São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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RUÍNAS DA EXPRESSÃO

Entusiasmado com "Fim de Partida", a que assistiu em Viena, Adorno viu na peça uma crítica à sociedade administrada e pretendia dedicar sua "Teoria Estética" ao escritor

JORGE DE ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando." A primeira frase de "Fim de Partida", enunciada em "voz neutra e com olhar fixo" por Clov, sob a "luz cinzenta" que ilumina ironicamente o cenário desolador da peça, resume bem o sentido do importante conjunto de obras escritas por Samuel Beckett após a Segunda Guerra Mundial.
A mesma frase poderia ter servido de epígrafe para a "Teoria Estética", obra póstuma de Theodor Adorno [1903-69], que também tem início sob o signo da catástrofe: "Tornou-se evidente que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente, tanto em si mesmo como na sua relação com o todo, e até mesmo o seu direito à existência".


Beckett seria, paradoxal-mente, mais realista do que os comprome-tidos defensores do realismo socialista


Sabemos que Adorno pretendia dedicar o livro a Beckett, consolidando uma afinidade que remonta a 1958, quando o filósofo, sob o impacto da montagem vienense de "Fim de Partida", encontrou-se com o autor em Paris, escrevendo depois um ensaio em que "tentava compreender" dialeticamente a peça.
Contrapondo-se à abordagem de matriz existencialista, que exaltava na obra de Beckett a representação literária do "absurdo", Adorno argumenta que a compreensão da peça não poderia ser alcançada pela referência a uma eterna e abstrata "situação da condição humana".
Em Beckett, o sentido seria posto em questão não apenas como tema mas também na própria forma, rigorosamente arquitetada para dar conta dos impasses contemporâneos: "As peças de Beckett são absurdas não pela ausência de todo e qualquer sentido -seriam, então, irrelevantes-, mas porque põem o sentido em questão. Desdobram sua história". Por isso elas exigem uma interpretação que busque o sentido histórico das "tentativas" do próprio Beckett: "Compreender "Fim de Partida" não pode significar senão uma coisa: compreender que ela é incompreensível, reconstruir concretamente o conjunto coerente de sentido do que não há sentido".
No mesmo ano, Adorno escreve a Max Horkheimer, parceiro na elaboração da "Dialética do Esclarecimento", recomendando a leitura da peça de Beckett, "porque nela há certas intenções compartilhadas por nossa obra". Essas intenções comuns poderiam ser descritas e enumeradas, mas são mais bem entendidas quando se segue o persistente "não há mais..." que caracteriza "Fim de Partida": "Não há mais bicicleta, não há papa, não há mais cobertores, não há mais calmante, não existe mais natureza".
Assim como na filosofia de Adorno, a negatividade de Beckett leva às últimas conseqüências, na própria forma de suas obras, a consciência de que não há mais possibilidade, também, de expressar de modo tradicional esse mundo de carências e impossibilidades. Como Vladimir e Estragon, em "Esperando Godot", os conceitos tradicionais de "literatura" e "filosofia" giram em falso diante do leitor, iluminando, em tons cinzentos, algo do movimento geral da sociedade no século 20.

Sem aspirinas
Sem oferecer respostas nem aspirina diante da catástrofe, Beckett transforma suas próprias personagens em ruínas, construindo meticulosamente, em suas peças e narrativas, a expressão mais fiel de um mundo no qual restaria apenas esperar por Godot, pela morte ou pelo inevitável fim da partida.
A desagregação do indivíduo na sociedade completamente administrada, tema recorrente da filosofia de Adorno, entra em cena nos diálogos entrecortados e de mútua incompreensão; na ação constante e industriosa, mas que não leva a lugar nenhum; na tentativa fracassada de "significar algo" por meio da percepção do outro; na violência que marca a exploração cotidiana da linguagem; e também na exposição rigorosa do "sentido" do progresso histórico, delineado pelas palavras de Hamm: "Momentos nulos, nulos desde sempre, mas que são a conta, fazem a conta e fecham a história".
A própria reação do público, assim como a do leitor, é levada em conta por Beckett: "Mesmo as ironias dos mutilados são mutiladas. Elas não alcançam mais ninguém". Em vez do "distanciamento" brechtiano ou do "choque" vanguardista, suas obras apostam na mimese completa, representando em cena os risos e as lágrimas como reações automáticas, forçadas, desprovidas de sentido.
Por isso o rigor obsessivo no controle da representação, a busca de uma "coesão quase musical" nas montagens, o cuidado na formulação da menor frase (que sobrevive nas traduções precisas de Fábio de Souza Andrade).
Isso o aproxima de Schoenberg, outra referência fundamental da obra de Adorno, que também buscava, como imperativo moral e artístico, consolidar em suas obras o difícil pacto entre expressão e forma.
No entanto ambos foram acusados de "formalismo" pelos defensores da arte engajada. Beckett foi muito criticado, até mesmo por Lukács, como um representante do "teatro da alienação", expressão última da "decadência burguesa". Contra isso, Adorno defende que "em toda a arte ainda possível, a crítica social deve ser erigida em forma e diminuir todo o conteúdo social manifesto".
Nesse sentido, Beckett seria, paradoxalmente, mais realista do que os comprometidos defensores do realismo socialista: "O caráter mesquinho e inútil desse universo simbólico é a cópia, o negativo do mundo administrado. Nessa medida, Beckett é realista". Talvez por isso ele permaneça atual, já que suas obras continuam exigindo que os espectadores tomem consciência da catástrofe, como insiste Hamm: "Você deveria saber o que é o mundo nos dias de hoje!".

Jorge de Almeida é professor no departamento de teoria literária e literatura comparada da Universidade de São Paulo.


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