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+(s)ociedade
O fetiche de quantidade
Metas de produtividade e burocracia acadêmica diminuem
o potencial de pesquisas científicas
A criação de conhecimento não pode ser medida somente pelo número
de trabalhos
escritos pelos pesquisadores, como é a tendência
atual no Brasil
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
A
cada tanto tempo,
volta-se a discutir
como deve ser avaliado o trabalho dos
professores. O
grande número de pessoas envolvidas nos diversos níveis de
ensino, assim como o de artigos
e livros que materializam resultados de pesquisa, tem determinado uma preferência
por medidas quantitativas.
Se estas podem trazer informações úteis como dado parcial para comparar resultados
de escolas em vestibulares ou o
desempenho médio de alunos
em determinada matéria, sua
aplicação como único critério
de "produtividade" na pós-graduação vem gerando -a meu
ver, pelo menos- distorções
bastante sérias.
Não é meu intuito recusar,
em princípio, a avaliação externa, que considero útil e necessária. Gostaria apenas de lembrar que a criação de conhecimento não pode ser medida somente pelo número de trabalhos escritos pelos pesquisadores, como é a tendência atual
no Brasil. Tampouco me parece correta a fetichização da forma "artigo em revista" em detrimento de textos de maior fôlego, para cuja elaboração, às
vezes, são necessários anos de
trabalho paciente.
A mesma concepção tem
conduzido ao encurtamento
dos prazos para a defesa de dissertações e teses na área de humanas, com o que se torna difícil que exibam a qualidade de
muitas das realizadas com mais
vagar, que (também) por isso
se tornaram referência nos
campos respectivos.
O equívoco desse conjunto
de posturas tornou-se, mais
uma vez, sensível para mim ao
ler dois livros que narram grandes aventuras do intelecto: "O
Último Teorema de Fermat",
de Simon Singh (ed. Record), e
"O Homem Que Amava a China", de Simon Winchester
(Companhia das Letras).
O leitor talvez objete que não
se podem comparar as realizações de que tratam com o trabalho de pesquisadores iniciantes; lembro, porém, que os
autores delas também começaram modestamente e que, se
lhes tivessem sido impostas as
condições que critico, provavelmente não teriam podido
desenvolver as capacidades
que lhes permitiram chegar até
onde chegaram.
Everest da matemática
O teorema de Fermat desafiou os matemáticos por mais
de três séculos, até ser demonstrado em 1994 pelo britânico
Andrew Wiles. O livro de Singh
narra a história do problema,
cujo fascínio consiste em ser
compreensível para qualquer
ginasiano e, ao mesmo tempo,
ter uma solução extremamente
complexa. Em resumo, trata-se
de uma variante do teorema de
Pitágoras: "Em todo triângulo
retângulo, a soma do quadrado
dos catetos é igual ao quadrado
da hipotenusa", ou, em linguagem matemática, a2²=b2²+c2².
Lendo sobre esta expressão
na "Aritmética" de Diofante
(século 3º), o francês Pierre de
Fermat (1601-65) -cuja especialidade era a teoria dos números e que, junto com Pascal,
determinou as leis da probabilidade- teve a curiosidade de
saber se a relação valia para outras potências: x3³= y3³ + z3, x4 = y4 + z4 e assim por diante.
Não conseguindo encontrar
nenhum trio de números que
satisfizesse as condições da
equação, formulou o teorema
que acabou levando seu nome
-"Não existem soluções inteiras para ela, se o valor de n for
maior que 2"- e anotou na página do livro: "Encontrei uma
demonstração maravilhosa para esta proposição, mas esta
margem é estreita demais para
que eu a possa escrever aqui".
Após a morte de Fermat, seu
filho publicou uma edição da
obra grega com as observações
do pai. Como o problema parecia simples, os matemáticos
lançaram-se à tarefa de o resolver -e descobriram que era
muitíssimo complicado.
Singh conta como inúmeros
deles fracassaram ao longo dos
300 anos seguintes; os avanços
foram lentíssimos, um conseguindo provar que o teorema
era válido para a potência 3,
outro (cem anos depois) para 5
etc. O enigma resistia a todas as
tentativas de demonstração e
acabou sendo conhecido como
"o monte Everest da matemática". É quase certo que Fermat
se equivocou ao pensar que dispunha da prova, que exige conceitos e técnicas muito mais
complexos que os disponíveis
na sua época.
Quem a descobriu foi Andrew Wiles, e a história de como o fez é um forte argumento
a favor da posição que defendo.
O professor de Princeton [universidade americana] precisou
de sete anos de cálculos e teve
de criar pontes entre ramos inteiramente diferentes da disciplina, numa epopeia intelectual que Singh descreve com
grande habilidade e clareza.
Não é o caso de descrever
aqui os passos que o levaram à
vitória; quero ressaltar somente que, não tendo de apresentar
projetos nem relatórios, publicando pouquíssimo durante
sete anos e se retirando do "circuito interminável de reuniões
científicas", Wiles pôde concentrar-se com exclusividade
no que estava fazendo.
Por exemplo, passou um ano
inteiro revisando tudo o que já
se tentara desde o século 18 e
outro tanto para dominar certas ferramentas matemáticas
com as quais tinha pouca familiaridade, mas indispensáveis
para a estratégia que decidiu
seguir. Questionado por Singh
sobre seu método de trabalho,
Wiles respondeu: "É necessário ter concentração total. Depois, você para. Então parece
ocorrer uma espécie de relaxamento, durante o qual, aparentemente, o inconsciente assume o controle. É aí que surgem as ideias novas".
Este processo é bem conhecido e costumo recomendá-lo a
meus orientandos: absorver o
máximo de informações e deixá-las "flutuar" até que apareça
algum padrão, ou uma ligação
entre coisas que aparentemente nada têm a ver uma com a
outra. Uma variante da livre associação, em suma.
Ora, se está correndo contra
o relógio, como o estudante pode se permitir isso? A chance
de ter o "estalo de Vieira" é reduzida; o mais provável é que
se conforme com as ideias já
estabelecidas, o que obviamente diminui o potencial de inovação do seu trabalho.
Tarefa hercúlea
Outro exemplo de que o tempo de gestação de uma obra
precisa ser respeitado é o de Joseph Needham (1900-95), cuja
vida extraordinária ficamos conhecendo em "O Homem Que
Amava a China".
Bioquímico de formação,
apaixonou-se por uma estudante chinesa que fora a Cambridge [no Reino Unido] para
se aperfeiçoar; ela lhe ensinou a
língua e, à medida que se aprofundava no estudo da cultura
chinesa, Needham foi se tomando de admiração pelas suas
realizações científicas e tecnológicas.
Em 1943, o Ministério do Exterior britânico o enviou como
diplomata à China, então parcialmente ocupada pelos japoneses. Sua missão era ajudar os
acadêmicos a manter o ânimo e
a prosseguir em suas pesquisas.
Para saber do que precisavam,
viajou muito pelo país e entrou
em contato com inúmeros
cientistas; em seguida, mandava-lhes publicações científicas,
reagentes, instrumentos e o
que mais pudesse obter.
Nessxe périplo, Needham se
deu conta de que -longe de terem se mantido à margem do
desenvolvimento da civilização, como então se acreditava
no Ocidente- os chineses tinham descoberto e inventado
muito antes dos europeus uma
enorme quantidade de coisas,
tanto em áreas teóricas quanto
no que se refere à vida prática
(uma lista parcial cobre 12 páginas do livro de Winchester).
Formulou então o que se tornou conhecido como "a pergunta de Needham": se aquele
povo tinha demonstrado tamanha criatividade, por que não
foi entre eles, e sim na Europa,
que a ciência moderna se desenvolveu?
A resposta envolvia provar
que existiam condições para
que isso pudesse ter acontecido, e depois elaborar hipóteses
sobre por que não ocorreu. Daí
a ideia de escrever um livro que
mostrasse toda a inventividade
dos chineses, tendo como base
os textos recolhidos em suas
viagens e as práticas que pudera observar.
Embora o projeto fosse ambicioso, a Cambridge University Press o aceitou, considerando que, uma vez realizado,
abrilhantaria ainda mais a reputação da universidade.
"Science and Civilization in
China" [Ciência e Civilização
na China] teria sete volumes, e
Needham acreditava que poderia escrevê-lo "num prazo relativamente curto para uma obra
acadêmica: dez anos".
Na verdade, tomou quatro
vezes mais tempo, e, quando o
autor morreu, em 1995, já contava 15 mil páginas. Empreendimento hercúleo, como se vê,
que transformou radicalmente
a percepção ocidental quanto
ao papel da China na história da
civilização.
O volume de trabalho envolvido era imenso: de saída, ler e
classificar milhares de documentos sobre os mais variados
assuntos; em seguida, organizar tudo de modo claro e persuasivo, e por fim apresentar
algumas respostas à "pergunta
de Needham". Várias pessoas o
auxiliaram no percurso (em
particular, sua amante chinesa), mas a concepção de base, e
boa parte do texto final, se devem exclusivamente a ele.
Monumento
Needham não publicou uma
linha de bioquímica durante os
últimos 30 anos de sua carreira.
Tampouco tinha formação acadêmica em história das ideias
-mas isso não o impediu de,
com talento e disciplina, redigir
uma das obras mais importantes do século 20.
Se tivesse sido atrapalhado
por exigências burocráticas, se
tivesse de orientar pós-graduandos, se a editora o pressionasse com prazos ou não o deixasse trabalhar em seu ritmo (o
primeiro volume levou seis
anos para ficar pronto), teria
talvez escrito mais um livro interessante, mas não o monumento que nos legou.
O que estes exemplos nos ensinam é que um trabalho intelectual de grande alcance só pode ser feito em condições adequadas -e uma delas é a confiança dos que decidem (e manejam os cordões da bolsa) em
quem se propõe a realizá-lo.
Tal confiança envolve não
suspeitar que tempo longo signifique preguiça, admitir que
pensar também é trabalho, que
a verificação de uma ideia-chave ou de uma referência central
pode levar meses -e que nada
disso tem importância frente
ao resultado final.
Em tempo: um dos motivos
encontrados por Needham para o estancamento da criatividade chinesa a partir de 1500
foi justamente a aversão de
uma estrutura burocrática acomodada na certeza de sua própria sapiência a tudo que discrepasse dos padrões impostos.
Enquanto isso, na Europa (e
depois na América do Norte) a
inovação era valorizada, e o talento individual, recompensado. Nas palavras de um sinólogo citado no fim do livro, o resultado da atitude dos mandarins foi que "o incentivo se
atrofiou, e a mediocridade tornou-se a norma".
Seria uma pena que, em nome da produtividade medida
em termos somente quantitativos, caíssemos no mesmo erro.
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular na Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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