São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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+ sociedade

GOVERNANTE PRECISA APROVEITAR A CIRCUNSTÂNCIA EXTERNA FAVORÁVEL PARA DEFINIR METAS POSSÍVEIS E COLOCÁ-LAS EM PRÁTICA

Um apelo ao presidente

por Alain Touraine

A eleição de Lula no Brasil criou tantas expectativas, mesmo entre os que tinham uma opinião favorável a respeito do governo Fernando Henrique Cardoso, que é preciso se perguntar, agora que o presidente está quase na metade do seu mandato e que as eleições municipais se aproximam, sobre os resultados obtidos, as incertezas que persistem e as decepções que não param de aumentar. O mais simples é partir não de uma descrição detalhada dos problemas, mas da pergunta que o continente inteiro se faz: pode-se realizar uma profunda transformação da estrutura social de um país, isto é, sobretudo, redistribuir a renda, respeitando as regras democráticas? A essa primeira pergunta, deve-se acrescentar uma segunda: é possível fazer reformas significativas num país tão dependente do crédito e do investimento externos? Quando Lula chegou ao poder, alguns temiam que cedesse a um populismo revolucionário e se apoiasse mais em seu prestígio pessoal do que nos procedimentos parlamentares de praxe. Logo se tranqüilizaram, e FHC fez bem em facilitar a transição para o governo Lula. Também se pode considerar um sucesso a boa acolhida que Lula recebeu dos dirigentes da economia mundial. O G-7 (ou G-8) necessita de um intermediário entre os países ricos e os países pobres. O Brasil é o mais bem qualificado -mais do que a Índia- para desempenhar esse papel, o que lhe garante status de grande potência. Portanto, nesses dois campos fundamentais o sucesso é evidente: Lula conta com a confiança dos dirigentes e da opinião pública mundial e, no plano interno, continua contando com o apoio de grande maioria da população. Resta o outro lado da questão: que mudanças profundas podem e devem ser feitas? A meta da erradicação da fome comove e mobiliza, mas é muito vaga e não implica transformações sociais claras. Também se falou muito em acelerar a reforma agrária, terreno em que o governo anterior promoveu grandes avanços, mas é preocupante ver o Brasil ser tratado como um país agrícola e rural, quando é, já faz muito tempo, urbano, industrial e até metropolitano. Estamos diante das duas perguntas mais importantes: qual é a principal meta social do governo e como ela pode ser alcançada?

Ideologias irrealistas
A primeira questão é a mais difícil, pois os problemas que ela implica têm sido obscurecidos por ideologias irrealistas. Na América Latina, as classes e as relações de classe são mal definidas, já que os dois elementos centrais da situação são a dependência do capital estrangeiro e o papel de integração social desempenhado pelo Estado, que divide a população em integrados e outsiders, como diz Norbert Elias, isto é, "excluídos". O que tem uma conseqüência da maior relevância: o campo de ação mais importante no Brasil não é o econômico e muito menos o político no sentido estrito. A grande meta que o Brasil deve perseguir é a da reconstrução -material, econômica e cultural- de uma parte das grandes cidades e, mais precisamente, das duas maiores metrópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, onde milhões de habitantes vivem em condições precárias e inaceitáveis de moradia, saneamento, fornecimento de energia, educação e saúde. A revitalização de uma grande parte das principais metrópoles deve ser uma meta federal, pois as prefeituras não dispõem de recursos suficientes para realizar reformas dessa magnitude. O que leva à segunda pergunta: como obter os recursos necessários para a reconstrução? A resposta a essa questão não é técnica: a redistribuição de renda é impossível sem pressão popular, social e política. Lula é o único que dispõe da influência necessária para fazer essa pressão aumentar.

Ação restrita
De fato, ela não existe. O Brasil não está mais mobilizado do que o Chile nem menos do que a Argentina. A razão desse estranho silêncio já é do conhecimento de todos: em quase nenhum lugar do continente existe um ator coletivo autônomo, e a confiança na guerrilha somada ao exemplo cubano contribuem para enfraquecer a capacidade e o desejo de mobilização ativa. Se Lula não se moveu para a extrema esquerda, sua ação continua aquém das necessidades e das possibilidades do país. Deveríamos concluir, então, que a síntese da transformação social e da democracia política é impossível e que não existe nenhuma alternativa entre a violência política e as transformações lentas, positivas, sem dúvida, mas que não chegam a alterar a enorme desigualdade que reina no país? As eleições municipais se aproximam, e depois delas provavelmente será mais difícil promover grandes iniciativas sociais. É preciso, no entanto, que o maior número possível de vozes se faça ouvir, para conclamar o presidente Lula, que possui a confiança da maioria dos eleitores, a definir metas claras e os meios necessários para alcançá-las.

Riscos na América Latina
A conjuntura no Sul do continente é favorável e não apenas por causa do Chile, onde o aumento do preço do cobre vem enriquecendo a sociedade e o Estado. Por outro lado, os EUA estão muito envolvidos com o Iraque para correr riscos na América Latina.
O momento é de urgência. O governo brasileiro deve anunciar um programa e uma agenda de ação. O enfraquecimento ou a perda da esperança depositada em Lula trariam o desespero, no mundo inteiro, aos que reconheceram nele o militante social e o estadista democrático, o único capaz de descobrir a síntese da democracia política com a luta contra a desigualdade e a injustiça.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Traduzido por Rubia Prates Goldoni.


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