázquez, Ingres ou Delacroix. Poucos dias depois da morte de Matisse, em 1954, Picasso começou a trabalhar em sua série de variações sobre as "Mulheres da Argélia", de Delacroix. Era um tema caro a Matisse, que o retomara nos anos de 1920, com suas "Odaliscas". "Matisse me deixou suas "Odaliscas" em herança", disse Picasso.

Frases de Matisse - 1ª) "Encaixem as partes umas nas outras e construam a figura como um carpinteiro constrói uma casa. Tudo deve ser construído -composto por partes que formam um todo: uma árvore como um corpo humano, um corpo humano como uma catedral." 2ª) "Eu poderia me contentar com uma obra feita no primeiro gesto, mas ela me cansaria logo, e eu prefiro retocá-la para poder reconhecê-la, mais tarde, como uma representação de meu espírito." 3ª) "Apenas o todo é nosso ideal." 4ª) "Se eu não fizesse o que faço, gostaria de pintar como Picasso."

Frases de Picasso - 1ª) "Todo mundo sabe que uma superfície branca parecerá sempre maior que uma superfície negra de mesma dimensão. É elementar, é mesmo pueril. No entanto, isso não impede os imbecis de quererem deduzir daí, imediatamente, leis e regras gerais, para virem me explicar a arte de pintar. Para mim, um quadro nunca é um fim, nem uma conclusão, mas antes um acaso feliz e uma experiência." 2ª) "Um quadro é um assunto. Ninguém mais ousa dizer isso." 3ª) "Dou, arranco, torço e mato; atravesso, incendeio e queimo." 4ª) "Se eu não fizesse o que faço, gostaria de pintar como Matisse."


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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