São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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"MEU PUNHO INFAME"

Editor as das "Cartas de Samuel Becket t", cujo primei ro volume sai em 2007, Lois More Overb eck e Martha Fehsen feld falam sobre a import ância das cartas do escritor para a compr eensão de sua obra

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Avesso à superexposição pública, Samuel Beckett deixou uma copiosa correspondência que ultrapassa as 15.000 cartas, muito poucas editadas. A honrosa exceção é "No Author Better Served - The Correspondence of Samuel Beckett and Alain Schneider" (Harvard University Press, 1998). Em 1985, o próprio autor confiou a Martha Fehsenfeld, atriz e pesquisadora de sua obra, e Lois Overbeck, professora de estudos teatrais, a tarefa de organizar a publicação de parte deste acervo, uma janela inestimável para os bastidores de sua criação.
Sediado simultaneamente na Escola de Graduação em Artes e Ciências da Universidade Emory, em Atlanta (EUA), e na Universidade Americana de Paris, o projeto "The Letters of Samuel Beckett" [As Cartas de Samuel Beckett] envolveu a escolha de 2.500 cartas para uma edição em quatro volumes, em parceria com a Cambridge University Press, o primeiro deles com lançamento previsto para o início de 2007.
Significativa em si, a amostra será consideravelmente ampliada pelo trabalho das notas de rodapé, incorporando citações de outras 5.000 cartas. Em meio às celebrações do centenário na Emory, Martha Fehsenfeld e Lois Overbeck deram, por e-mail, seu depoimento à Folha sobre o projeto de edição, "uma honra e uma grande responsabilidade".
 

Folha - As sras. estão envolvidas há muito tempo -desde 1985- no projeto originalmente encomendado por Barney Rosset. Como organizam essa colaboração?
Lois More Overbeck e Martha Fehsenfeld -
Em um contrato com Barney Rosset, presidente da Grove Press, Samuel Beckett indicou Marthe Fehsenfeld como editora de suas cartas e depois confirmou Lois Overbeck como editora-adjunta.
Como ficou claro que havia mais de 15 mil cartas para transcrever e pesquisar, a equipe editorial aumentou, e as responsabilidades evoluíram; tornamo-nos co-editoras, Daniel Gunn, professor de literatura comparada na Universidade Americana de Paris, e George Craig, professor emérito da Universidade de Sussex, uniram-se às editoras associadas. George Craig é o tradutor francês, e Viola Westbrook, da Emory, é a tradutora alemã.
Uma equipe editorial internacional é essencial, porque as cartas de Beckett estão em arquivos privados e públicos em todo o mundo. A primeira diretriz de Beckett para as editoras foi: "Vocês vão conseguir falar com essas pessoas, não é?".
Assim, o processo editorial foi desde o início uma colaboração com os destinatários das cartas e suas famílias e associados, arquivistas e curadores em bibliotecas e museus, e especialistas em muitos campos que ofereceram sua perícia.

Folha - Quais foram as principais modificações a que foi submetido o projeto de estabelecer a correspondência de Beckett?
Overbeck e Fehsenfeld -
Beckett pediu que a edição só fosse publicada após sua morte e instruiu para que somente fossem publicadas as cartas ou trechos de cartas "que tenham relação com meu trabalho". O que parece uma restrição se torna sobretudo um princípio de seleção, particularmente em consideração ao tamanho e extensão de sua correspondência, que cobre 60 anos (1929-89) e consiste em mais de 15 mil cartas.
Em quatro volumes, só há espaço para incluir cerca de 2.500 cartas completas; mas também incluiremos trechos de talvez mais 3.000 a 5.000 cartas escritas por Beckett como base para as notas. Para essa ampliação, está sendo planejado um banco de dados eletrônico para identificar todas as cartas existentes.

Folha - Quais as principais dificuldades envolvidas, afora a dificuldade da caligrafia dificilmente decifrável de Beckett? Que procedimentos foram envolvidos na obtenção do material?
Overbeck e Fehsenfeld -
A caligrafia de Beckett é muitas vezes difícil de decifrar; ele mesmo se refere muitas vezes a "meu punho infame". Tanto as entrevistas pessoais quanto a pesquisa exigiram muitas viagens, pois não apenas as cartas precisam ser reunidas e transcritas com precisão mas havia necessidade de pesquisa dedutiva para anotá-las adequadamente. E, é claro, a preocupação sempre premente é levantar fundos para esse trabalho.

Folha - As anotações de palco de Beckett foram uma fonte extremamente importante para os estudos beckettianos, como atestam a série "The Theatrical Notebooks" ou a biografia de James Knowlson. Considerando todo o volume de cartas, existem correspondentes individuais de especial importância, seja pela constância ou pelos temas tratados, assim como foi o diretor Alan Schneider?
Overbeck e Fehsenfeld -
Para usar seu exemplo, um dos motivos pelos quais a correspondência de Schneider com Beckett oferece percepções tão detalhadas dos valores de produção das peças de Beckett é que Beckett, com exceção do curta-metragem "Film", estava trabalhando com Schneider. As cartas são escritas naturalmente, em princípio para preencher uma lacuna no espaço e tempo. A grande correspondência com [o escritor irlandês] Thomas MacGreevy também foi certamente um fator de sua separação, conforme cada um deles viajava, como foi informado por sua abertura mútua sobre o processo criativo.
Por outro lado, mesmo que com freqüência estivessem na mesma cidade, a correspondência entre Beckett e o crítico de arte Georges Duthuit é especial pela profundidade de seu diálogo sobre estética. Existe grande riqueza na correspondência de Beckett, incluindo as cartas para tradutores e editores; cartas para intérpretes de teatro, rádio e televisão; cartas para velhos e novos amigos; cartas para escritores e artistas.

Folha - As sras. citariam uma carta que considerem um esclarecimento especial sobre seu processo de composição? Ou diriam que sua opinião sobre alguma das peças ou obras em prosa foi substancialmente alterada por informação dada pelas cartas?
Overbeck e Fehsenfeld -
Para tomar apenas um exemplo como paradigma -"Esperando Godot"-, existem diversas perspectivas que as cartas oferecem: uma carta que trata da incerteza de Beckett sobre o título, em 1949; uma carta para Michel Polac respondendo a perguntas sobre uma apresentação em rádio, em 1952; para Roger Blin, sobre uma das primeiras produções da peça no Théâtre de Babylone, em 1953.
Cada uma delas oferece respostas diferentes à peça e à natureza das perguntas feitas. Suas reações às produções e mesmo a sua própria direção ocupam cartas posteriores. Em cada caso o fascínio é tanto pelo momento e circunstância particular quanto pelo modo como a perspectiva de Beckett muda com o tempo.
De fato, as cartas modificaram nossas visões das peças e da prosa, e também da poesia e da crítica, assim como os diversos esboços de textos em arquivos ou a comparação entre o texto original com sua tradução afetaram a consideração sobre a obra acabada. Isso não substitui a escrita, mas a enriquece.

Folha - Como pretendem organizar a edição em quatro volumes?
Overbeck e Fehsenfeld -
Os quatro volumes das cartas de Beckett são organizados cronologicamente. O volume 1 (1929-1940) acompanha Beckett de Dublin a Paris, Londres e Alemanha e termina com Beckett estabelecido em Paris no momento em que a cidade é ocupada.
O volume 2 (1945-56) abre com uma lacuna durante os anos da guerra -quando a correspondência direta é impossível, dado o envolvimento de Beckett na Resistência- e termina na época em que "Esperando Godot" havia chegado aos palcos da França, Alemanha, Irlanda, Inglaterra, EUA e América Central.
O volume 3 (1957-69) marca um período do envolvimento de Beckett com dramas para rádio, TV e cinema assim como para o palco, a escrita de ficção inovadora e culmina no Prêmio Nobel de Literatura.
As cartas do volume 4 (1970-89) refletem a evolução dos intervalos que também estão presentes na obra de Beckett nesse período em uma correspondência que, em simples números, foi volumosa.
De modo geral, as cartas preservam os tempos e espaços (incluindo os espaços interiores) que tornam a escrita de Beckett tão atraente para um público diversificado e mundial.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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