São Paulo, domingo, 09 de março de 2008

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Muito mais que um hobby

Colecionadores de selos carregam por toda parte pedaços de papel que expressam projetos sociais e nacionais

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

O colecionador é um tipo inusitado. Tal como o mais reles mortal, habita um mundo por definição inacabado, cuja origem se perde no tempo.
À semelhança do sonhador e dos caracóis, porém, quem coleciona carrega o seu mundo por onde quer que vá.
Ao contrário de quem escreve um diário íntimo, o colecionador reúne objetos cujos significados primários lhe são totalmente exteriores (sua única chance de virar o jogo consiste em ordenar o conjunto de modo tão preciso a ponto de estabelecer novas interpretações).
O que não impede a ambos de se encontrarem atados pelo calendário, o demônio inspirador que diligentemente os vigia e atormenta. A de selos conforma a mais secular das coleções. Não poderia ser diferente.

Simbolismo público
Suportes de propaganda e comemorações, as estampilhas expressam, por isso, projetos de sociedade e de nação. Para o historiador Eric Hobsbawm, os selos representam "a forma mais universal de simbolismo público, além do dinheiro". São, pois, objetos de constante investimento estatal de como uma sociedade deve ser e se querer.
A sugestão de Hobsbawm ajuda a compreender aspectos da história dos países que surgiram na segunda metade do século 20. Os selos que circulavam na África e na Ásia antes da descolonização não raro expressavam o lugar das colônias nas representações metropolitanas de nação. Novas estampilhas refletiriam também algo do que deveria ser o mundo pós-colonial.
Tome-se a série de 400 selos pertencentes à família Balsinhas, do Rio de Janeiro, dedicada a Moçambique. No enredo por ela desenhado até a década de 1940, a redução da colônia a mero espaço geográfico a destituía de toda força vital.
Elemento de composição: eis como Moçambique se encaixava no sonho salazarista [Salazar foi presidente do Conselho de Ministros de Portugal, equivalente a presidente da República, entre 1932 e 1968] de uma comunidade católica de feições intercontinentais.

Sebastianismo
O mandato civilizador do Estado Novo português não podia elidir a genealogia do derramamento do império pelo mundo. Daí as referências filatélicas aos grandes navegadores, aos bergantins e galeões que eram os seus cavalos marinhos e à língua de Camões transformada em pátria.
O toque de sebastianismo advinha das alusões a Mouzinho de Albuquerque (1855-1902), o responsável pela sanguinária e definitiva subjugação de Moçambique à administração lusitana, cujo fim misterioso -suicídio ou assassinato?- ainda enseja polêmica.
Com os anos 1950, surgiram umas poucas referências ao nativo. Os selos encamparam algo do ideal luso-tropicalista e, junto, o negro moçambicano e suas matrizes asiáticas -sobretudo os indianos e paquistaneses, de ancestral presença, esteios do islã e de grande parte do comércio. Nativos tutelados, por certo, semelhantes ao europeu tão-somente quando se tratava de reafirmar a unidade fundamental do gênero humano diante de Deus.
A presença lusitana tornou-se sinônimo de bem-estar material a partir da década de 1960. Nos selos celebravam-se, por exemplo, a construção da barragem de Cabora Bassa, a eletrificação da colônia e a integração de Moçambique à economia da África austral.
Não é implausível que esse novo modelo personificasse a resposta do salazarismo, revigorado com Marcello Caetano, à expansão do pan-africanismo e do socialismo evocados pelos movimentos de libertação.
Pelas mãos da Frelimo -Frente de Libertação de Moçambique-, as estampilhas se tornaram meios ainda mais explícitos de propaganda no imediato pós-independência. Nada mais adequado a um país minguado de letrados e em processo revolucionário. As novas emissões eram plenas de interseções com os belos cartazes construtivistas e futuristas elaborados na União Soviética dos anos 20 e 40.

Estampas cubistas
Em imagens intensamente geometrizadas, destacava-se a utilização do preto, do verde, do vermelho e de algumas fotos e colagens. Não faltavam exuberantes estampas primitivistas e cubistas, igualmente engajadas em disseminar ideologia.
O ramerrão veiculado é conhecido: a fé cega no marxismo-leninismo e no prócer da vez, agentes da construção do "homem novo" frelimista.
Do subtexto -a afirmação do fundamentalismo encarnado na onipresença do partido e em fins que justificavam meios-, fala o confinamento e morte de incontáveis moçambicanos em campos de concentração setentrionais, tema pouco abordado no Brasil.
Fala também a redução de homens, mulheres e crianças à condição de camaradas negros, sempre prontos a lutar e trabalhar. Ironicamente, o moçambicano típico, ser multiétnico e animista, mas também cristão e islâmico, viu reiterado o seu papel de elemento de composição no sonho de uma comunidade negra, laica e igualitária de trabalhadores armados.
Mas esse não era o único aspecto em que os selos do antigo e do novo regime se encontravam. A partir dos anos 80, o crescimento da oposição ao regime levou a Frelimo a mudar sua estratégia filatélica. Os temas se tornaram mais neutros, e estabeleceu-se uma espécie de genealogia da identidade nacional, por meio da valorização do artesanato, da fauna, da flora e da arqueologia.
O inusitado encontro entre o salazarismo e o frelimismo no poder derivou da obsessão que os guiava. Obravam, cada qual a seu modo, em prol do demônio, cuja malandragem, é sabido, consiste em fazer acreditar que ele não existe.


MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .


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