São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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A LÍNGUA EXILADA

Opção pelo francês como idioma de criação e conseqüente tradução dos próprios textos para o inglês revelam esforço em se despersonalizar e fugir da influência de James Joyce

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

Samuel Beckett pertence à ilustre linhagem de autores que, oriundos das ilhas britânicas, passaram a parte mais significativa e produtiva de suas vidas no exílio voluntário. Desde seu conterrâneo James Joyce, o autor que talvez mais profundamente influenciou o dramaturgo de "Godot", até, recuando no tempo, os românticos ingleses, como Byron, Shelley e Keats, não foram raros os literatos que, achando demasiado opressivo, seja em termos climáticos, seja em termos sociais, o ambiente geral de seu arquipélago, optaram pelo continente, pelas ilhas mediterrâneas ou por regiões mais remotas.
Convém ter em mente que, até a terceira década do século 20, a Irlanda inteira, embora rebelde e inconformada, era uma Província da coroa britânica -e uma Província em mais de um sentido, principalmente, como o próprio Joyce não se cansou de enfatizar em "Dublinenses", no de estar entre o mais provinciano dos lugares. Dublin era uma cidade relativamente pequena, nada afluente, na qual todos se conheciam e onde, a crermos em seus melhores filhos literários, prevaleciam a mesquinharia pessoal e a obsessão pela política local.


O inglês despersonalizado que alme-java requeria ser filtrado por uma língua estrangeira


Decênios a fio, a independência em relação ao Reino Unido (exceto, é claro, as problemáticas províncias do Ulster) não parece ter alterado o caráter dessa sociedade.
Um nacionalismo estreito, não raro protofascista, aliava-se ao clericalismo repressivo e moralista, decorrente da importância que a Igreja Católica assumira enquanto guardiã da nacionalidade (que, assim, contrapunha-se ao protestantismo dos que eram vistos como ocupantes) para envolver o país todo numa atmosfera sufocante que propiciava só três saídas: o alcoolismo, o suicídio ou o exílio (vale a pena, contudo, sublinhar que a Dublin atual é uma cidade tão vibrante como aberta e dinâmica). Irlandeses anteriores, como Oscar Wilde ou Bernard Shaw, já haviam procurado se livrar dessas condições, radicando-se na capital do império. Mas o desdém de muitos ingleses pelos irlandeses e o de muitos protestante pelos católicos nem sempre permitiu que tal mudança fosse inteiramente tranqüila ou agradável.
Desse modo, o passo seguinte era mesmo deixar o arquipélago, passo que Joyce deu, no entanto, sem de modo nenhum romper seus vínculos mais íntimos com a terra natal. Argumenta-se, aliás, que, se ele se mudou para Trieste, Zurique e Paris, teria sido para melhor processar, digerir, reformular e fixar em prosa a Irlanda que trazia dentro de si.
Samuel Beckett foi mais longe e se tornou um desses fenômenos raríssimos: um escritor que se realizou numa língua que não a sua. Há poucos exemplos na literatura ocidental de autores que, abandonando seu instrumento natural, de nascença, se consagrassem num idioma estrangeiro, e esses, em sua maioria, ou eram habitantes de zonas fronteiriças ou deixaram alguma língua mais ou menos obscura e de alcance limitado para adotar uma das assim chamadas universais.

Língua matemática
Malgrado os contatos seculares da Irlanda católica com a França -que, igualmente católica, era vista como uma perpetuamente possível aliada no seu conflito com os ingleses e escoceses protestantes-, não foi provavelmente nenhum fator tão ostensivo que levou Beckett a fazer sua escolha determinante.
Explicações e teorias não faltam, mas há duas difíceis de ignorar.
Uma é a presença, ou melhor, a onipresença de James Joyce, que, menos de uma geração antes, tinha, à sua maneira, exaurido os recursos oferecidos pela língua inglesa, submetendo seus sucessores imediatos à condição indesejável de seguidores ou epígonos. Outra é a seguinte: o tipo de literatura que Beckett se dedicou a compor em todos os gêneros de que lançou mão vinha, desde o início, marcado por um afã de despersonalização.
O crítico Hugh Kenner, um de seus estudiosos pioneiros, mostra como a escrita de Beckett (a cadência de sua prosa, sua maneira de organizar palavras, frases, parágrafos) obedece menos aos ditames de uma língua natural, com suas características temporais, geográficas e individuais, do que a um tipo de lógica fria, como a das fórmulas matemáticas ou a das linguagens com as quais se programam computadores.
Vale dizer: esse distanciamento perante o que, na boca ou mãos de cada usuário, uma língua tem de específico se alcança melhor, mais facilmente, num idioma estrangeiro que carregue em si uma dose infinitamente menor de associações e possa ser tratado como o instrumento, digamos, neutro que o irlandês procurava.
Ocorre também que, distintamente dos demais autores que trocaram sua língua por uma diferente, Beckett não parecia ter a intenção de se naturalizar, de se tornar de fato um cidadão da república francesa de letras. Pois, afinal, se utilizou o francês, ele tampouco abandonou o inglês. Só que, em vez de escrever diretamente em sua língua natal, ele fazia habitualmente questão de traduzir para estas suas obras redigidas (ou, pelo menos, publicadas) primeiro em francês.
Não é de todo impossível que tenha sido mediante esse atalho que ele chegou a um inglês que não conseguiria criar espontânea ou diretamente. Ou seja, o inglês despersonalizado que almejava requeria ser filtrado ("desaprendido", como diria João Cabral num poema célebre) por uma língua estrangeira.
Outro crítico, George Steiner, dedicou todo um volume aos escritores que, vivendo entre duas ou mais línguas, batizou de "extraterritoriais": Vladimir Nabokov (russo/ francês/inglês), Jorge Luis Borges (espanhol/inglês) etc. O trabalho desses mestres envolvia, decerto, uma motivação política, a saber, a revolta de espíritos cosmopolitas contra as barreiras artificiais que o nacionalismo e o etnocentrismo tentavam impor à experiência literária.

Extraterritorialidade
E, além de, pragmaticamente, fertilizarem e/ou contaminarem o âmago de uma cultura local ou nacional com elementos subversivos importados ou contrabandeados das demais, eles deram continuidade a um projeto coletivo e (no melhor sentido) ambicioso.
O de, acima das fronteiras e limitações de cada língua natural, elaborar uma linguagem supra/inter ou transnacional, capaz de acomodar e impulsionar a literatura universal de um mundo globalizado.
Essa extraterritorialidade, o irlandês a alcançou por uma rota singularmente tortuosa: escrevendo primeiro num idioma alheio para, em seguida, ao se traduzir (e não "retraduzir de volta") na sua de antemão estranhada língua natal, não tanto engendrar, a posteriori, um texto definitivo de chegada, um original às avessas, como, a rigor, para fazer até de suas criações autógrafas traduções de traduções desligadas de qualquer original.
Recorrendo à língua francesa, mas sem perseguir o objetivo banal de ser um literato francês, ele chegou, isso sim, a um resultado tão paradoxalmente borgiano quanto a carreira do fictício Pierre Menard (personagem do contista argentino que reescreveu literalmente fragmentos de "Dom Quixote"), a saber, o de assumir o estatuto de expatriado em sua própria pátria idiomática, de modo a se tornar, além de inventor de personagens memoráveis, o autor, sobretudo, da principal delas: um autor chamado Samuel Beckett.


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