São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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+ cultura

O escritor romeno Norman Manea reflete sobre a experiência do totalitarismo e evoca a linguagem como a verdadeira pátria

A sociedade dos exilados

Norman Manea
especial para a Folha

Certa vez o escultor romeno Brancusi disse que, quando o artista deixa de ser criança, ele morre. Não sei até que ponto me tornei artista, mas compreendo o que Brancusi quis dizer. Mesmo na minha idade, consigo compreender meu eu infantil, duradouro. Escrever é uma profissão infantil, mesmo quando se torna excessivamente séria, como muitas vezes são as crianças. Meu longo caminho de imaturidade começou há mais de meio século. Era julho de 1945, alguns meses depois de meu retorno de um campo de concentração chamado Transnistria. Vivi aquele verão paradisíaco numa cidadezinha moldávia, sentindo-me dominado pela milagrosa banalidade de um ambiente normal, seguro. Aquela tarde específica estava perfeita, ensolarada e silenciosa, a semi-escuridão do quarto, hospitaleira. Eu estava sozinho no universo, ouvindo uma voz que era e não era minha. Meu parceiro era um livro de contos de fada romenos com capa verde dura, que me tinha sido dado alguns dias antes, quando completei solenes nove anos.

O trivial cotidiano
Foi quando a maravilha das palavras, a magia da literatura começaram para mim. A doença e a terapia tiveram início ao mesmo tempo. Em pouco tempo, demasiado pouco, eu já queria fazer parte daquela família de magos da palavra, aqueles meus parentes secretos. Era uma maneira de buscar "algo mais" além da trivialidade do cotidiano -e também de procurar meu verdadeiro eu em meio aos muitos indivíduos que habitavam em mim. Devo confessar que também tentei, diversas vezes, livrar-me daquele eu interior, encontrar um substituto capaz de me representar melhor no palco social. Estudei engenharia, não apenas porque queria uma profissão que pudesse me proteger da demagogia política diária, mas também por esperar que ela me protegesse daquele eu essencial que eu descobrira numa inesquecível tarde de julho no pós-guerra. No entanto, a necessidade de algo dramaticamente diferente e superior à rotina cotidiana e enquadrada de um engenheiro e cidadão do paraíso socialista não diminuiu. Naquela dupla alienação, ler e escrever provou repetidas vezes ser uma doença salvadora. Finalmente, pude ouvir minha própria voz em meu próprio livro, que, por acaso, também tinha capa verde. No mundo-circo, o poeta parece um Augusto, o Tolo, mal equipado para o cotidiano em que seus semelhantes oferecem e recebem suas parcelas próprias de realidade comestível. No entanto sua fraqueza pode ser vista como força não convencional e indireta; sua solidão, como um tipo mais profundo de solidariedade; sua imaginação, como um atalho para a realidade.

O circo da história
Inevitavelmente, na praça pública fortemente iluminada, Augusto, o Tolo, o poeta, se vê diante do Palhaço do Poder. Às vezes é possível enxergar nesse encontro toda a tragicomédia humana, na história do circo como história. Não obstante, a experiência totalitária continua incomparável em sua patologia, suas máscaras e sua falsidade. Um artista que já viveu sob a tirania (e mesmo um que não o tenha feito) não pode ignorar a barreira que separa os dois papéis.


A necessidade de algo diferente e superior à rotina de engenheiro e cidadão do paraíso socialista não diminuiu; naquela dupla alienação, ler e escrever se tornaram uma doença salvadora


Para um escritor, o exilado por excelência -sempre um "suspeito", como disse Thomas Mann-, a linguagem é sua placenta. Mais do que para qualquer outro "alienígena" em seu país, a linguagem é, para o escritor, não apenas uma conquista, mas também um lar espiritual. Por meio da linguagem, ele se sente rico e estável; e, quando está totalmente de posse de sua riqueza, ele ganha sua cidadania, um sentimento de fazer parte de algo. A linguagem sempre é a casa e a pátria do escritor. Ser exilado desse refúgio derradeiro representa o descentramento mais brutal de seu ser, um queimar que atinge até o próprio núcleo da criatividade. Adiei a decisão de deixar a Romênia porque eu era suficientemente infantil para conseguir enganar a mim mesmo, fazendo-me acreditar que não vivia em um país, que vivia apenas numa língua. Com o tempo, acabei levando comigo a língua, a casa, como faz o caracol. Ela ainda é meu refúgio infantil, meu lugar de sobrevivência. Tópicos como o totalitarismo ou o exílio talvez digam muito sobre minha vida e meu escrever, mas, por importantes que sejam, eles, por si sós, não revelam muito sobre uma peça literária. Mesmo nas tragédias coletivas e nas situações extremas, o escritor busca, por meio de seu estilo, sua visão e sua estratégia próprios, o destino do indivíduo, a especificidade humana de fraqueza, resistência e sonhos, das ambiguidades, dos limites e das surpresas da individualidade presa na armadilha do impasse social.

A "zona cinzenta"
Espero que, mesmo no quadro escuro de tais tópicos, a luz da alma e da mente humanas, suas contradições e seu potencial, as incessantes perguntas sobre o amor e a morte, o engajamento e a covardia, a solidão e a solidariedade, a tragicomédia dos humanos revelem -para melhor ou para pior- a marca própria e individual do autor. Na verdade, eu estava mais interessado na "zona cinzenta", na qual enxergava uma espécie de zona do arco-íris da verdade que me permitia buscar características individuais para além da escuridão indiferenciada e, assim, introduzir nuanças perturbadoras na aparente uniformidade da situação extrema. Por mais libertador que fosse, pular do exílio interno para o exílio propriamente dito não foi uma experiência fácil. Entretanto, nos mais de dez anos passados desde que vivi na carne esse queimar, aprendi a honrar o exílio, a fazê-lo em nome de tudo o que é desafio e epifania, de todas as dúvidas e aprendizados vitalícios que ele implica, por seu vazio e sua riqueza, pelo meu livramento dos grilhões e pelo meu embate interior.

Modernidade centrífuga
Consciente ou inconscientemente, o estrangeiro sempre é um exilado potencial ou parcial, e todos os verdadeiros escritores são exilados perpétuos deste mundo, mesmo quando, como Proust, eles dificilmente deixam seus quartos. Cada vez mais, o exílio é um emblema de nosso tempo. As pessoas em toda parte enfrentam a contradição entre a modernidade centrífuga e cosmopolita e a necessidade (ou pelo menos o anseio nostálgico) centrípeta de pertencer a algo.
É impossível prever o lugar que a literatura vai ocupar no futuro, se é que ocupará algum lugar. Não ouso acreditar, como fazia Dostoiévski, que a beleza possa salvar nosso mundo. Mas podemos esperar que ela consiga ajudar a nos consolar e a redimir nossa solidão. Podemos esperar que sua promessa de beleza, seu desafiar da verdade, sua redefinição do que é bom e seu espírito brincalhão e imprevisível sejam difíceis de abandonar, mesmo em tempos de incerteza e perigo.
Por mais infantil que isso possa parecer, o artista continua a ser um operário secreto do amor. Diariamente, ele reinventa as premissas dessa busca difícil; ele honra seu leitor, um estranho semelhante e dessemelhante, com a dádiva de um amor exigente. Assim ele pode levar adiante sua aventura sem fim e humanizar seu naufrágio, esteja onde estiver.

Norman Manea é escritor romeno e recebeu um dos mais importantes prêmios literários da Itália, o Nonino. Este texto é tirado de seu discurso de agradecimento. Copyright: Project Syndicate e Institute for Human Sciences.
Tradução de Clara Allain.


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