São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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A COISA QUE FALA

Para Salman Rushdie, personagens da trilogia "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável" reafirmam, por meio da rememoração obsessiva, a primazia da vida sobre a morte

SALMAN RUSHDIE

Para mim, antes de ser dramaturgo, Samuel Beckett sempre foi romancista, embora eu reconheça que essa opinião talvez seja mera conseqüência de minha cronologia beckettiana.
Li os romances de Beckett antes de assistir a suas peças, de maneira que, quando conheci Didi e Gogo, os vagabundos existencialistas de "Godot", enxerguei-os, por assim dizer, pela lente de seus parceiros mais prosaicos e logo adivinhei que o Godot que eles esperavam era a morte, visto ser a morte o grande pesadelo com que se deparam tantos dos personagens dos romances de Beckett, com as últimas contorções da vida, os derradeiros sorrisos e vômitos, as palavras excruciantes e indistintamente pronunciadas fazendo as vezes de enredo.
Quando eu estava na faculdade, meu passatempo favorito era entrar em livrarias e passar horas folheando livros. Embora nunca tenha estudado literatura inglesa, eu era fissurado em livros e adentrava as bibliotecas e as livrarias como um esfomeado, devorando tudo o que me caía nas mãos.


Quando nos rendemos à dificuldade de ler Beckett, uma flor rara, ainda que precária, desabro-cha; tão logo deixamos de cobrar o que falta à narrativa, percebemos o que ela contém


Voei por um bom tempo nas asas da ficção científica, até que um belo dia, como se alguém tirasse um fio da tomada, perdi o interesse por ela e a abandonei por completo. Então me viciei em literatura americana (não apenas nos Huckleberry Finns e Herzogs canônicos mas também nas criações mais excêntricas de sujeitos como Thomas Pynchon, John Gardner e John Hawkes) e, depois, em Borges, cujo "Ficções" virou minha cabeça e me despertou o desejo de ler todos os outros volumes publicados em edições austeras por John Calder.
Enfeitiçado pelas predileções mandarínicas de Calder, descobri "O Ciúme", de Alain Robbe-Grillet, e, depois, vários outros nomes do "nouveau roman", e foi assim que os franceses me levaram, como era inevitável que fizessem, a Beckett.
A primeira vez que topei com um exemplar de "Molloy" -depois, li os dois outros volumes da trilogia, "Malone Morre" e "O Inominável"- foi na Bowes & Bowes, uma livraria de Cambridge, situada na extremidade norte da King's Parade.

Fim abstrato
Isso foi em 1966, quando eu ainda não tinha completado 19 anos de idade e só conhecia a morte de vista. Isto é, embora a houvesse visto de longe em algumas ocasiões, ainda não fora devidamente apresentado a ela. Mesmo em minha vida familiar a morte também continuava a ser uma abstração. Meus avós maternos ainda eram vivos.
O pai de meu pai morrera antes de eu ter nascido e, para mim, não passava de um retrato na parede. Minha avó paterna, então gravemente doente, viera passar uns tempos conosco quando eu contava três anos, se não me engano, e era obrigada a brincar de médico com o neto que, com o estetoscópio de brinquedo em punho, a mandava levantar-se da cama e andar com passos claudicantes. Mas, quando nos deixou e voltou para sua casa, na Velha Déli, e morreu em seguida, sua morte foi uma coisa invisível, remota, que para uma criança não era difícil tratar com indiferença.
Para mim a morte continuava a ser como uma palavra impressa na página de um livro. Naquela altura eu ainda não lavara o corpo atarracado de meu pai, não sussurrara palavras de despedida junto da boca entreaberta e sem vida da mulher que fora o meu primeiro amor nem derramara lágrimas de ódio por terem as circunstâncias me negado o direito de assistir ao sepultamento de minha mãe. Por conseguinte, eu ainda me sentia imortal, e os imortais têm uma maneira toda própria de lidar com a questão da mortalidade, visto saberem-se imunes a essa estranha e incurável moléstia.
Assim, quando me vi pela primeira vez diante de textos que tratavam com tamanha intensidade do tema do nosso fim comum -isso que Henry James chamou de Coisa Insigne, mas que em Beckett é sempre algo esqualidamente indistinto, um espetáculo lamentável e grotesco, composto de flatulência, impotência e humilhação-, li os tijolaços de prosa indiferenciada que eles arremessavam ferozmente contra a morte como se fossem histórias essencialmente fabulosas, fantásticas, narradas pelas vozes de fantasmas bizarros.
Li-os, em síntese, como comédias, e é o que são, comédias, mas não do tipo que então imaginei serem- mais lúgubres e, sim, até heróicas, pois, mesmo com a comédia zombando dos heróis, baixando-lhes as calças, atirando-lhes tortas de creme na cara, mesmo assim ainda resta, na comédia desses personagens alquebrados e tateantes, um bafejo azedo de heroísmo oloroso.

Livros difíceis
Parte disso, eu, com a inteligência ainda verde, apenas entrevi, quando simplesmente não ignorei. Contudo, ao não reagir sorumbaticamente a uma obra que envergava a casmurrice como se fosse sua camisa favorita, ainda que imunda, minha leitura não estava de todo equivocada.
Revisitar esses livros é ter de responder pronta e abertamente à questão da dificuldade, pois não há como esquivar-se disto: esses livros são difíceis. Que sua leitura provoque dores de cabeça não chega a ser inusitado -pelo menos nem todos os casos-, ainda que, por uma questão de justiça, devamos acrescentar que há dores de cabeça que valem a pena sentir, dores de cabeça às quais sucumbimos em troca da obtenção de algo valioso, e a dor de cabeça beckettiana é um achaque desse último tipo.
Por exemplo, de "O Inominável", o seguinte. É possível que estejam nalgum lugar, as palavras que contam, do que acaba de ser dito, as palavras que convém dizer -e não são necessariamente muitas.
Elas as falam, ao falar sobre elas, para me fazer pensar que sou eu quem está falando. Ou eu as falo, ao falar sobre sabe lá Deus o que, para me fazer pensar que não sou eu quem está falando. Ou, antes, é o silêncio, e assim por diante -entende?-, e vem a pancadaria, se bem que acompanhada de uma noção de beleza, de uma coisa dita que é dita com dificuldade porque não é fácil de dizer, e dizer uma coisa difícil não é algo da menor importância para nós, que, nestes dias, andamos tão mimados, exageradamente enamorados de tudo o que é fácil.

Discurso sem aspas
Esses são livros que negam ao discurso direto a distinção das aspas, livros em que a paragrafação parece ser um luxo com o qual o autor não tinha como arcar, livros em que as frases às vezes se estendem por três páginas ou mais, de modo que, quando outras frases, mais curtas, revelam a familiaridade de seu autor com a concisão, isso possivelmente irrita o leitor ou ao menos o leva a suspirar e a indagar a si mesmo: por que esse sujeito não faz isso com mais freqüência?, por que nos atormentar dessa maneira?, qual a razão desses intermináveis e labirínticos túneis de palavras que ele nos faz atravessar? E, todavia... E, todavia... No fim do túnel é uma beleza só. Não agüento mais, queixa-se o leitor, mas vou em frente.
Para enfrentar o problema da dificuldade, a solução é render-se. Quando nos rendemos, uma flor rara, ainda que precária, desabrocha. Tão logo deixamos de cobrar o que falta à narrativa, percebemos o que ela contém.
É em meio à tranqüilidade da decomposição que rememoro a vasta e confusa emoção que foi minha vida, escreve Molloy, e que a julgo, como dizem que Deus há de me julgar -e com não menos impertinência.
Um escritor -Samuel Beckett, não Molloy ou Beckett disfarçado de Molloy ou Beckett tentando alcançar, por meio de Molloy, algo que não é Beckett nem Molloy- tenta o impossível, a saber, escrever sobre a morte, o fim último, o fim que dá cabo do futuro e de todos os outros tempos verbais, o pretérito imperfeito, o presente do subjuntivo, o presente do indicativo, o mais-que-perfeito, e procura fazê-lo recorrendo não à profecia, mas à memória.
Rememorar não somente o que aconteceu, essa vasta e confusa emoção, mas também o que não aconteceu -aquilo de que nenhum ser humano guarda uma memória viva, pois é em si mesmo o fim da memória-, significa afirmar a primazia da vida sobre a morte, pois a memória é o instrumento por meio do qual os vivos conhecem e esquecem e compreendem e se equivocam, de modo que não poderia haver melhor instrumento para brandirmos como uma arma contra a morte, não obstante sabermos que será insuficiente, mesmo sabendo do resultado inexorável, sabendo-o e não desistindo-ou não por enquanto, ainda não, não antes que mais algumas palavras tenham sido pronunciadas, não até que a memória tenha falado, tal qual o artista, seja ele Beckett ou Nabokov, exige e determina.
Por isso é possível afirmar, como afirmo aqui, e convoco toda a minha capacidade assertiva para o fazer, que esses livros, embora aparentemente versem sobre a morte, são na realidade livros sobre a vida, sobre a interminável batalha da vida contra sua sombra, a vida revelada perto do fim da batalha, estampando todas as cicatrizes acumuladas ao longo de sua existência, mas vida não obstante, vida rememorada, pútrida, insignificante, de que nada é mais importante. Vida enquanto paradoxo, cada afirmação contraditada pela seguinte, vida enquanto contradição, vida que se anula a si mesma.
Molloy, Malone e o Inominável encaram a morte. Porém são seres humanos. A agonia é o único problema, Malone adverte a si próprio, preciso me precaver contra ela.
Entretanto, mesmo quando aumenta o risco da agonia, ele se dá conta de que ainda tem histórias para contar, uma sobre um homem, outra sobre uma mulher, uma terceira sobre uma coisa e, finalmente, uma sobre um animal, e Malone sabe que todas elas fazem parte de sua própria história.
Que tédio, exclama ele, até parece que estou falando de mim de novo, e é claro que está recorrendo a sua meia-história sobre Saposcat, que se metamorfoseia em Macmann, assim como a suas outras meias-histórias, a fim de escorar o último dique da vida, até não conseguir mais escorá-lo, até soar o gorgolejo do transbordamento, que todos ouviremos no final, como bem sabe a memória.
A morte reduz a vida a sua essência, antes de dar cabo dessa essência, e esses livros imitam a morte e descartam tudo o que não seja essencial. As palavras são essenciais, por isso algumas palavras são preservadas, e as histórias não podem ser totalmente dispensadas, de modo que são iniciadas e modificadas e descartadas, mas jamais completamente abandonadas, pois é nas histórias que mora a vida, enquanto houver moradia, até despejo final.

Fragmentos de histórias
Ou seja: algumas palavras, fragmentos de histórias, os quais, apesar de seu aspecto aparentemente perfunctório, possuem uma imprevista capacidade de fascinar, não somente de fazer o tempo passar mas de animá-lo -e além das palavras e das histórias estão as coisas, muletas, por exemplo, ou bicicletas, e além das coisas estão outras pessoas, um filho, uma mulher libidinosa, um homem que persegue outro homem e que, ao invés de o encontrar, se perde, um homem, é necessário dizer, com um guarda-chuva.
Perdi meu bastão, diz Malone. Esse foi o acontecimento mais importante do dia. Nesses dias, os dias felizes de Beckett, respirar é um acontecimento extraordinário e pensar também, e no fim, ou perto do fim, há o "eu" que desiste de imaginar, o sem-nome, inominado e inominável "eu". Esses Murphys, Molloys e Malones não me enganam, diz ele. Me fizeram perder tempo, sofri à toa falando deles quando, para parar de falar, eu devia era ter falado de mim, de mim e de mais ninguém, diz ele, o "eu" que é o autor e também o não-autor, que é Beckett e o Inominável, ou que é Beckett enquanto Inominável, ou Beckett por meio do Inominável, tentando alcançar algo que não é Beckett nem Inominável.
Não tem ninguém aqui além de mim, diz ele. Eu, a respeito de quem nada sei. E é este, por fim, o grande tema desse grande escritor, o "eu" a respeito de quem ele nada sabe, o "eu" que jaz além do chapéu de Malone ou do capote de Molloy ou do terno de Murphy, embora às vezes tenha vestido todos os três, o "eu" que não dá a mínima para bares e restaurantes, conquanto às vezes tenha freqüentado esses lugares.
Talvez eu seja isso, diz ele, a coisa que divide o mundo em dois -de um lado o lado externo, do outro o lado interno- e que pode ser fina como uma folha de papel, não sou nem um lado nem outro, estou no meio, sou a divisão.
A coisa que fala. Um sujeito que possui extraordinário domínio do inglês resolve falar em francês, língua em que ele tem mais dificuldade, de modo que é obrigado a escolher cuidadosamente as palavras, é forçado a abrir mão da fluência e encontrar as palavras difíceis que só vêm com muito custo -e então, depois de todo esse esforço, trata de verter tudo de volta para o inglês, um inglês novo, que contém toda a dificuldade do francês, do pensamento forjado numa segunda língua, um inglês novo que é capaz de mudar o inglês para sempre. Este é Samuel Beckett. Esta a sua grande obra. A coisa que fala.
Rendamo-nos.

Salman Rushdie é romancista anglo-indiano, autor de "Os Versos Satânicos" (Cia. das Letras). Este texto é parte da introdução à edição dos romances de Samuel Beckett que sairá pela editora Grove.
Tradução de Alexandre Huebner.


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