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"MEU PUNHO INFAME"
Editor as das "Cartas de Samuel Becket t", cujo primei ro volume sai em 2007, Lois More Overb eck e Martha Fehsen feld falam sobre a import ância das cartas do escritor para a compr eensão de sua obra
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Avesso à superexposição pública, Samuel Beckett deixou uma copiosa correspondência que ultrapassa as
15.000 cartas, muito poucas editadas. A honrosa exceção é "No Author Better Served - The Correspondence of Samuel Beckett and Alain
Schneider" (Harvard University
Press, 1998). Em 1985, o próprio autor confiou a Martha Fehsenfeld,
atriz e pesquisadora de sua obra, e
Lois Overbeck, professora de estudos teatrais, a tarefa de organizar a
publicação de parte deste acervo,
uma janela inestimável para os bastidores de sua criação.
Sediado simultaneamente na Escola de Graduação em Artes e Ciências da Universidade Emory, em
Atlanta (EUA), e na Universidade
Americana de Paris, o projeto "The
Letters of Samuel Beckett" [As Cartas de Samuel Beckett] envolveu a
escolha de 2.500 cartas para uma
edição em quatro volumes, em parceria com a Cambridge University
Press, o primeiro deles com lançamento previsto para o início de 2007.
Significativa em si, a amostra será
consideravelmente ampliada pelo
trabalho das notas de rodapé, incorporando citações de outras 5.000
cartas. Em meio às celebrações do
centenário na Emory, Martha Fehsenfeld e Lois Overbeck deram, por
e-mail, seu depoimento à Folha sobre o projeto de edição, "uma honra
e uma grande responsabilidade".
Folha - As sras. estão envolvidas há
muito tempo -desde 1985- no projeto originalmente encomendado por
Barney Rosset. Como organizam essa
colaboração?
Lois More Overbeck e Martha Fehsenfeld - Em um contrato com Barney Rosset, presidente da Grove
Press, Samuel Beckett indicou Marthe Fehsenfeld como editora de suas
cartas e depois confirmou Lois
Overbeck como editora-adjunta.
Como ficou claro que havia mais
de 15 mil cartas para transcrever e
pesquisar, a equipe editorial aumentou, e as responsabilidades evoluíram; tornamo-nos co-editoras, Daniel Gunn, professor de literatura
comparada na Universidade Americana de Paris, e George Craig, professor emérito da Universidade de
Sussex, uniram-se às editoras associadas. George Craig é o tradutor
francês, e Viola Westbrook, da
Emory, é a tradutora alemã.
Uma equipe editorial internacional é essencial, porque as cartas de
Beckett estão em arquivos privados
e públicos em todo o mundo. A primeira diretriz de Beckett para as editoras foi: "Vocês vão conseguir falar
com essas pessoas, não é?".
Assim, o processo editorial foi desde o início uma colaboração com os
destinatários das cartas e suas famílias e associados, arquivistas e curadores em bibliotecas e museus, e especialistas em muitos campos que
ofereceram sua perícia.
Folha - Quais foram as principais
modificações a que foi submetido o
projeto de estabelecer a correspondência de Beckett?
Overbeck e Fehsenfeld - Beckett pediu que a edição só fosse publicada
após sua morte e instruiu para que
somente fossem publicadas as cartas
ou trechos de cartas "que tenham relação com meu trabalho". O que parece uma restrição se torna sobretudo um princípio de seleção, particularmente em consideração ao tamanho e extensão de sua correspondência, que cobre 60 anos (1929-89)
e consiste em mais de 15 mil cartas.
Em quatro volumes, só há espaço
para incluir cerca de 2.500 cartas
completas; mas também incluiremos trechos de talvez mais 3.000 a
5.000 cartas escritas por Beckett como base para as notas. Para essa ampliação, está sendo planejado um
banco de dados eletrônico para
identificar todas as cartas existentes.
Folha - Quais as principais dificuldades envolvidas, afora a dificuldade da
caligrafia dificilmente decifrável de
Beckett? Que procedimentos foram
envolvidos na obtenção do material?
Overbeck e Fehsenfeld - A caligrafia
de Beckett é muitas vezes difícil de
decifrar; ele mesmo se refere muitas
vezes a "meu punho infame". Tanto
as entrevistas pessoais quanto a pesquisa exigiram muitas viagens, pois
não apenas as cartas precisam ser
reunidas e transcritas com precisão
mas havia necessidade de pesquisa
dedutiva para anotá-las adequadamente. E, é claro, a preocupação
sempre premente é levantar fundos
para esse trabalho.
Folha - As anotações de palco de
Beckett foram uma fonte extremamente importante para os estudos
beckettianos, como atestam a série
"The Theatrical Notebooks" ou a biografia de James Knowlson. Considerando todo o volume de cartas, existem correspondentes individuais de
especial importância, seja pela constância ou pelos temas tratados, assim
como foi o diretor Alan Schneider?
Overbeck e Fehsenfeld - Para usar
seu exemplo, um dos motivos pelos
quais a correspondência de Schneider com Beckett oferece percepções
tão detalhadas dos valores de produção das peças de Beckett é que Beckett, com exceção do curta-metragem "Film", estava trabalhando
com Schneider. As cartas são escritas naturalmente, em princípio para
preencher uma lacuna no espaço e
tempo. A grande correspondência
com [o escritor irlandês] Thomas
MacGreevy também foi certamente
um fator de sua separação, conforme cada um deles viajava, como foi
informado por sua abertura mútua
sobre o processo criativo.
Por outro lado, mesmo que com
freqüência estivessem na mesma cidade, a correspondência entre Beckett e o crítico de arte Georges Duthuit é especial pela profundidade de
seu diálogo sobre estética. Existe
grande riqueza na correspondência
de Beckett, incluindo as cartas para
tradutores e editores; cartas para intérpretes de teatro, rádio e televisão;
cartas para velhos e novos amigos;
cartas para escritores e artistas.
Folha - As sras. citariam uma carta
que considerem um esclarecimento
especial sobre seu processo de composição? Ou diriam que sua opinião
sobre alguma das peças ou obras em
prosa foi substancialmente alterada
por informação dada pelas cartas?
Overbeck e Fehsenfeld - Para tomar
apenas um exemplo como paradigma -"Esperando Godot"-, existem diversas perspectivas que as cartas oferecem: uma carta que trata da
incerteza de Beckett sobre o título,
em 1949; uma carta para Michel Polac respondendo a perguntas sobre
uma apresentação em rádio, em
1952; para Roger Blin, sobre uma das
primeiras produções da peça no
Théâtre de Babylone, em 1953.
Cada uma delas oferece respostas
diferentes à peça e à natureza das
perguntas feitas. Suas reações às
produções e mesmo a sua própria
direção ocupam cartas posteriores.
Em cada caso o fascínio é tanto pelo
momento e circunstância particular
quanto pelo modo como a perspectiva de Beckett muda com o tempo.
De fato, as cartas modificaram
nossas visões das peças e da prosa, e
também da poesia e da crítica, assim
como os diversos esboços de textos
em arquivos ou a comparação entre
o texto original com sua tradução
afetaram a consideração sobre a
obra acabada. Isso não substitui a escrita, mas a enriquece.
Folha - Como pretendem organizar
a edição em quatro volumes?
Overbeck e Fehsenfeld - Os quatro
volumes das cartas de Beckett são
organizados cronologicamente. O
volume 1 (1929-1940) acompanha
Beckett de Dublin a Paris, Londres e
Alemanha e termina com Beckett estabelecido em Paris no momento
em que a cidade é ocupada.
O volume 2 (1945-56) abre com
uma lacuna durante os anos da
guerra -quando a correspondência
direta é impossível, dado o envolvimento de Beckett na Resistência- e
termina na época em que "Esperando Godot" havia chegado aos palcos
da França, Alemanha, Irlanda, Inglaterra, EUA e América Central.
O volume 3 (1957-69) marca um
período do envolvimento de Beckett
com dramas para rádio, TV e cinema assim como para o palco, a escrita de ficção inovadora e culmina no
Prêmio Nobel de Literatura.
As cartas do volume 4 (1970-89)
refletem a evolução dos intervalos
que também estão presentes na obra
de Beckett nesse período em uma
correspondência que, em simples
números, foi volumosa.
De modo geral, as cartas preservam os tempos e espaços (incluindo
os espaços interiores) que tornam a
escrita de Beckett tão atraente para
um público diversificado e mundial.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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