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Telas pensantes
"Tudo O Que Sei Aprendi com a TV" perde a mão ao buscar extrair filosofia de seriados
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Ninguém hoje põe
muito em questão
que os seriados de
TV, em particular
os norte-americanos, alcançaram um patamar
de qualidade superior. Pelo
menos desde a série "Twin
Peaks", sua dramaturgia se sofisticou e suas temáticas se tornaram ousadas.
Explicitamente apaixonado
por essas formas narrativas, o
professor de filosofia norte-americano Mark Rowlands se
debruça sobre algumas delas
no ensaio "Tudo O Que Sei
Aprendi com a TV - A Filosofia
nos Seriados de TV" (Ediouro,
trad. Elvira Serapicos, 224
págs., R$ 34,90).
Tal estratégia de aproximação entre o erudito e o pop não
é novidade. Outros títulos disponíveis em português, como
"Os Sopranos e a Filosofia" e
"Os Simpsons e a Filosofia", já
se arriscaram nesse terreno
minado com resultados para lá
de insatisfatórios.
O trabalho de Rowlands,
professor da Universidade de
Miami, propõe um pouco mais
de rigor analítico e se cerca de
alguns cuidados conceituais,
mas o problema de sua abordagem decorre da própria definição de filosofia.
O que é filosofia? A questão
guarda tantas respostas quanto
o número de filósofos e de
obras por eles escritas que passaram pela face da Terra.
Em todas elas, porém, sobressai um esforço nítido de
distinguir a reflexão filosófica
da mera reflexão.
A saber, desde os primórdios
e até hoje, a indagação acerca
das causas primeiras, a ontologia, o questionamento dos fundamentos da ética e da moral e
das condições de possibilidade
dos saberes em sua construção
da verdade sempre adotaram,
como ponto de partida, o que
se chama "senso comum", mas
para ultrapassá-lo.
A essa sabedoria pragmática,
útil no dia-a-dia, a filosofia
contrapôs uma sabedoria especulativa, mais preocupada com
o ser das coisas e das ações,
com o que poderia e com o que
deveria ser.
Sem certezas
Em sua tentativa de virar as
costas às dificuldades especulativas na busca de um reconhecimento popular, as obras que
se supõem divulgadoras da filosofia acabam se distanciando
da indagação filosófica ao se
aproximarem do terreno fácil e
óbvio da auto-ajuda.
Ao contrário do que esta visa,
o que distingue a filosofia é sua
incapacidade de se ater a fórmulas, a certezas de uso imediato. E seu perigo, pelo menos
desde Sócrates, é instaurar a
dúvida como seu próprio motor, assumir o risco de pensar
contra o estabelecido, "intempestivamente", como define a
fórmula insubstituível de
Nietzsche.
Para Rowlands, ao contrário,
"ser filósofo é fácil, e não temos
muita escolha, de qualquer forma. Se você vive a vida e já pensou nela alguma vez, você é um
filósofo".
Ora, tal definição, ampla demais, é como uma rede de pesca
de buracos tão grandes que até
os peixões escapam dela.
É isso que leva o exame que o
autor empreende das oito séries que escolhe a se converter
em mero catálogo de temas e
fórmulas prontas.
A sofisticação dessas produções, de fato, decorre em parte
da habilidade dos roteiristas
em incorporar, tornando contemporânea, toda uma tradição
de temas, psicologias e habilidades narrativas num repertório acumulado há séculos em
nossa cultura sob a forma das
artes da representação.
Mas daí a afirmar que as séries produzem filosofia e ensinam filosofia equivale a crer
que basta seguir as regras dos
manuais de auto-ajuda para alcançar a felicidade.
Há quem acredite e caia recorrentemente nessa armadilha mercantil. Para esses, funcionará como promessa a frase
cara-de-pau com que Rowlands
encerra a obra: "Obrigado por
comprar este livro. Se eu pudesse retribuir com um desejo,
seria o de que você encontrasse
em sua vida algo tão importante que sem isso você não seria a
mesma pessoa. Se tiver sorte, já
encontrou".
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