São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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Ensaios de "Paulística Etc.", de Paulo Prado, e crônicas reunidas em "De São Paulo", de Mário de Andrade, traçam "biografias" da cidade ao retratarem sua ascensão econômica, artística e intelectual

O tupi, o alaúde e o bandeirante

Folha Imagem
"Monumento às Bandeiras", obra de Victor Brecheret (1894-1955), em São Paulo


João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha

As crônicas do jovem Mário de Andrade ["De São Paulo"] e os ensaios do já maduro Paulo Prado ["Paulística Etc."] guardam uma surpreendente unidade de pensamento, reforçada na ação prática da Semana de Arte Moderna. Portanto, a leitura dos dois livros muito tem a ganhar mediante um exercício de aproximação. Exercício facilitado pelo notável trabalho dos organizadores, respectivamente, Telê Ancona Lopez e Carlos Augusto Calil.
Nas crônicas, escritas para a revista carioca "Ilustração Brasileira", Mário de Andrade confessou seu desejo: "Ao mesmo tempo que tenciono mostrar o movimento artístico e literário da gente paulista, é intuito meu explicar a enigmática cidade que a todos os que não a observem amorosamente ou lhe queiram bem guarda-se num mutismo de desdém ou se enteabre num gesto de agressão" (pág. 81). Paulo Prado foi movido por um propósito similar, sintetizado no prefácio à segunda edição de "Paulística": "Este é um livro de estudos regionais. Nele aparecem as figuras típicas da história paulista: o português aventureiro, o mamaluco, o jesuíta, o piratiningano -conquistador e povoador- e o fazendeiro" (pág. 45).
Os dois autores dedicaram-se à biografia de São Paulo. Há, porém, uma diferença significativa de enfoque. Mário de Andrade ocupou-se da vida intelectual e artística da paulicéia modernizada, revelando seu alvo sem disfarces: "Todo este larguíssimo Brasil, que a revista sem dúvida abraçará" (pág. 81). Paulo Prado voltou sua atenção ao passado, a fim de descobrir como o espírito bandeirante contribuiria no enfrentamento do "problema magno de nossa formação -a questão da unidade nacional" (pág. 50). Palavras escritas em 1934, dois anos após a Revolução Constitucionalista. Sem dúvida, tratava-se de um problema atual, demasiadamente atual.
Passado e presente reunidos no projeto de promoção da arte moderna. Na primeira das cinco crônicas, como se tivesse em mãos o programa da Semana de 1922, Mário anunciou o futuro próximo: "São Paulo toda se agita com a aproximação do Centenário. (...) São Paulo quer tornar-se bela e apreciada. Finalmente a cidade espertou num desejo de agradar" (pág. 71). Num artigo escrito em Paris, em dezembro de 1923, "Victor Brecheret e a Semana de Arte Moderna", Paulo Prado recordou o passado imediato com olhos de lince: "Dentro de pouco tempo -talvez bem pouco- o que se chamou em fevereiro de 1922, em São Paulo, a Semana de Arte Moderna, marcará uma data memorável no desenvolvimento literário e artístico do Brasil" (pág. 301). Na verdade, foram necessárias três décadas para o pleno reconhecimento da importância decisiva da Semana, mas o prognóstico, se foi um tanto apressado, nem por isso deixou de ser acertado. A obra de Brecheret aproxima ainda mais os dois autores. Em suas crônicas, Mário destacou sobretudo o "Monumento aos Bandeirantes, hino nacional da raça" (pág. 84). No prefácio à primeira edição, Paulo Prado valorizou idêntico movimento, inclusive reproduzindo parcialmente o vocabulário do poeta: "A bandeira resumiu todas as qualidades e defeitos da raça que se apurara na segregação da montanha" (pág. 60). A equação é clara: as bandeiras remeteriam à origem idealizada do espírito paulista, enquanto a escultura de Brecheret representaria a renovação do impulso desbravador, agora no campo intelectual e artístico. Nesse sentido, vale frisar que, numa escala reduzida, Paulo Prado escreveu o avesso de "Os Sertões". Reencontramos nas páginas de "Paulística" a cisão entre o Sul (litorâneo) e o Norte (agreste). E, numa prosa que sabe a Euclides, redescobrimos o isolamento civilizacional, ocasionado por um meio potencialmente hostil: "O bandeirismo é um resultado da localização do paulista no seu altiplano; a sua expansão, como se deu, era fatal e lógica" (pág. 60). Porém a conseqüência não foi o atavismo e o atraso, mas o dinamismo e o progresso. Por isso, na leitura de Mário de Andrade e de Paulo Prado, passado e presente assegurariam a (legítima) postulação de hegemonia paulista no domínio da cultura e talvez da política, pois o centro econômico do país já se encontrava na paulicéia industrializada. Fiel a seu estilo, Mário foi direito ao ponto: "Já se sente que de novo a cidade gera idéias e escolas, reatando uma tradição quase murcha, quase ofuscada totalmente pelo brilho do Rio" (pág. 86). Paulo Prado afirmou exatamente o mesmo, mas mineiramente fez seu mestre falar: "E o Sul -dizia Capistrano-, o Sul, no fundo, é São Paulo" (pág. 52). Discordar sem mais de Capistrano de Abreu, em 1925, ano da publicação de "Paulística"? Improvável...

Discussão tola
Evitemos uma discussão tola, mas que nos últimos anos recobrou força em alguns meios: a rivalidade entre cariocas e paulistas, relativa à hegemonia cultural do país. Com exceção dos campos de futebol, terreno em que toda rivalidade é sempre bem-vinda, insistir nesse debate revela uma inquietante falta de criatividade.
De um lado, é previsível que, após décadas de supremacia econômica, grupos intelectuais e artísticos paulistas tenham tomado de assalto a cena cultural por meio da operação de guerrilha denominada Semana de Arte Moderna. E, como autênticos guerrilheiros, os bandeirantes modernos viajaram ao Rio de Janeiro, cooptando nomes de peso para sua causa. Com certeza, Paulo Prado brindou com os amigos: "Chapeau!".
De outro lado, eventuais grupos cariocas que legitimamente decidam reverter esse quadro não devem gastar seu precioso tempo na constatação ressentida do óbvio: a perda da hegemonia. Na verdade, deveriam questionar a inépcia de seus governadores, que têm demonstrado um descaso calculado com as universidades estaduais, confundindo apoio à cultura com propaganda eleitoral. Deveriam ainda criticar suas elites econômicas, que nunca se distinguiram pelo apoio a iniciativas culturais de longo prazo. Por fim, essa aborrecida polêmica talvez sobreviva para que não enfrentemos o verdadeiro problema, isto é, a desigual distribuição de recursos federais e a excessiva concentração de capital simbólico (visibilidade) no eixo São Paulo-Rio. O que os intelectuais e artistas do Norte e do Nordeste têm a dizer sobre o assunto?
Não desejo concluir sem destacar a organização dos dois livros.
Em sua introdução, "Mário de Andrade, Cronista do Modernismo", Telê Ancona Lopez realizou um impecável trabalho de contextualização, ampliado nas inúmeras notas às cinco crônicas. Porém o aspecto mais relevante se refere à hipótese que propõe no tocante à gênese de determinados poemas de "Paulicéia Desvairada". Num esforço de detetive, buscou flagrar os "vestígios do processo criativo" do poeta nas crônicas, rastreando suas sucessivas transformações até a versão publicada em livro.
Ora, a crítica genética supõe tanto a existência de manuscritos prévios à publicação "final" em livro quanto a evidência de correções da obra que, revista, será reeditada. Assim, os momentos significativos da elaboração do texto e de sua posterior reescrita são trazidos à superfície. Contudo "o arquivo de Mário de Andrade não guarda notas prévias ou rascunhos dos textos publicados (...) em "Paulicéia Desvairada'" (pág. 52). Telê precisou estudar a gênese de poemas de Mário "sem o apoio de manuscritos" (pág. 58). Trata-se de um desafio de grande interesse teórico.
Por isso, é uma bela aventura intelectual acompanhar passo a passo a demonstração de Telê. Limito-me a dois exemplos assinalados pela autora. Na primeira crônica, em novembro de 1920, Mário caracterizou o clima paulista como "desvairado de odores e colorações" (pág. 73). O título da "Paulicéia" começava a ser elaborado. Na segunda crônica, no mês seguinte, o poeta descobriu o "alaúde vertiginoso da mocidade alegre e triunfal..." (pág. 87).
Em breve, o instrumento ocuparia o centro da cena, nas mãos de "um tupi tangendo um alaúde...", no célebre verso de "O Trovador". Veja-se o detalhe: as reticências foram mantidas. O cronista era o poeta em gestação; assim como o poeta foi o cronista do ritmo vertiginoso da cidade.
Em sua introdução, "Um Brasileiro de São Paulo", Carlos Augusto Calil reconstrói a história textual de "Paulística", nas duas edições publicadas por Paulo Prado. Trata-se, assim, da biografia do livro, completada com uma sintética, mas esclarecedora, "biografia do autor", no final do volume. As circunstâncias políticas e as relações com o ambiente intelectual da época também são mencionadas.
Porém o aspecto mais relevante se refere à ampliação do volume. Calil reuniu textos inéditos em livro, agrupados sob as rubricas "Outros Retratos do Brasil"; "Tradição e Modernismo"; "Café & Borracha - Jogo de Tolos". Além disso, coligiu críticas contemporâneas à publicação de "Paulística" e publicou cartas até então inéditas de Mário e Oswald de Andrade, nas quais discutem o livro. Daí o "etc." acrescentado ao título original, "Paulística, História de São Paulo".
O leitor, desse modo, é apresentado a um Paulo Prado "rejuvenescido", por assim dizer. Considerando-se a reedição de "Retrato do Brasil", também organizada por Calil com critérios críticos semelhantes, devemos aguardar estudos que renovem a compreensão da obra dessa figura múltipla: bem-sucedido homem de negócios, visionário mecenas e, sobretudo, um sofisticado intelectual brasileiro. De São Paulo.


João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj) e organizador de "As Máscaras da Mímesis" (Record).

De São Paulo
120 págs., R$ 20,00 de Mário de Andrade. Telê Ancona Lopez (org.). Ed. Senac São Paulo (r. Rui Barbosa, 377, 1º andar, CEP 01326-010, SP, tel. 0/xx/11/3284-4322).

Paulística Etc.
360 págs., R$ 48,00 de Paulo Prado. Carlos Augusto Calil (org.). Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).



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