São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A guerra dos nomes

CONFLITO ENTRE "CIBERGRILEIROS" E PROPRIETÁRIOS DE MARCAS REGISTRADAS, COMO COCA-COLA E ARMANI, COLOCA EM XEQUE OS CONCEITOS DE LEGITIMIDADE E LIBERDADE NA INTERNET

por James Gleick

Ninguém é dono do próprio nome. Os joões da silva sabem disso muito bem. E não só eles...
A rede de cafeterias de Seattle conhecida como Starbucks é dona do próprio nome e talvez de algumas coisinhas mais. A empresa entrou na Justiça para impedir que um par de cafeterias de Xangai use o nome "Xingbake". Afinal de contas, estamos na era da globalização. Em chinês, "star" = "xing" e, de certa forma, Starbucks = Xingbake. "Adotamos o nome primeiro", diz o gerente-geral da Xingbake. "Não conseguirão tirá-lo de nós." O nome dele é Mao.
Um compositor de Atlanta conhecido como Bill Wyman recebeu uma carta em que os advogados do ex-baixista dos Rolling Stones, conhecido como Bill Wyman, ameaçam processá-lo caso não pare de usar esse nome. Em sua resposta, o primeiro Bill Wyman observa que o verdadeiro nome do segundo Bill Wyman é William George Perks.
A montadora de automóveis alemã Porsche já se envolveu numa série de batalhas para proteger o nome Carrera. Mas uma aldeia suíça, de código postal 7122, também tem pretensões em relação ao nome. "A aldeia de Carrerra nasceu antes da marca Porsche", afirma o suíço Christoph Reuss em correspondência enviada aos advogados da montadora. "A utilização desse nome pela Porsche constitui uma apropriação indevida da boa reputação de que desfrutam os habitantes de Carrera." E Reuss ainda acrescenta: "A aldeia emite muito menos ruído e poluição do que o Porsche Carrera". Esqueceu de mencionar que José Carreras, o cantor de óperas, viu-se enredado em conflito semelhante. Ao mesmo tempo, a montadora também alega que o número 911 [Porsche 911 Carrera] é marca registrada sua.
O empresário Jeff Burgar, morador de High Prairie, uma cidadezinha do Estado de Alberta, no Canadá, é dono de uma porção de nomes em território "pontocom". Em 1996, ele registrou o nome de J.R.R. Tolkien como um domínio na internet e se manteve em posse do jrrtolkien.com até o início deste ano, quando um painel de arbitragem da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) o tirou de suas mãos. O nome Tolkien -mais do que a própria prosa, as histórias, os personagens, as idéias- é um grande negócio. Outros que alegam possuir pedaços dele -como nome comercial e marca (registrada ou não)- são herdeiros, editoras e produtoras de cinema. Obviamente, pouco lhes importa o fato de que alguns milhares de pessoas espalhadas pelo mundo inteiro tenham recebido honestamente esse sobrenome de seus pais.
E não foi somente do nome de Tolkien que Burgar se apropriou. Sua coleção chega a mais de 1.500 nomes e inclui, entre outros, Celine Dion, Albert Einstein e Michael Crichton. Em muitos casos, o canadense teve de enfrentar disputas judiciais -por intermédio da Universidade Hebraica de Jerusalém, até o fantasma de Albert Einstein entrou na parada- e perdeu a maioria delas, mas não todas. "É um tribunal de araque", diz ele em tom despreocupado. "Parecem interpretar as normas de acordo com as circunstâncias do momento." De qualquer forma, Burgar é o dono, ao menos na internet, do nome de Bruce Springsteen.
O fato é que o mundo está diante de uma escassez de nomes. O rol de possibilidades parece quase infinito, mas a demanda é ainda maior. A ascensão da comunicação instantânea, a expansão das empresas por todo o planeta e o aniquilamento da geografia pela internet Mesmo assim, nomes como Lamictal e Lamisil, Ludiomil e Lomotil foram aprovados. E é óbvio que as preocupações das empresas farmacêuticas são outras: gastam milhões de dólares em pesquisas de mercado para se certificar de que os nomes de suas drogas sejam a um só tempo sérios e atraentes. O produto para queda de cabelos Rogaine foi assim batizado para fazer o consumidor pensar em "regain" [recuperar].
"No âmbito da comunicação empresarial talvez não haja hoje em dia questão tão importante quanto a dos nomes", diz Naseem Javed, fundador do banco de nomes corporativos ABC Namebank International. "Com milhões e milhões de marcas colidindo no ciberespaço, escolher um nome deixou de ser assunto menor." As empresas não podem mais dizer: "Somos fabricantes de máquinas industriais e atuamos no mercado internacional, de modo que nos chamaremos International Business Machines".
"O nome General Motors era apropriado para um gigante industrial nos anos 1920, mas não funciona mais", diz Javed. "Acabaram-se as figurinhas fáceis -aqueles signos e constelações do zodíaco, nomes como Gênesis, Pégasus, isso já era. Maçãs, laranjas, abacaxis. O caso das empresas jornalísticas é exemplar: há milhares de jornais chamados Correio, Diário, Gazeta, Jornal. Esse pessoal vai ter muita dor de cabeça no ciberespaço."
Desesperados para descobrir nomes novos, os departamentos de marketing e os empresários que desejam abrir novos negócios às vezes chegam a resultados ridículos. Para selecionar alguns dos piores, um banco de nomes da Califórnia criou o Shinola Awards. Entre os últimos "vencedores" -futuristas, nada mnemônicos, pseudolatinados, quase impronunciáveis - incluem-se Achieva, Altria e Cruex. Em 2001, o Royal Mail britânico gastou milhões de libras para se reinventar como Consignia, alcunha que menos de um ano depois teve de ser descartada por ter virado motivo de chacota.
Há ocasiões, porém, em que o desespero produz soluções brilhantes. Não é decerto coincidência que os dois nomes que triunfaram de forma mais espetacular no ciberespaço sejam cunhagens que beiram o "nonsense": Yahoo! (não se deve jamais omitir o ponto de exclamação) e Google.
A globalização põe abaixo as paredes que compartimentam nosso universo mental coletivo. Algumas delas são geográficas, outras meramente semânticas. O que é, por exemplo, Domino [dominó]? Depende do contexto. Alguns talvez pensem em pizza. Outros pensarão em açúcar [referência a duas empresas americanas: uma rede de pizzarias e uma fabricante de açúcar]. No mundo do software, Domino é o nome de um software servidor de e-mail. No mundo da música é o selo de uma gravadora. Há também o jogo. Quanto à marca registrada, direitos de propriedade foram concedidos pelos Estados Unidos a algumas centenas de litigantes. Num mundo complexo, as palavras mais simples são justamente as mais subscritas.
Uma maneira de tentar resolver disputas em torno de nomes é penetrar na cabeça das pessoas e descobrir o que há lá dentro. Foi o que tentaram fazer duas empresas litigantes num célebre caso envolvendo a marca Domino. Ambas encomendaram pesquisas de opinião pública com o objetivo de verificar qual das duas conotações -pizza versus açúcar- era mentalmente dominante. No entanto, como essas pesquisas foram feitas com diferentes tipos de pessoas, as duas partes obtiveram dados que respaldavam suas alegações. Fregueses abordados em pontos de revenda da Domino's Pizza tendiam a pensar em pizza, donas de casa consultadas em seus lares tendiam a pensar em açúcar (a decisão do juiz federal encarregado do caso foi que as duas poderiam coexistir). Formamos uma massa de 6 bilhões de habitantes no mundo, mas individualmente nossa volubilidade é enorme, dotados como somos de cérebros em estado de fluxo permanente. Conforme a disposição de espírito ou a hora do dia, o nome Madonna pode evocar a cantora ou a Virgem. O mesmo vale para a "distância" mental entre os medicamentos Zeldox, Zovirax, Zephrex e Zyprexa. Para o bem e para o mal, a legislação insiste em perscrutar a mente das pessoas: disputas são resolvidas com base em conceitos como diferenciabilidade e confusão.
Atualmente a maior parte desses conflitos tem lugar no mundo on-line. Os litígios envolvendo nomes de domínio na internet começaram a irromper na década passada e tornaram-se epidêmicos durante o "boom pontocom"; agora vêm colocando problemas particularmente complexos. A internet não é só uma incubadora de nomes-espaços, é ela própria um nome-espaço. A navegação pela rede global de computadores depende de um sistema especial de nomes de domínio. Em termos técnicos, esses nomes são meras fachadas para números, os endereços de protocolos de internet. Os computadores da internet efetuam a conversão nos bastidores, traduzindo, por exemplo, coca-cola.com por 129.33.45.163.
A atribuição de nomes de domínio a endereços particulares pode ser alterada em questão de instantes; as instruções necessárias propagam-se automaticamente pela rede sob o controle de um computador situado em Reston, no Estado americano de Virgínia. Trata-se do "servidor raiz primário" -também conhecido pelo epíteto não tão afetuoso de "Caixa Preta". O sistema de atribuição de nomes de domínio foi projetado por pessoas de mentalidade técnica, numa atmosfera de idealismo e ingenuidade, sem advogados de marcas e patentes por perto. Os nomes de domínio eram distribuídos à vontade; quem chegasse primeiro, levava. Afinal de contas, a mina parecia inesgotável. Foi então que surgiu o já mencionado Jeff Burgar.
Recorda ele: "Eu trabalhava para um provedor de serviços de internet. Tivemos de registrar o nome de domínio de nossa empresa e então eu pensei: "Puxa, que situação interessante!". Saí em busca de informações e descobri que os nomes de domínio eram gratuitos. E nós acreditávamos para valer na internet e no potencial da rede". Isso foi há dez anos.
Burgar não se deixa encontrar com facilidade; o jrrtolkien.com, assim como muitos de seus domínios que usam nomes de celebridades, foi registrado por uma empresa chamada Alberta Hot Rods [Alberta "Envenenada"] (um erro do escrevente, insiste ele). A princípio não queria ser entrevistado, pois receia que o acusem de cometer o pecado normalmente associado a esse ramo de atividade: registrar o nome de outras pessoas na expectativa de extorquir dinheiro delas. Ele nega ter feito semelhante coisa. Diz que não passa de um colecionador, de um editor. "No frigir dos ovos, é uma questão de liberdade de imprensa", afirma. "Por que não posso publicar um website sobre a atriz Carmen Electra e chamá-lo de carmenelectra.com?"
"Fico muito ofendido quando as pessoas me acusam de ser um "cibergrileiro", coisa que não sou", queixa-se.
Burgar conseguiu manter a posse do nome de domínio brucespringsteen.com graças a uma decisão polêmica entre os próprios árbitros da OMPI. O domínio havia sido registrado em nome do "fã-clube de Bruce Springsteen" de High Prairie -organização sobre a qual não se tem nenhuma outra notícia.
O painel de arbitragem da OMPI considerou que o verdadeiro Bruce Springsteen, "o famoso, quase lendário, cantor e compositor", tinha alguns direitos sobre seu nome, mas acabou por concluir que Burgar não o estava usando de má-fé.
Se não pretende vendê-los, o que Burgar fará com esses nomes? Aqui sua resposta é um tanto vaga: "A mesma coisa que faremos com os websites". Quer dizer que a idéia é criar sites para os fãs dessas pessoas? No início, muitos nomes famosos foram registrados por fãs autênticos, e não por indivíduos interessados em arrancar dinheiro de celebridades. "Bem, vejamos", diz ele em tom sarcástico. "Um dos nossos domínios é o genghiskhan.com. Se eu criar um site contendo informações sobre Gengis Khan, você o classificaria como um site de fãs?" Ao que tudo indica, porém, tal site deve ser um projeto, para o futuro. Por ora, esse nome de domínio, como a maioria dos que foram registrados por Burgar, redireciona o usuário para um site genérico, também de sua propriedade, sobre gente famosa.
Quando a internet não existia, Ratan N. Tata, de Bombaim, presidente do Tata Group, maior império empresarial indiano, não perdia tempo brigando com pornógrafos americanos. Ocorre que ele se preocupa bastante com o próprio nome e dá muita importância à reputação que esse nome tem na praça. Sob seu controle estão empresas como Tata Steel, Tata Engineering, Tata Power, Tata Chemicals, Tata Finance, Tata Telecom e Tata Tea; isso para não falar na Tata Sons Ltda. e no Sir Ratan Tata Trust.


Com a comercialização, tudo mudou; a McDonald's Corporation teve de mendigar por nomes de domínio epônimos com os indivíduos que haviam tido a clarividência de registrá-los antes


Então um sujeito de Nova Jersey registrou o nome de domínio bodacious-tatas.com e o usou para exibir o que tempos mais tarde viria a ser mencionado em autos judiciais como "material explicitamente sexual". A House of Tata moveu uma ação judicial, alegando que o website estava "fazendo dinheiro" com seu respeitado nome. Em 1999, Tata obteve um medida cautelar. Concedida pelo Tribunal Superior de Justiça de Nova Déli, porém, tal medida não teve nenhum efeito prático sobre o site pornográfico de Nova Jersey. Por isso a empresa apresentou uma queixa à Organização Mundial da Propriedade Intelectual, exigindo o cancelamento do nome de domínio.
A decisão do árbitro da OMPI tornou-se célebre.
Em seu julgamento ele inicialmente estabelece que Tata é um exemplo típico de marca registrada: "Hoje em dia prevalece na maioria dos países a opinião de que marcas conhecidas, em particular aquelas envoltas numa aura de boa reputação, qualidade e respeitabilidade, merecem ampla proteção".
Em seguida, examina a questão da palavra adicional, "bodacious". O problema aqui é determinar se "tata" e "bodacious-tatas" são nomes "confusamente similares" -o teste canônico para a violação de marcas registradas. Sua conclusão é a seguinte: "A adição de uma palavra como "bodacious" ["regionalismo típico das regiões Central e Sul dos EUA: 1. categórico; óbvio; inequívoco; 2. extraordinário; excelente; 3. ousado; atrevido; impudente" - "Webster's Dictionary of the English Language') e o acréscimo da letra S não torna o nome de domínio menos idêntico ou confusamente similar à referida marca. De fato, o que ocorre é o inverso, sobretudo quando se considera a maioria dos significados atribuídos à palavra "bodacious'". Devido ao "enorme alcance" da internet, afirma o árbitro da OMPI, as pessoas podem muito bem ser induzidas a pensar que o Tata Group entrou no ramo da pornografia. O nome de domínio foi cancelado.
Isso provocou certo furor na internet. James Love, diretor da Consumer Project on Technology, organização não-governamental que acompanha vários julgamentos da OMPI sobre conflitos envolvendo nomes de domínio, considera a decisão um abuso de poder. "Parece-me implausível imaginar que alguém pense que um domínio chamado "bodacious-tatas" tenha algo a ver com esse gigante empresarial ou que as pessoas o digitem por engano", diz ele.
O czar mundial das disputas envolvendo nomes de domínio é um australiano de modos corteses chamado Francis Gurry, diretor-geral-adjunto da OMPI e responsável por muitas das várias de suas atividades relacionadas à era da eletrônica. Sem se perturbar e de forma extremamente convincente, Gurry afirma que não fazia a menor idéia do que "tatas" significava ["tatas" é gíria americana para seios; "bodacious tatas", outra gíria, significa seios grandes]. Para um czar, sua autoridade é bastante restrita -e ele próprio é o primeiro a admitir o que há de peculiar nela. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual é um órgão internacional criado por um tratado assinado por 180 países.
Mas, nessa área específica, a OMPI está subordinada à Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (Icann), organização privada americana que é responsável pelo gerenciamento dos nomes e endereços da internet -em outras palavras, controla o computador "Caixa Preta". A Icann delega a responsabilidade pelo registro de nomes de domínio a uma série de empresas com fins lucrativos -mais de cem, segundo a última contagem-, as quais são obrigadas a agir em conformidade com um procedimento de resolução de litígios elaborado em comum acordo com a OMPI. Por sua vez, os detalhes práticos da resolução de litígios são delegados a alguns órgãos de arbitragem, em especial a OMPI.
A primeira onda de conflitos veio à tona com o "boom pontocom", quando se assistiu a uma extraordinária mudança na própria natureza dos nomes de domínio. "Creio que é apropriado dizer que presenciamos uma mutação espontânea", diz Gurry. "No início, esses endereços tinham finalidade estritamente técnica. A mutação foi causada pela autorização para o desenvolvimento de atividades comerciais na internet. Até então, como a rede era utilizada apenas como instrumento de pesquisa, as pessoas se limitavam a achar graça quando alguém registrava um nome como McDonald's ou Coca-Cola ou outro qualquer."
Com a comercialização, tudo mudou. A McDonald's Corporation (assim como a The New York Times Company) teve de mendigar por nomes de domínio epônimos com os indivíduos que haviam tido a clarividência de registrá-los antes. Outras empresas, proprietárias de marcas importantes, viram-se em palpos de aranha até o surgimento do sistema elaborado pela Icann e a OMPI. Seguiu-se uma profusão de casos contrapondo proprietários de marcas registradas e "cibergrileiros", em geral decididos em favor dos primeiros.
A Time Warner ganhou um processo que envolvia 108 variações em torno do tema "Harry Potter". A gigante de telecomunicações sueca Telia brigou por 204 variações em torno de seu nome e teve quase todos os pleitos atendidos -só não conseguiu recuperar o domínio itelia.org. Esses casos pareciam bastante simples, ao menos para os árbitros da OMPI. A nova geração de conflitos envolvendo nomes de domínio é bem mais espinhosa.
Tais processos são conduzidos sob a influência determinante, mas jamais explicitamente admitida, do direito de marcas e patentes. O fato é que a legislação varia de país para país e, em tese, os árbitros não devem se basear nas leis de nenhum país. Assim, suas decisões são pautadas pela Uniform Domain Name Dispute Resolution Policy [Política Uniforme para a Resolução de Litígios Envolvendo Nomes de Domínio] da Icann. Trata-se de uma análise realizada em três etapas que se pretendem claras e precisas.
Em primeiro lugar, o reclamante deve possuir direitos sobre o nome ou sobre um nome "idêntico ou confusamente similar" a ele. O nome não precisa ser uma marca registrada propriamente dita, mas tem que apresentar um histórico comercial. Dessa maneira, protegem-se os nomes de atores, músicos e até escritores, mas não os de políticos, cientistas e líderes religiosos. ("Francisgurry?" "Não", diz Gurry, "infelizmente não sou comercializável. Em seu estado atual, o sistema de marcas registradas funciona com uma concepção bastante materialista. E, quando é transplantado para a internet, não produz necessariamente os resultados que as pessoas desejam.")
Em seguida, o reclamante deve provar que o proprietário do nome de domínio não tem nenhum direito legítimo ao nome. Isso nem sempre é tão simples quanto parece.
Por fim, o reclamante precisa demonstrar que o proprietário do nome de domínio o utiliza de "má-fé". Essa expressão fundamental não está bem definida. Na prática, qualquer tentativa de obter lucros com o nome de domínio constitui evidência inicial de má-fé.
No intuito de oferecer respostas a problemas que ultrapassam a esfera da legislação de marcas e patentes, a OMPI vem tentando ampliar o alcance das normas sobre nomes de domínio. Sua jurisdição é circunscrita aos nomes de domínio da internet, mas as questões têm implicações cada vez mais abrangentes, e as controvérsias realmente espinhosas estão apenas começando a aparecer, diz Gurry. "O problema é maior que a internet", acrescenta ele. "Até agora vivíamos numa situação em que alguns nomes tinham determinado status em certas localidades. Com o avanço das telecomunicações e dos meios de transporte, porém, esses nomes passaram a transcender as localidades de origem. Os governos nacionais já não são capazes de controlar o fluxo de pessoas, bens, capitais, idéias, vírus ou o que mais transite entre suas fronteiras. Isso tem conseqüências para os nomes, assim como para uma série de outras coisas."
No tocante aos nomes internacionais, as dificuldades começam a ficar evidentes para as empresas farmacêuticas, uma vez que seu interesse em manter marcas registradas entra em conflito com o interesso público em dispor de nomes genéricos que os pacientes possam reconhecer onde quer que estejam. Nomes baseados na geografia também apresentam problemas especiais. "O fato é que não estamos lidando com essa questão", adverte Gurry. "Nomes de países, nomes de cidades, nomes de vilas, nomes "geoétnicos". Árabe, Europa, América: deve haver direitos sobre eles? E o que dizer dos nomes de povos e tribos indígenas? A maioria já está registrada. E, quanto mais adentramos o território em que os sistemas de atribuição de nomes são influenciados pela geografia, mais nos apercebemos da ausência de lógica." Considere-se o nome de duas bebidas bastante conhecidas: Bordeaux e Manhattan. São dois nomes geográficos que, por uma razão técnica, se encontram em situações legais completamente distintas. A primeira dessas bebidas possui qualidades derivadas da região que lhe empresta o nome: especificamente, de seu solo e uvas. Um verdadeiro vinho Bordeaux deve ser produzido no Sudoeste da França; um autêntico coquetel Manhattan, porém, pode ser feito em qualquer lugar.
Eis outro nome problemático: Budweiser. Antes de ser uma cerveja americana, era uma cidade tcheca. "Há uma antiga disputa", relata Gurry, "entre os tchecos, que não aceitam uma cerveja com o nome "Budweiser" em seu país, e a Budweiser, que é uma marca registrada. É por essa razão que a Budweiser não é comercializada na Suíça".


Os governos nacionais já não são capazes de controlar o fluxo de pessoas, bens, capitais, idéias, vírus ou o que mais transite entre suas fronteiras


Há casos simples e casos complicados. Entre os primeiros, figura a disputa em torno do nome de domínio madonna.com. A cantora Madonna Ciccone conseguiu tirá-lo das mãos de um tal de Dan Parisi, que o usava como endereço de mais um "portal de entretenimento adulto". Parisi ainda tentou alegar que a cantora não era a usuária original do nome. Além disso, sua página de abertura estampava a advertência: "Este site não tem nenhum vínculo com a Igreja Católica, o Madonna College, o Madonna Hospital ou a cantora Madonna". Na última hora ele ainda tentou transferir o domínio para o Madonna Rehabilitation Hospital, localizado em Lincoln, no Estado americano de Nebraska, mas o painel de arbitragem se mostrou irredutível.
Bem mais complexa é a situação de Anand Ramnath Mani, um artista gráfico de Vancouver. Acostumado a abreviar o nome, Mani registrou o domínio armani.com, colidindo com a marca Giorgio Armani que seus representantes possuem em vários países. A empresa de Armani passou anos tentando obter o domínio e, por fim, recorreu à OMPI, alegando que "todos os dias, no mundo inteiro, pessoas que procuram pelo site do famoso estilista encontram, com surpresa, o site do sr. Anand Mani, de Vancouver".
O fato, porém, é que Mani jamais se deu o trabalho de criar seu website. O painel de arbitragem não só rejeitou a queixa como censurou a empresa por ter agido com má-fé no processo.
Para a maioria dos americanos, Crazy Horse é o nome de um reverenciado guerreiro Oglala, ao qual os índios sioux chamavam de Ta-Sunko-Witko. Em 1992, tornou-se também o nome de uma bebida à base de malte comercializada pela Stroh Brewing Company. Um ano depois, como era previsível, o nome foi adotado por um movimento nacional de boicote e educação pública. O fabricante da bebida acabou por apresentar suas desculpas ao Crazy Horse Defense Project, embora algumas questões remanescentes ainda estejam sub judice. Quando os parisiense compram bonés de beisebol, camisetas, isqueiros ou penhorares com o emblema da Crazy Horse, nem por um momento lhes passa pela cabeça que esse nome está inscrito na tradição dos índios americanos.
Na academia, entre os que se dedicam ao estudo dos nomes próprios -disciplina chamada "onomástica"- é um axioma afirmar que a expansão de unidades sociais conduz à expansão dos sistemas de nomes. Em tribos e vilas, nomes simples bastam: todo mundo sabe a quem se referem os nomes Ulf ou Olga, e isso não dá margem a confusões. Todavia tribos se transformaram em clãs e cidades, em nações, o que obrigou as pessoas a adotarem designações mais complexas: sobrenomes e patrônimos, nomes baseados na geografia e em profissões. Em sua ilustre "Theory of Names" [Teoria dos Nomes], publicada há meio século, Ernst Pulgram afirma que "incrementos nas complexidades da constituição administrativa e social de um grupo étnico ou político tendem a produzir, de modo geral, incrementos na complexidade e rigidez do sistema onomástico". E lá vamos nós de novo, diria ele nos dias que correm. O ciberespaço e a globalização não apenas dão ensejo a conflitos envolvendo nomes como representam uma mudança brutal na escala da sociedade moderna. Entidades multiplicam-se.
"Considere-se a palavra "apple" [maçã]", diz Pulgram. O horticultor e o merceeiro raramente a utilizam; em vez disso, falam em "Pippins, Codlins, Reinettes, Baldwins, McIntosh Reds, Biffins, Rome Beauties" [nomes de variedades de maçãs]. É claro que, hoje em dia, Apple é uma marca de computadores. Também é o nome da gravadora e do grupo empresarial dos Beatles. A Apple Computer e a Apple Corps coexistiram sem maiores problemas por 25 anos. Mas a Apple Computer entrou recentemente no ramo de comercialização de música, levando os representantes dos Beatles a mover uma ação contra ela. Gurry atualiza Pulgram da seguinte maneira: "As pessoas entram e saem de diferentes contextos, usam diversos instrumentos que descontextualizam e tornam a contextualizar, estão aqui, ali, em toda parte. As comunicações e os meios de transporte colocaram em xeque a base contextual dos sistemas de atribuição de nomes".
Quando problemas como esse começaram a fazer ruir os pilares do direito de propriedade intelectual, assistiu-se a uma espécie de surto, uma onda de grilagem. As marcas registradas são um bom exemplo disso. Em 1980, os EUA registravam cerca de 30 mil marcas por ano. No ano passado, o número saltou para 185.182, um aumento de quase 50% em relação a dois anos antes. A vasta maioria das requisições de registro costumava ser rejeitada. Atualmente ocorre o inverso. Algumas das palavras e expressões incluídas na fornada mais recente de marcas registradas, liberada em março de 2004, são: "drive harder", "relaxed luxury", "myassistant", "flexible thinker" (um sujeito que dá palestras motivacionais), "ringwraith" (registrado pelos gananciosos produtores dos filmes baseados na obra de Tolkien). Porventura algum desses nomes é tão especial, criativo ou singular que mereça ser protegido por direitos de propriedade?
Tal esforço para superproteger os nomes dá margem a notórias formas de litígio. Todo pequeno empresário é atormentado por cartas em que advogados os ameaçam com ações judiciais caso não alterem, por um motivo frívolo ou outro, o nome de seus negócios. A Fox News Network foi enxovalhada na Justiça por tentar controlar o uso das palavras "fair and balanced" [equilibrado e imparcial]. Mesmo assim, a Fox ainda é detentora dos direitos de propriedade sobre essas palavras em duas categorias: programas televisivos e gravatas. A organização que mantém o Sistema Dewey de Classificação Decimal processou um hotel temático inspirado em bibliotecas por usar seus números -o quarto 700.003, por exemplo, é dedicado às artes dramáticas e musicais (as partes entraram em acordo). A Pet Friendly, do Alabama, fabricante de brinquedos para animais domésticos, ameaça processar a Pet Friendly Rentals, da Califórnia, imobiliária especializada em imóveis cujos proprietários aceitam inquilinos acompanhados de animais. A marca "Papai Noel" já foi registrada de inúmeras formas. Nada disso contribui para o interesse público. É um desperdício, é dispendioso, é detestável.
É claro que o harry-potter.com deve ficar sob o controle da Time Warner, já que a empresa licenciou os direitos de J.K. Rowling, a inventora do bruxinho. Mas não faz sentido que todas as variações sobre o tema também sejam de sua propriedade. Seria mais apropriado permitir que os websites "eu-amo-harry-potter" florescessem à vontade. Embora a DaimlerChrysler seja a proprietária de Dodge e Viper, é preciso reconhecer que outras pessoas também podem ter interesses legítimos nessas palavras, como é o caso de Brad Bargman, da Flórida, que registrou originalmente o domínio dodgeviper.com, usando-o como um canal de aconselhamento e discussão para entusiastas do carro Dodge Viper (a OMPI transferiu o nome de domínio para a empresa).
Assim, Jeff Burgar, o suposto "cibergrileiro", fala por muitos usuários da internet quando acusa a Icann e a OMPI de defender os interesses do establishment das marcas corporativas. "É uma farsa", diz ele. "O processo de arbitragem é ajustado de forma a tirar os nomes de domínio de uns para dá-los a outros" -isto é, dos que não têm para os que têm. "Quase todos os árbitros são advogados que possuem vínculos com grandes empresas ou celebridades."
Para lidar com a natureza dinâmica, complexa e diversificada de um mundo impulsionado pela informação talvez fosse melhor afrouxar a legislação -relaxar, em vez de apertar o cerco. Talvez seja uma abordagem equivocada basear o sistema nos direitos de propriedade. O que realmente importa às pessoas é a autenticidade. O objetivo da legislação deve ser coibir canalhas que tentam se fazer passar por pessoas que não são e impedi-los de comercializar produtos falsificados -mas é só. O sujeito que criou o bodacious-tatas.com pode ser uma pessoa de mau gosto, mas ele não estava enganando ninguém; sua intenção não era se aproveitar do renome da House of Tata; seus artigos estavam em perfeita conformidade com o que ele anunciava.
Nomes-espaços colidirão. E daí?

James Gleick é autor de, entre outros, "Isaac Newton" (Companhia das Letras). Este texto foi originalmente publicado no "New York Times Magazine".


Texto Anterior: + sociedade: Um apelo ao presidente
Próximo Texto: + autores: O espelho distorcido
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.