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Muito mais que um hobby
Colecionadores de selos carregam por toda parte pedaços de papel que expressam projetos sociais e nacionais
MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
O colecionador é um
tipo inusitado. Tal
como o mais reles
mortal, habita um
mundo por definição inacabado, cuja origem se
perde no tempo.
À semelhança do sonhador e
dos caracóis, porém, quem coleciona carrega o seu mundo
por onde quer que vá.
Ao contrário de quem escreve um diário íntimo, o colecionador reúne objetos cujos significados primários lhe são totalmente exteriores (sua única
chance de virar o jogo consiste
em ordenar o conjunto de modo tão preciso a ponto de estabelecer novas interpretações).
O que não impede a ambos
de se encontrarem atados pelo
calendário, o demônio inspirador que diligentemente os vigia
e atormenta.
A de selos conforma a mais
secular das coleções. Não poderia ser diferente.
Simbolismo público
Suportes de propaganda e
comemorações, as estampilhas
expressam, por isso, projetos
de sociedade e de nação. Para o
historiador Eric Hobsbawm, os
selos representam "a forma
mais universal de simbolismo
público, além do dinheiro".
São, pois, objetos de constante investimento estatal de como uma sociedade deve ser e se
querer.
A sugestão de Hobsbawm
ajuda a compreender aspectos
da história dos países que surgiram na segunda metade do
século 20. Os selos que circulavam na África e na Ásia antes da
descolonização não raro expressavam o lugar das colônias
nas representações metropolitanas de nação. Novas estampilhas refletiriam também algo
do que deveria ser o mundo
pós-colonial.
Tome-se a série de 400 selos
pertencentes à família Balsinhas, do Rio de Janeiro, dedicada a Moçambique. No enredo
por ela desenhado até a década
de 1940, a redução da colônia a
mero espaço geográfico a destituía de toda força vital.
Elemento de composição: eis
como Moçambique se encaixava no sonho salazarista [Salazar foi presidente do Conselho
de Ministros de Portugal, equivalente a presidente da República, entre 1932 e 1968] de uma
comunidade católica de feições
intercontinentais.
Sebastianismo
O mandato civilizador do Estado Novo português não podia
elidir a genealogia do derramamento do império pelo mundo.
Daí as referências filatélicas
aos grandes navegadores, aos
bergantins e galeões que eram
os seus cavalos marinhos e à
língua de Camões transformada em pátria.
O toque de sebastianismo advinha das alusões a Mouzinho
de Albuquerque (1855-1902), o
responsável pela sanguinária e
definitiva subjugação de Moçambique à administração lusitana, cujo fim misterioso -suicídio ou assassinato?- ainda
enseja polêmica.
Com os anos 1950, surgiram
umas poucas referências ao nativo. Os selos encamparam algo
do ideal luso-tropicalista e, junto, o negro moçambicano e suas
matrizes asiáticas -sobretudo
os indianos e paquistaneses, de
ancestral presença, esteios do
islã e de grande parte do comércio. Nativos tutelados, por
certo, semelhantes ao europeu
tão-somente quando se tratava
de reafirmar a unidade fundamental do gênero humano
diante de Deus.
A presença lusitana tornou-se sinônimo de bem-estar material a partir da década de
1960. Nos selos celebravam-se,
por exemplo, a construção da
barragem de Cabora Bassa, a
eletrificação da colônia e a integração de Moçambique à economia da África austral.
Não é implausível que esse
novo modelo personificasse a
resposta do salazarismo, revigorado com Marcello Caetano,
à expansão do pan-africanismo
e do socialismo evocados pelos
movimentos de libertação.
Pelas mãos da Frelimo
-Frente de Libertação de Moçambique-, as estampilhas se
tornaram meios ainda mais explícitos de propaganda no imediato pós-independência. Nada
mais adequado a um país minguado de letrados e em processo revolucionário.
As novas emissões eram plenas de interseções com os belos
cartazes construtivistas e futuristas elaborados na União Soviética dos anos 20 e 40.
Estampas cubistas
Em imagens intensamente
geometrizadas, destacava-se a
utilização do preto, do verde,
do vermelho e de algumas fotos
e colagens. Não faltavam exuberantes estampas primitivistas e cubistas, igualmente engajadas em disseminar ideologia.
O ramerrão veiculado é conhecido: a fé cega no marxismo-leninismo e no prócer da
vez, agentes da construção do
"homem novo" frelimista.
Do subtexto -a afirmação do
fundamentalismo encarnado
na onipresença do partido e em
fins que justificavam meios-,
fala o confinamento e morte de
incontáveis moçambicanos em
campos de concentração setentrionais, tema pouco abordado
no Brasil.
Fala também a redução de
homens, mulheres e crianças à
condição de camaradas negros,
sempre prontos a lutar e trabalhar. Ironicamente, o moçambicano típico, ser multiétnico e
animista, mas também cristão
e islâmico, viu reiterado o seu
papel de elemento de composição no sonho de uma comunidade negra, laica e igualitária de
trabalhadores armados.
Mas esse não era o único aspecto em que os selos do antigo
e do novo regime se encontravam. A partir dos anos 80, o
crescimento da oposição ao regime levou a Frelimo a mudar
sua estratégia filatélica. Os temas se tornaram mais neutros,
e estabeleceu-se uma espécie
de genealogia da identidade nacional, por meio da valorização
do artesanato, da fauna, da flora e da arqueologia.
O inusitado encontro entre o
salazarismo e o frelimismo no
poder derivou da obsessão que
os guiava. Obravam, cada qual a
seu modo, em prol do demônio,
cuja malandragem, é sabido,
consiste em fazer acreditar que
ele não existe.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .
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