São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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+ cultura

PROPOSTA DE UMA NOVA HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA DEVE PENSAR GENEALOGICAMENTE O PASSADO E MARCAR-SE PELA DISSEMINAÇÃO DE TEMPOS E ESPAÇOS

O tempo preocupado

Ettore Finazzi-Agrò
especial para a Folha

Para entender de partida as dificuldades de escrever uma história literária e, mais em particular, de a inscrever no contexto de um país pós-colonial, bastam talvez duas citações de Alfredo Bosi: "Uma história da literatura brasileira que pretendesse ser verdadeira, isto é, fiel ao seu objeto, deveria admitir que os textos dispostos no tempo do relógio não têm nem a continuidade nem a organicidade dos fenômenos da natureza" ("Por um Historicismo Renovado - Reflexo e Reflexão na História Literária", in "Teresa", nº 1, 1º semestre/ 2000, pág. 11). E: "Nos países de passado colonial como o Brasil [...], a coabitação de tempos é mais evidente e tangível do que entre alguns povos mais sincronicamente modernizados do Primeiro Mundo. Talvez o nosso processo de aculturação euro-afro-americano ainda esteja longe de ter-se completado. E certamente os seus descompassos e a sua polirritmia ferem os ouvidos afinados pelo som dos clarins e das trombetas evolucionistas" ("O Tempo e os Tempos", in "Tempo e História", org. de A. Novaes, Cia. das Letras, pág. 32). Como construir uma história que não seja nem seqüencial nem tampouco conseqüencial, no sentido clássico? Uma história descompassada e inconclusa, que não se ordene segundo um eixo cronológico? Que não tenha em conta não apenas o "tempo do relógio", mas -eu acrescentaria- o tempo como nós o conhecemos e como estamos acostumados ao pensar na sua tripartição clássica entre passado, presente e futuro? Essa história sem relógio seria, de fato, uma história dominada pela falta, marcada por uma perda sem remédio de todo suporte (crono)lógico, isto é, uma história sem data e sem tradição e, por isso, não coletiva nem pública, mas abstrata e, ao mesmo tempo, totalmente subjetiva. Para tentar entender o problema e para começar a entrever uma solução, acho que não se pode não transitar pela reflexão de Martin Heidegger sobre "Ser e Tempo", começando justamente pelo capítulo em que ele trata explicitamente da historiografia e daquilo que ele denomina "intratemporalidade". De fato, o nosso ser, segundo o filósofo alemão, se realiza sempre como ser-no-mundo, que por sua vez só pode ser avaliado como ser-no-tempo. Daí, desse nosso existir junto das coisas e em conjunto com os outros, vem a necessidade de uma medida única do tempo, isto é, daquele "utensílio" público marcando desde sempre -antes mesmo da sua invenção enquanto "relógio"- a infinita repetição do tempo astronômico: sem esse limite necessário, aquilo que fica é apenas um espaço baldio e inefável, uma dimensão noturna e sem rumo, anterior a qualquer possível localização, como, pelo contrário, pressupõe o próprio fato de nós existirmos, o nosso incontornável "ser-lá" e a nossa incapacidade de prescindir do "agora".

O ser-para-a-morte
No interior desse pensamento sobre o tempo, encontramos todavia uma noção, por assim dizer, oblíqua como a de cuidado ("Sorge"), que Heidegger liga explicitamente ao ser-no-tempo, chegando até a afirmar que a intratemporalidade é um tomar-cuidado do tempo ou, melhor, que o tempo humano só se dá como "tempo preocupado" (Paul Ricoeur, "La Mémoire, l'Histoire, l'Oubli", ed. Seuil, págs. 499-50). E é essa instância transversal, justamente, que eu proponho aqui reter e usar num contexto em que, como vimos, o relógio "não vale": é essa idéia de um "tempo preocupado", enfim, que eu acho que possa nos ajudar a pensar uma história que não se submeta ao tempo linear, continuando, porém, a ser pública apesar do seu anacronismo e da sua anomia, continuando a ser efetiva apesar do seu instalar-se numa falta.
De fato, é exatamente nesse ponto que a proposta de Heidegger vai além tanto da divisão clássica do tempo entre passado, presente e futuro quanto da sua crítica, por assim dizer, "presencista", que relê (sobretudo a partir de santo Agostinho) aquela tripartição como presença do passado, presença do presente e presença do futuro.
A instância da preocupação, por contra, assenta essencialmente sobre o futuro, sobre o por-vir, dimensão que foi bastante neglicenciada pela historiografia e, mais em geral, pela reflexão sobre o tempo humano (Gerd Bornheim, "A Invenção do Novo", em "Tempo e História", pág. 103). O tomar-cuidado do tempo chama, em suma, a atenção para a nossa tendência em sermos atraídos pelo que pode vir a ser ou pelo que vai acontecer -aquilo que em Heidegger toma a forma extrema do ser-para-a-morte, ponto paradoxal de partida para a revisão preocupada da nossa temporalidade.
Nesse sentido, a reflexão heideggeriana -conjugando-se, obviamente, com a de outros teóricos (com a de Nietzsche, em particular)- ajuda a colocar em dúvida o uso do tempo feito pela historiografia anterior, postulando, contra aquela ordem única e irreversível dos eventos tida por "natural", uma disposição não-taxionômica, uma "coabitação dos tempos": uma dimensão histórica, enfim, em que se cruzam cronologias diferentes, numa conexão não conseqüencial de fatos e de imagens, de eventos e de representações, de idéias e de práticas dispostos apenas no horizonte da pré-ocupação, isto é, de uma ocupação antecedente, de uma antecipação pressurosa, a partir de um futuro que confere ao passado um sentido virtual. E é com certeza significativo que quem experimentou um nova forma de leitura do tempo e das suas marcas no corpo sociocultural não foi, no Brasil do século 19, um historiador "en titre d'office" como Sílvio Romero, e sim um artista, o escritor mais injustamente censurado por ele. O uso da inversão temporal em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ou, embora de forma mais convencional, em "Dom Casmurro" mostra, de fato, a aguda consciência ou o cuidado de Machado com o tempo -tempo revivido a partir do futuro, respectivamente por parte de um morto-vivo e de um vivo-morto, que parece prenunciar a visão heideggeriana da existência como existência preocupada pela morte. São, em suma, fundamentalmente essas "histórias sem data" que, longe de serem não-representativas da cultura brasileira (Sílvio Romero, "História da Literatura Brasileira", tomo 5º, ed. José Olympio, 1954, pág. 1.630), figuram, pelo contrário, poeticamente e com acerto, aquela "outra marcha", aquele tempo descompassado, polirrítmico e "sem relógio" típico da história nacional, explorando a não-contemporaneidade (ou a "intempestividade") de eventos contemporâneos (Roberto Schwarz, "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", Duas Cidades/ed. 34, págs. 197-200 e passim.). Lugares de atraso Depois de Machado, porém, o paradigma historiográfico e o modelo temporal voltaram a ser vinculados a uma ideologia progressiva e linear (na esteira, ainda, da leitura finalista da história, típica do Estado-Nação europeu), com a consciência ulterior, todavia, de que, pela sua vastidão, o Brasil não podia ser incluído por completo num tempo único, que ainda havia de fato, no interior do espaço nacional, lugares de atraso, clareiras de não-contemporâneo que se abriam na contemporaneidade do país. Basta, por isso, considerar a estrutura de uma obra de fundação como "Os Sertões" para ver como a geografia é aí relida numa ótica histórica, interpretando o "antes" como um "ao lado" (Franco Moretti), isto é, tornando o tempo uma metáfora do espaço. Euclides, se aproximando de Canudos (tanto no plano da invenção e da escrita quanto no plano físico do "movimento para"), relê em vertical a formação nacional, procurando no espaço uma resposta às suas preocupações históricas; cavando na terra, com o empenho do arqueólogo, até descobrir a essência mais íntima e secreta, "a rocha viva" da nacionalidade. Chegado, porém, no âmago do tempo e do espaço nacionais, ele se dá conta de que o apagamento violento do antigo, a rasura forçada do não-contemporâneo, arrasta consigo, na sua destruição, também a contemporaneidade nacional ou, melhor, elimina qualquer possibilidade de construir uma história que seja efetivamente progressiva e moderna. Como num castelo de cartas, a queda da "Tróia de taipa" leva a uma implosão do tempo sobre si mesmo, e aquilo que fica é, mais uma vez, um espaço baldio e oco. Pela segunda vez, então, não é um historiador de profissão quem aponta para a impossibilidade de recompor para o Brasil e de escrever no Brasil uma história pautada pelo relógio e marcada pela ordem e pelo progresso: é, por paradoxo, um intelectual que, transitando pelo positivismo, chega todavia a entrever a possibilidade de interpretar a nação só a partir daquela falta que a institui. Como se sabe, de fato, Euclides morreu na ilusão de ter encontrado no coração da selva um espaço "ao lado", "à margem da história" -um território liminar e anterior a tudo, a partir do qual fosse possível reconstruir uma cronologia eventual. Ou seja, um espaço branco e inexplorado, um lugar desmesurado e aparentemente sem memória é apontado como ninho e, ao mesmo tempo, como cova da história: dimensão fronteiriça em que se pode dar uma libertação do tempo do seu ser-tempo, da sua obrigação "pública" e da sua mensurabilidade. Ainda Alfredo Bosi escreveu, aliás, que, no Brasil, "lembra-se tão só o que interessa aqui e agora, o resto se esquece: "les morts vont vite", diz o Conselheiro Aires, versão só aparentemente mitigada do humor negro de Machado. E, quando os mortos se vão depressa, não há História consistente. Cada momento que sobrevém é o atestado de óbito do que se foi, só resta a imediação do corpo lutando pela sua sobrevida" (em "Tempo e História", pág. 25). Uma "outra história" Na verdade, essa obrigação ao presente, esse enterro pressuroso dos mortos, não chega, a meu ver, a negar a história, mas aponta, isso sim, para a possibilidade de uma "outra história", emblematicamente marcada pela heterogeneidade do corpo, pela sua anomia e impermanência, pelas suas faltas e falhas. Nesse sentido, ab-rogando o relógio, não vamos chegar a uma anulação da tradição e do tempo, mas alcançamos, isso sim, uma dimensão histórica complexa, marcada por uma disseminação de tempos e de espaços, de práticas ligadas ao que deve (e ao como deve) incessantemente ser feito.
Uma história, em suma, sempre "em processo" ou "em formação" (e uso aqui, de modo consciente, um termo tão presente na historiografia brasileira), mas nunca verdadeiramente resumida numa "forma", nunca realmente "per-feita": uma história, enfim, capaz de falar contemporaneamente de fatos não contemporâneos e, vice-versa, de descobrir a diacronia implícita na sincronia.
Não tanto, repare-se, uma história das idéias quanto uma tentativa de pensar "genealogicamente" o passado, desenhando uma constelação de "figuras" que resumiriam em si mesmas -pelo fato de "transitarem através das "imagens" literárias e dos conceitos" (Franco Rella, "Miti e Figure del Moderno", ed. Feltrinelli, pág. 10)- um decurso temporal feito de avanços e retrocessos, do que foi e do que pode ser, de fatos e de idéias. Figuras ambíguas, enfim, filhas de uma lógica não-sistemática e abertas tanto para a dimensão social quanto para a literária, em que a continuidade se daria apenas como "resto", visto que, no interior delas, tempo e espaço se combinariam de modo discreto e reversível.
Aquilo que deveria permanecer, dentro desse paradigma lacunoso e subjetivo e todavia pontual e objetivo ao extremo, deveria ser, justamente, aquela "ondulante conduta de confronto com as coisas diante das quais se está" (Benedito Nunes, "Experiências do Tempo", in "Tempo e História", pág. 133) que é o cuidado: seria esse, então, o horizonte necessário dentro do qual inscrever uma história e escrever histórias, garantindo o seu caráter público e a sua eficácia num contexto, como o brasileiro, que é atravessado por uma falha dividindo e ligando tempos e espaços heterogêneos.
Só ficando no interior de uma dimensão pré-ocupada, a meu ver, se pode chegar a construir uma história da literatura dando finalmente conta desse movimento descompassado e "sem relógio", marcado pela presença de "figuras" que se sobrepõem e se confundem -dando conta, enfim, dessa presença fundada sobre uma ausência, dessa tradição que se instala na sua negação, dessa memória se alimentando de olvido, porque, sim, "os mortos vão depressa", mas eles deixam todavia, atrás de si, um lugar cavado no tempo, que é preciso, ao mesmo tempo, cultuar e preencher.


Ettore Finazzi-Agrò é professor titular de literaturas brasileira e portuguesa na Universidade de Roma/La Sapienza e autor de "Um Lugar do Tamanho do Mundo" (ed. UFMG).


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