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A exceção e a regra
Projeto educacional no Amazonas adapta ensino médio aos idiomas e práticas indígenas, mas enfrenta dificuldade para ser aceito por autoridades do setor
A língua tuiuca, antes à beira da extinção, agora é falada por todos, dentro e fora
da sala de aula
Marcelo Justo - 1º.abr.10/Folha Imagem
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Estudantes da etnia tuiuca usam computador em escola na comunidade
indígena de São Pedro (AM)
MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL AO ALTO TIQUIÉ (AM)
No Brasil, todo
mundo é índio, exceto quem não é",
diz o antropólogo
Eduardo Viveiros
de Castro. "Só é índio quem se
garante."
Está na cara que Aloisio Cabalzar, 41, antropólogo de ascendência suíça que viaja à minha frente na voadeira (lancha
de alumínio), não é índio. Protetor solar e o romance policial
"Alerta Negro", de Patricia
Cornwell, são seus companheiros fluviais mais constantes.
Mas ele fala a língua tuiuca
com fluência após duas décadas de andança pela mandíbula
da região da Cabeça do Cachorro.
Cabalzar, do Instituto Socioambiental (ISA), de São
Paulo, é o paciente cicerone da
reportagem da Folha na viagem de dez dias e várias "cachoeiras" (corredeiras) pelo
extremo noroeste do Estado do
Amazonas. Objetivo: conhecer
as excepcionais escolas tuiuca
e tucano das comunidades ao
longo do rio Tiquié, afluente do
Uaupés, por sua vez um tributário do rio Negro.
Metade desses dias foi padecida em voadeira, a maior parte
com motor de popa de 40 HP.
Menos potência, e a viagem pode se estender por uma semana
-só na ida.
Já no final da primeira jornada, o antropólogo conversa
com o jovem carona Marcos
Resende, habitante de São Pedro (ou Pikorõaburo, em tuiuca, nome de uma larva de besouro que come o miolo do
tronco do buriti), nosso destino final. O jovem tampouco parece índio. Cabelos encaracolados, boné de hip-hop virado para trás, camiseta Racionais
MC's -de quem nunca ouviu
uma música, aliás.
A aparência engana. Na primeira refeição em São Pedro,
na casa de seu padrasto, Adão
Barbosa, Marcos fala tuiuca.
Serve-se com as mãos, como
todos, das maniuaras (saúvas)
torradas, da cutia e do beiju.
Não reage com lacrimejo e espirros ao excesso de pimenta,
como os convidados.
Quatro dias depois, no caxiri
de despedida para os visitantes,
festa na maloca regada à bebida
de mesmo nome fermentada
da mandioca, Marcos tocaria
flauta e dançaria com outros
moços e moças. Sem o boné,
mas tampouco havia adorno de
penas à vista -só bermudas e
camisetas de muitas cores. Seu
pé direito socaria o chão de terra, mantendo o ritmo e a tradição. Ex-aluno do ensino médio,
Marcos já é professor.
Língua ameaçada
"Antigamente, sábio era
quem obedecia às regras", pondera Higino Pimentel Tenório,
55, a autoridade reconhecida
em São Pedro. Professor há 35
anos, Poani -seu nome cerimonial em tuiuca- lamenta
que os jovens tenham abandonado muitos costumes.
Uma das interdições importantes, explica Poani, é a abstinência sexual de 15 dias antes
de beber o caapi (bebida alucinógena similar à ayahuasca).
"Quem obedece às regras tem
mais poder, progride mais",
afirma o professor sobre a sabedoria veiculada pelas "mirações" desencadeadas pela bebida. "[A gente vê] muita cobra
colorida no vômito, entende a
música e as palavras da cachoeira."
Seu orgulho é ter revertido o
"êxodo rural", como se refere à
saída de jovens para as antigas
missões salesianas da região,
Pari-Cachoeira e Taracuá, ou
para a sede do município, São
Gabriel da Cachoeira. A regra
era abandonarem as aldeias em
busca de educação.
São Pedro ficou reduzida a 14
famílias, em 2000. Hoje são 23.
A língua tuiuca, antes à beira da
extinção, agora é falada por todos, dentro e fora da sala de aula. Inclusive pelos alunos tucanos, desanas, yebamasãs, barás
ou miriti-tapuias vindos de aldeias vizinhas para os módulos
de 15 dias, intercalados com 15
dias passados na comunidade
de origem, para trabalhar com
os pais na roça e na pesca.
Os moços não precisam mais
mudar-se para São Gabriel, 700
quilômetros rio abaixo, para
cursar o ensino médio. A primeira turma do secundário da
escola Utapinopona -"Filhos
da Cobra de Pedra"- formou-se no ano passado, Marcos Resende entre eles (hoje dá aulas
para a nova turma da escola comunitária).
Agora só lhes falta o reconhecimento de um diploma oficial.
E já discutem como poderia ser
um ensino superior indígena.
Paisagem como projeto
A casa de apoio construída
em São Pedro pelo ISA, que auxilia a escola na localidade desde 1994, tem três ambientes. O
telhado sem forro é de caraná
(Mauritia carana), palmeira
aparentada com o buriti (M.
flexuosa). Não deixa a desejar
numa região em que pode chover até 3.600 mm/ano. Resistiu, sem muitas goteiras, a vários temporais.
O quarto sem porta abriga as
redes dos visitantes. A cozinha
diminuta é território de Jorge
Gabriel da Silva, 52, piloto de
voadeira e cozinheiro da etnia
desana. O cômodo maior pode
ser sala de aula ou de refeição e
dormitório extra, dependendo
do horário.
Das paredes pendem cartazes com desenhos elaborados
de perfis de vegetação em capoeiras: plantas vermelhas são
as cultivadas, verdes, as pioneiras (primeiras a se instalar) e
azuis, as de floresta madura.
Às 14h do dia 30 de março,
excepcionalmente, é hora de
aula expositiva. As tardes são
em geral dedicadas a atividades
como desenho de perfis de vegetação e compilação de dados
em tabelas, não à exposição.
A rotina foi alterada para
acomodar a agenda da reportagem, que pela manhã acompanhou uma atividade de campo
dos alunos (coleta de mel e reprodução de colmeias de meliponicultura -criação de abelhas sem ferrão).
São 19 alunos na sala, 15 homens e 4 mulheres na faixa de
15 a 19 anos. Há dois computadores laptop, além daquele em
que Pieter-Jan van der Veld,
46, agrônomo holandês contratado pelo ISA, lê o tema do dia:
"Apresentar uma pesquisa sobre paisagem florestal". Os três
aparelhos e a única lâmpada do
recinto são alimentados por
energia acumulada em baterias
de caminhão por um painel solar fotovoltaico.
O português sai com um
acento lusitano e palavras esparsas em espanhol, mas Wisõka -Esquilo, apelido do professor em tuiuca, por causa dos cabelos avermelhados- garante
que os jovens entendem.
Todos ali falam pelo menos
três idiomas (português, tuiuca
e tucano, a língua franca do Tiquié) e escrevem as duas primeiras. Recebem visitantes do
Brasil todo e do exterior, interessados na experiência peculiar de educação indígena. "O
meu é só mais um sotaque do
português para eles", tranquiliza Van der Veld.
A aula difere muito do ensino
médio tradicional nas redes públicas de outros Estados e das
grandes cidades amazonenses.
Além dos módulos em blocos
intercalados de 15 dias, dura
quatro e não três anos, divididos em ciclos de dois. Em lugar
de um currículo segmentado
em disciplinas, os alunos
aprendem com base em pesquisas e projetos temáticos.
O projeto atual é um levantamento de "paisagens", ou fisionomias vegetais, eleitas pela
comunidade -alunos, pais e
professores. O estudo se concentra nas quatro principais:
floresta ("makaruku"), capoeira ("wiariro", roça abandonada), igapó ("boareko", floresta
de inundação sazonal) e campinarana ("tataboa", uma espécie
de caatinga amazônica que viceja em solos arenosos e encharcados, origem da "água
preta" dos igarapés e rios da bacia do Negro).
Há dezenas de subdivisões
para registrar concentrações
de recursos importantes. "Netahta" é buritizal; "mihpitahta", açaizal. Em foco, na pesquisa, estão os caranazais ("mui
boa"), onde folhas para renovar
telhados são colhidas. Se o estoque natural não for bem manejado, a matéria-prima escasseia, o que pode forçar a mudança de local da aldeia.
Na semana anterior, o grupo
passara quatro dias acampado,
identificando, contando e medindo árvores e arvoretas com
mais de um dedo de espessura
num transecto (área delimitada) de mil metros quadrados.
Os dados coletados são organizados em listas (todos os tipos
de árvores encontradas), depois em tabelas (com as quantidades de cada tipo).
Listas e tabelas são necessárias para produzir gráficos, explica Van der Veld. A tradução
para o tuiuca fica a cargo do
professor habitual da classe,
José Barreto Ramos, 50. Ele
também se chama Poani, um
dos nove nomes de homem disponíveis na língua tuiuca; para
as mulheres, há seis.
Nesse idioma, a entonação
modifica o significado das palavras. Tudo soa incompreensível para o forasteiro, mas a tradução vem entremeada de palavras portuguesas: "gráfico",
"tabela", "lista"...
Conceitos inexistentes numa
cultura em que, poucas décadas
atrás, só se contava até 20 (soma de todos os dedos e artelhos). "O próprio conhecimento quem manifesta é a língua",
teoriza o outro Poani (Higino
Tenório).
A aula evolui para a confecção de um gráfico comparando
as quantidades de três árvores
em dois transectos. Todos os
alunos têm pranchetas, cadernos e réguas. Anotam tudo que
o professor escreve no quadro,
em português, com letras de
forma e caligrafia bem desenhada. O silêncio e a atenção
são dignos de nota, para quem
conhece a atmosfera do ensino
médio nas capitais, retratada
no filme "As Melhores Coisas
do Mundo", de Laís Bodanzky.
Terminada a explicação da
tarefa, a dificuldade se torna visível: raros são os que começam
de imediato a traçar o gráfico
de barras. Os alunos empacam
na correspondência entre número de árvores e centímetros
do eixo y e na escolha da escala
para a figura caber na página.
Só então começam a falar entre
si, e o observador conclui que
ajudam uns aos outros. Van der
Veld dá a tarefa por completa
após uma hora e meia de aula.
"A parte difícil é a matemática", diz o holandês. "Enfrentam
problemas com coisas técnicas
e abstratas, mas não com a parte prática." Na sua avaliação, os
alunos da escola tuiuca têm nível melhor que os técnicos de
Rondônia com quem trabalhou
por um ano em 1998, para fazer
amostragens de solo no macrozoneamento do Estado. "Os
problemas são os mesmos da
educação do Brasil [todo]."
Caranazal abusado
Dois dias depois, a reportagem entra na mata com Van der
Veld e cinco estudantes, para
uma demonstração de levantamento num caranazal. Há dificuldade para acompanhar a
marcha, firme e aplicada como
a caligrafia exibida em sala de
aula. São 45 minutos para cobrir cerca de dois quilômetros
desde a margem do Tiquié, segundo o GPS. O jornalista e o
repórter-fotográfico aprendem
rápida e dolorosamente o significado da palavra "caba" (marimbondo).
Chegamos ao caranazal pouco depois das 10h. Embora a
palmeira não componha mais
que 3% das 139 plantas inventariadas pelos tuiucas nessa
paisagem vegetal, suas folhas
em leque estão por toda parte.
Visível, também, é a decepção do agrônomo professor: só
há indivíduos juvenis de Mauritia carana, nenhum adulto
com tronco, muito menos com
os 15 metros que pode alcançar
na fase reprodutiva. A maioria
dos caranás é "pu" (criança).
"Um caranazal abusado", decreta o holandês. Nem mesmo
a regra tradicional de deixar
pelo menos três folhas em cada
pé parece ter sido observada
pelos últimos coletores. O manejo inadequado implica que a
área precisará de muitos anos
para voltar a ser explorada,
porque não sobraram plantas-mãe para lançar sementes e recompor a população.
Não deixa de ser didático para os tuiucas Jorge Rochas Gutierrez, Josival Azevedo Rezende e Walter Marques Tenório,
além de Jodair de Jesus (tucano) e Angel Maria Sanches (bará), os estudantes de ensino
médio encarregados da demonstração.
Sua tarefa é demarcar um
transecto, a área para levantamento da paisagem. Começam
por assinalar uma árvore de
porte facilmente identificável
na mata rala e fixar nela uma
plaquinha de metal. É o ponto
de referência, marcado no GPS.
A partir dele se estende a trena por 20 m (numa pesquisa
real são 100 m), iniciando a demarcação do polígono com 10
m de largura. Fincam-se estacas a cada 5 m, para fixar barbantes perpendiculares que dividirão a área em quatro setores, para facilitar a contagem.
O ângulo é definido com auxílio de bússolas de fundo
transparente, que permitem
enxergar o fio por baixo e alinhá-lo. Van der Veld pergunta
quanto é um ângulo reto, para
marcar o canto do retângulo do
transecto. A primeira resposta
é 50, logo corrigida para 90
-não sem algum debate.
Os alunos têm então de somar ou subtrair os 90 da
orientação registrada para a
trena (230), e a barreira da
abstração volta a materializar-se. Fazem e refazem contas a
caneta na palma das mãos, até
chegar às respostas corretas
(320 e 140). Quando surgem
quantidades negativas, então, a
dificuldade cresce de forma exponencial, conta o professor
holandês.
De volta à tanga
Juntos, os rapazes acabam
resolvendo todos os problemas
que Van der Veld propõe. No
processo, ganham ferramentas
e habilidades para entender
melhor e manejar a dinâmica
natural de um recurso decisivo
para os tuiucas e seus vizinhos.
Já se foi o tempo em que os jovens tinham de aprender com
livros -dos padres salesianos
ou do MEC- que falavam de
maçãs e uvas, frutas que nunca
chegam ali.
"Abrimos opção para cada jovem buscar qual tipo de conhecimento vai buscar fora para
solucionar os problemas da comunidade", afirma o líder Higino Tenório. Os projetos de pesquisa sempre têm relação com
o sustento material e cultural
dos tuiucas e dos povos vizinhos (entre os quais buscam
mulheres para casar): a palha
do caraná, peixes e piscicultura, meliponicultura, roça -mas
também mitos, cantos, adornos
e benzimentos.
A ideia por trás da nova escola sempre foi casar a "ciência
dos brancos" com a valorização
do conhecimento indígena. E,
no caminho, aproximar moços
e velhos, revivendo regras cujo
cumprimento estava se tornando exceção. "Nossos antepassados [homens] passavam
três meses acampados na mata,
aprendiam a fazer cestaria",
conta Tenório. "[Eram] regras
para dotá-los de conhecimento, força e espírito."
Na própria comunidade de
São Pedro houve resistência à
proposta de educação indígena
e alfabetização em língua tuiuca. Fiéis ao ensino rígido dos
salesianos, que os ensinaram a
ler, escrever e contar até mais
que 20 e os ajudaram a libertar-se das dívidas com os patrões
da borracha e comerciantes dos
regatões, muitos pais acharam
que seria um retrocesso.
"Nossos próprios parentes
não chegavam a entender", rememora o professor José Ramos. "[Achavam que] atrapalharia, traria atraso, os filhos
não poderiam aprender português, voltariam para trás e a
usar tanga como nossos antepassados", diz o outro Poani,
sempre de calça comprida, cinto e camisa polo.
"Os padres mandavam bater
nas crianças. Isso acabou", comemora. "A escola agora tem
computador, tecnologia, oficinas, bússola e GPS. Nossos filhos só falavam tucano, custou
dois, três anos para voltarem a
falar tuiuca. Quando um aluno
está doente, manda carta [para
o professor] escrita em tuiuca."
Ensino superior indígena
As resistências comunitárias
foram pouco a pouco vencidas.
Hoje, a língua tuiuca ganhou algo que nunca teve: uma literatura própria. Fruto de duas décadas de trabalho do casal Flora Dias Cabalzar e Aloisio, o
"Arusu" (arroz).
Eles foram "peças fundamentais", segundo Higino Tenório. "Eu penso várias ideias,
mas não sei colocar as palavras
certas", diz o coautor tuiuca.
"Eles sabem escrever, ouvindo
nossas ideias."
Já são oito livros publicados
no idioma em uma década. Um
ainda está no prelo: "Utapinopona Kuye Poseminiã Niromakaraye" (Adornos Cerimoniais
dos Tuiucas). Resultou de um
projeto temático da escola em
que alunos recolheram entre os
mais velhos descrições, usos e
explicações sobre a origem dos
ornamentos.
A experiência "sui generis"
de educação indígena na região
da Cabeça do Cachorro, que inclui os tucanos do Tiquié e os
baniuas do rio Içana, gerou
também várias teses e publicações em português. O livro
mais recente é "Manejo do
Mundo - Conhecimentos e Práticas dos Povos Indígenas do
Rio Negro, Noroeste Amazônico" (organizado por Cabalzar,
do ISA), lançado num seminário com o mesmo título, que se
realizou de 8 a 13 de abril em
São Gabriel da Cachoeira.
O seminário reuniu representantes dos vários povos da
região, inclusive da Colômbia,
para trocar experiências de
educação baseadas em projetos
de pesquisa sobre a natureza e
delinear como poderia ser um
ensino superior indígena. Trata-se de formar professores de
ensino básico com nível universitário, como exige a lei, mas
com currículo que vá além da
formalização muitas vezes medíocre oferecida por universidades da Amazônia.
O encontro resultou numa
lista com 13 desejos para um
ensino superior indígena. Coisas como ser inovador, ter relação com o território da bacia do
rio Negro e conexão direta com
as comunidades. "Qual seria o
conhecimento mesmo, de nível
superior, para o jovem conseguir viver aqui?", pergunta Higino Tenório. "É inviável querer transformar o índio em intelectual. Quem faz curso superior quer ir para a capital."
Mais sintomática é a lista do
que os índios não querem que
ele seja: só uma licenciatura intercultural, numa única língua,
com predominância do conhecimento científico ocidental e
estruturas burocratizadas. A
burocracia estatal, aliás, é no
momento a grande pedra no
caminho das experiências educacionais do rio Negro.
Enquanto se limitavam ao
ensino fundamental, as peculiaridades da educação comunitária foram sendo acomodadas com as regras municipais
de São Gabriel da Cachoeira,
onde cerca de 90% da população de 42 mil habitantes e até o
prefeito são indígenas. Ao alcançar o nível médio, porém,
passaram para a alçada da Secretaria Estadual de Educação
amazonense, e o reconhecimento oficial das turmas já formadas ainda não saiu.
Da duração -quatro e não
três anos- à inexistência de
avaliação com notas ou de conteúdo curricular padronizado,
pouca coisa se enquadra nas
normas do Conselho Estadual
de Educação do Amazonas.
"[O ensino médio tuiuca] é
um projeto avançado, até para a
educação indígena", afirma o
professor de física e matemática Inafran da Silva Bastos, técnico da Gerência de Educação
Escolar Indígena da secretaria
estadual. "Na hora de reconhecer, a própria Seduc não estava
preparada. É só uma questão de
tempo e de se adequar -no mínimo dois a três meses."
A nova gerente da área, Alva
Rosa, da etnia tucano, tomou
posse em 19 de abril, Dia do Índio. Bastos informa que a gerência trabalha na adaptação
do currículo estadual para a
educação indígena, mas que o
processo ainda está "no início".
Aracu, acará e araripirá
No último dia de março, a reportagem desce o Tiquié até a
comunidade tucano em Cachoeira do Caruru, menos de
meia hora de voadeira com o
motorzinho de popa de 15 HP.
Vamos conhecer a estação de
piscicultura montada em 1999
por uma associação de 12 comunidades tucanas e tuiucas
no Alto Tiquié.
O guia da visita é o coordenador-gerente do projeto, Lucas
Alves Bastos. A escola, em paralelo ao projeto de piscicultura,
desenvolveu uma pesquisa relacionando enchentes e vazantes, chuvas, piracema (desova
dos peixes) e constelações que
"caem" do céu no poente, como
a da Jararaca (em novembro).
O projeto tem por meta reproduzir e distribuir para as comunidades espécimes das espécies nativas aracu-riscado
(Leporinus agassizii), aracu-três-pintas (L. friderici), acará-trovão (Satanoperca jurupari) e
araripirá (Chalceus macrolepidotus). Machos e fêmeas maduros são capturados e têm a hipófise retirada para extração de
hormônio, depois injetado debaixo da nadadeira peitoral de
outros peixes para estimular a
produção de gametas (espermatozoides e óvulos).
Controlando a temperatura
dos animais, os técnicos indígenas definem o momento de espremer os peixes e colher o material para fertilização em bacias, que exigem trocas de água
de dez em dez minutos. Transfere-se o material para incubadoras com água corrente, durante sete dias, para que os embriões eclodam e se desenvolvam. Eles são depois contados e
transferidos para os viveiros,
tanques de 10 m x 20 m x 1,5 m
escavados no terreno.
No momento, as incubadoras
estão vazias. Uma semana antes, 34.300 pós-larvas de araripirás, com três milímetros, foram produzidas em Caruru.
Cerca de 2.000 sobreviverão
nos tanques e alcançarão dez
centímetros, quando serão enviadas para engorda nos viveiros comunitários e familiares,
como os de São Pedro.
O dia anterior fora de mutirão para cavar um terceiro viveiro na vizinha aldeia tuiuca,
parceira dos tucanos de Caruru. Meia centena de homens,
mulheres e crianças trabalhavam juntos, sob o sol a pino. Já
há dois lagos, mas um está vazando. É preciso abrir outro,
trabalho para cinco dias.
Palavra de índio
"Nossa ideia é fazer criação
para o rio descansar", explica
Higino Tenório, líder dos trabalhos. "Com tecnologia -pilha, zagaia, malhadeira- a pesca deixou de ser seletiva e inteligente, como era feita com pari
[armadilha de varas], e se tornou predatória."
Tuiucas e tucanos do Tiquié
entendem que foram gente-peixe, antes de se transformarem em gente-verdadeira, e assim escolheram permanecer.
Para isso, precisam de flautas
do jurupari (que mulheres e
crianças só podem ouvir, não
ver), de folhas do caraná, aracus, acarás e araripirás -além
de uma tecnologia que fuja à
norma da superexploração.
Em duas palavras, buscam na
prática as tão faladas "inovação" e "sustentabilidade" e elegeram o ensino como canoa para realizar a travessia. "[A escola] é a instituição externa que
eles conseguiram manejar", resume Aloisio Cabalzar.
A regra do senso comum vale
também para os índios: educação é a garantia de algum futuro. Um futuro índio.
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