São Paulo, domingo, 09 de março de 2008

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Telas pensantes

"Tudo O Que Sei Aprendi com a TV" perde a mão ao buscar extrair filosofia de seriados

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Ninguém hoje põe muito em questão que os seriados de TV, em particular os norte-americanos, alcançaram um patamar de qualidade superior. Pelo menos desde a série "Twin Peaks", sua dramaturgia se sofisticou e suas temáticas se tornaram ousadas.
Explicitamente apaixonado por essas formas narrativas, o professor de filosofia norte-americano Mark Rowlands se debruça sobre algumas delas no ensaio "Tudo O Que Sei Aprendi com a TV - A Filosofia nos Seriados de TV" (Ediouro, trad. Elvira Serapicos, 224 págs., R$ 34,90).
Tal estratégia de aproximação entre o erudito e o pop não é novidade. Outros títulos disponíveis em português, como "Os Sopranos e a Filosofia" e "Os Simpsons e a Filosofia", já se arriscaram nesse terreno minado com resultados para lá de insatisfatórios.
O trabalho de Rowlands, professor da Universidade de Miami, propõe um pouco mais de rigor analítico e se cerca de alguns cuidados conceituais, mas o problema de sua abordagem decorre da própria definição de filosofia.
O que é filosofia? A questão guarda tantas respostas quanto o número de filósofos e de obras por eles escritas que passaram pela face da Terra.
Em todas elas, porém, sobressai um esforço nítido de distinguir a reflexão filosófica da mera reflexão.
A saber, desde os primórdios e até hoje, a indagação acerca das causas primeiras, a ontologia, o questionamento dos fundamentos da ética e da moral e das condições de possibilidade dos saberes em sua construção da verdade sempre adotaram, como ponto de partida, o que se chama "senso comum", mas para ultrapassá-lo.
A essa sabedoria pragmática, útil no dia-a-dia, a filosofia contrapôs uma sabedoria especulativa, mais preocupada com o ser das coisas e das ações, com o que poderia e com o que deveria ser.

Sem certezas
Em sua tentativa de virar as costas às dificuldades especulativas na busca de um reconhecimento popular, as obras que se supõem divulgadoras da filosofia acabam se distanciando da indagação filosófica ao se aproximarem do terreno fácil e óbvio da auto-ajuda.
Ao contrário do que esta visa, o que distingue a filosofia é sua incapacidade de se ater a fórmulas, a certezas de uso imediato. E seu perigo, pelo menos desde Sócrates, é instaurar a dúvida como seu próprio motor, assumir o risco de pensar contra o estabelecido, "intempestivamente", como define a fórmula insubstituível de Nietzsche.
Para Rowlands, ao contrário, "ser filósofo é fácil, e não temos muita escolha, de qualquer forma. Se você vive a vida e já pensou nela alguma vez, você é um filósofo".
Ora, tal definição, ampla demais, é como uma rede de pesca de buracos tão grandes que até os peixões escapam dela.
É isso que leva o exame que o autor empreende das oito séries que escolhe a se converter em mero catálogo de temas e fórmulas prontas.
A sofisticação dessas produções, de fato, decorre em parte da habilidade dos roteiristas em incorporar, tornando contemporânea, toda uma tradição de temas, psicologias e habilidades narrativas num repertório acumulado há séculos em nossa cultura sob a forma das artes da representação.
Mas daí a afirmar que as séries produzem filosofia e ensinam filosofia equivale a crer que basta seguir as regras dos manuais de auto-ajuda para alcançar a felicidade.
Há quem acredite e caia recorrentemente nessa armadilha mercantil. Para esses, funcionará como promessa a frase cara-de-pau com que Rowlands encerra a obra: "Obrigado por comprar este livro. Se eu pudesse retribuir com um desejo, seria o de que você encontrasse em sua vida algo tão importante que sem isso você não seria a mesma pessoa. Se tiver sorte, já encontrou".


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