São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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MARX CONTRA MARX

Associated Press - 1º.mai.2002
Francês carrega cartaz contra o líder da extrema direita Jean-Marie le Pen



PROFESSOR EMÉRITO DA USP, RADICADO HÁ 30 ANOS NA FRANÇA, RUY FAUSTO ANALISA A APROPRIAÇÃO DO AUTOR DE "O CAPITAL" PELA INTELLIGENTSIA BRASILEIRA, FAZ UM BALANÇO CRÍTICO DA ERA FHC E AFIRMA QUE A POLÍTICA DE ALIANÇAS PODE LEVAR O PT A UMA "CATÁSTROFE"


Maurício Santana Dias
da Redação

Desde que publicou o primeiro tomo de "Marx - Lógica e Política", em 1983, o professor emérito da USP Ruy Fausto, 67, vem empreendendo uma das críticas mais sistemáticas aos fundamentos filosóficos do marxismo. Conhecedor da obra de Marx como poucos, Fausto está lançando no final deste mês o terceiro tomo de sua obra monumental, que será completada por um quarto volume. Embora reconheça que deixou de ser marxista "há pelo menos 20 anos", Fausto, que há 30 vive na França, sentiu-se agora impelido pelas circunstâncias mais recentes a abrir um parêntese em sua reflexão teórica para analisar, na melhor tradição do marxismo crítico, os aspectos mais problemáticos da atualidade política. Numa longa introdução ao seu livro, são passados em revista o governo Fernando Henrique Cardoso, os "descaminhos" da intelligentsia uspiana, as estratégias políticas da esquerda brasileira -sobretudo do PT-, a emergência de um neo-anarquismo, a ascensão da extrema direita na Europa, o recrudescimento do capitalismo após os ataques de 11 de setembro. Os alvos são muitos -e a verdade é que não sobra muita coisa de pé.
Na base das críticas de Ruy Fausto estão duas constatações: 1) a de que as categorias fundamentais do marxismo não dão conta das formas sociais do presente; e 2) de que é preciso reencontrar um ponto de convergência entre princípios éticos universais e práticas políticas específicas, sem o que a história corre o risco de assistir ao retorno de regimes totalitários.
Em sua análise do contexto político brasileiro, o autor não se furta a dizer que a aliança entre o PSDB e o PFL, estabelecida em 1993, visando às eleições presidenciais de 1994, contrariou os princípios básicos da ética política -e que as atuais tentativas de aliança do PT com o PL ou com Orestes Quércia podem ir pelo mesmo caminho.
Fazendo uma defesa intransigente da democracia, apoiando o projeto de um socialismo democrático contra um capitalismo que, no limite, pode levar a catástrofes irreversíveis, Ruy Fausto avalia nesta entrevista concedida de Paris o legado de Marx em suas muitas variantes, situando-o na conturbada conjuntura internacional e brasileira.

Entre as formas sociais do século 20, o sr. distingue quatro tipos básicos: capitalismo democrático, nazismo, totalitarismo de "esquerda" e democracia socialista. Diante de um capitalismo globalizado e quase onipotente, haveria espaço para o surgimento de um socialismo democrático? Como avalia os resultados do capitalismo democrático nos países periféricos?
Há algumas décadas, André Gorz escreveu um livro que se chamava "O Socialismo Difícil" [Jorge Zahar, esgotado". Convencer-se das dificuldades do projeto é hoje a primeira condição para que ele se torne praticável. Infelizmente, a maioria está à procura de soluções simples. Os franceses costumam gozar o pessoal do "Il n'y a qu'à..." ("Basta fazer isto ou aquilo para..."). Há de fato um capitalismo globalizado e quase onipotente -e com o governo Bush a arrogância americana se tornou insuportável, mesmo para os europeus, inclusive para os menos radicais. Isto posto, não há nada mais perigoso do que um esquema monista da história. É preciso introduzir distinções: há os EUA imperiais, é certo, mas há também a Europa, os fundamentalismos terroristas, o Terceiro Mundo que tenta resistir, mas onde irrompem formas de banditismo político etc.; e nada disso é efeito ou se deduz da existência do império (mesmo que a política deste, como a de russos, chineses e europeus -pelo menos no passado-, tenha criado condições que facilitaram o desenvolvimento de certos movimentos regressivos). Nada é mais mítico do que homogeneizar ou "dicotomizar" isso tudo. Assim, por ocasião do 11 de setembro, boa parte da esquerda só via duas possibilidades. Ou se saudava o evento como ação de forças progressistas antiimperialistas (em forma pura esse delírio foi, creio, relativamente raro, mas não em forma um pouco atenuada) ou então se dizia que eram os americanos que haviam feito tudo (esse segundo delírio também foi frequente em forma atenuada). A idéia de que a ação fora obra de um terceiro, que não é nem "forma fenomenal" do imperialismo nem representa uma força progressista, ficava excluída. Se a realidade se opõe ao esquema, é preciso mudar o esquema, não negar a realidade. Mas para a maioria valeu o "tanto pior para a realidade". Foi também pensando em reações desse tipo que insisti numa teoria plural das formas sociais e políticas contemporâneas. E entre elas incluí, como forma virtual, o socialismo democrático. Ao mesmo tempo, insisti em que, onde existe democracia, é preciso pensar o capitalismo não só como uma forma contraditória (o que os marxistas sabem), porém contraditória por abrigar dois pólos que coexistem, mas se opõem -o capitalismo e a democracia (o que os marxistas parecem saber, mas não sabem). Por mais imperfeita que ela seja (e nos países periféricos, dada a desigualdade monstruosa, ela é evidentemente muito imperfeita), a democracia -insisto- é o germe existente de todo progresso futuro. Todo atentado à democracia é regressão. Isso posto, é claro que sob o capitalismo ela é muito insuficiente, e este pode involuir para um capitalismo autocrático. Quanto à possibilidade do socialismo democrático, para saber se ele é possível ou não, a primeira coisa a fazer é defendê-lo como projeto. Ora, o que se vê? Uma certa extrema esquerda denuncia, em teoria e na prática, a democracia em geral e não hesita em tecer loas à ditadura cubana em plena decomposição e até ao capitalismo totalitário chinês. A democracia socialista é um projeto utópico? Certamente menos utópico que o projeto de uma sociedade sem leis nem Estado, que, de uma forma ou outra, está no horizonte do projeto marxista.
Logo no início do seu livro, o sr. diz que Marx continua tendo no Brasil "um lugar que há muito tempo perdeu na Europa". A que se deveria isso?
Hoje, na Europa, embora saiam de vez em quando alguns livros sobre Marx e haja uma revista sistemática sobre Marx -além de alguns intelectuais ligados à extrema esquerda que se declaram marxistas-, há um quase consenso: Marx é coisa do passado. O marxismo francês nunca foi bom, e a dialética nunca entrou nesse país. Há certamente excelentes especialistas em Hegel, mas eles ficam marginalizados em guetos da história da filosofia. A que se deve esta situação? O diagnóstico é complexo. O marxismo foi associado ao império "comunista", e sua queda arrastou consigo o prestígio do marxismo. No caso da França, acho que há outros elementos. Não se escandalizem, sou ateu em teoria e prática, mas o lado radicalmente antiteológico do pensamento francês fez com que ele se fechasse a certos problemas -principalmente lógicos- que desembocam no idealismo alemão. E, sem uma incorporação viva e profunda do idealismo alemão, não há como compreender a obra de Marx. No Terceiro Mundo são certamente razões políticas que explicam o interesse relativo que a obra de Marx ainda tem. À medida que o capitalismo mundial pesa terrivelmente sobre esses países, é -digamos- natural que uma teoria voltada para a crítica do capital não seja facilmente descartada -o que não quer dizer que não haja aí muitos mal-entendidos. No caso particular do Brasil, o marxismo se beneficia de uma tradição universitária que em filosofia foi muito marcada pela reflexão francesa e pelo pensamento alemão -Marx na ponta. Creio que reunir os dois universos -o da Europa e do mundo anglo-saxão com o do Brasil- não é mero exercício acadêmico, e talvez seja o caminho mais fecundo para o pensamento contemporâneo. Para usar uma expressão de Victor Goldschmidt, seria preciso "atritar" esses dois universos. Leio hoje a teoria da justiça do filósofo americano John Rawls e tenho a impressão de que o que ele faz -que é muito interessante- deveria ser "atritado" com a tradição dialética.
Uma das idéias de Marx -e do marxismo- é de que a filosofia seria em certo momento superada na ação política. O sr. opta por um caminho inverso: devolver o marxismo à filosofia e, mais especificamente, à dialética...
A relação do marxismo com a filosofia é complexa. Há três respostas sobre o problema em Marx: a do jovem Marx, a da "Ideologia Alemã" do marxismo de 1845-6 e, mais ou menos implicitamente, a do Marx maduro. A segunda resposta é radicalmente antifilosófica. A primeira propõe uma espécie de morte e renascimento da filosofia, com elementos hegelianos. A terceira é uma espécie de "supressão" ("Aufhebung") da filosofia. Esta é incorporada a uma ciência crítica que não é ciência à maneira dos positivistas. O grande texto do século 20 sobre o problema é a "Dialética Negativa" de Theodor W. Adorno. A obra se volta contra o Marx de 45. Entretanto ela não é simplesmente filosófica, contém um elemento antifilosófico. Há uma frase da "Dialética Negativa" que caracteriza a posição de Adorno (cito de cabeça): "A filosofia é a coisa mais fundamental, mas, tudo bem pensado, ela não é tão importante...". Precisamos dela, mas conhecemos os seus limites. Hoje no Brasil aparece por parte de alguns (penso em particular no meu amigo [e professor de filosofia da USP" Paulo Eduardo Arantes) a tentação de tomar um caminho radicalmente crítico, eu diria antifilosófico. Creio que isso é uma ilusão que pode levar a maus resultados -inclusive no plano da política. O caminho de Adorno é, a meu ver, o mais fecundo. Penso entretanto que, para além de Frankfurt, seria preciso repensar a ética. E é o fato de se passar por cima desse problema o que mais me assusta -mas não só- nas tendências antifilosóficas que surgem no Brasil.
Qual o seu balanço dos oito anos de governo FHC? Como vê uma possível vitória do PT nas eleições presidenciais?
Na medida em que pude acompanhar os últimos acontecimento no Brasil, por meio da internet, o que ocorre com o PT nos últimos tempos é muito preocupante, mas comecemos do começo. A política de FHC, um homem que vem da esquerda e se apresenta como social-democrata, foi muito ruim para a esquerda brasileira, e não creio que tenha sido boa para o país. FHC se elegeu à base de um acordo com o PFL, que representa o núcleo das classes dirigentes brasileiras, núcleo reacionário e corrupto. E se reelegeu em condições mais do que duvidosas. No plano econômico (onde não é fácil opinar, dada a tecnicidade dos problemas, mas não se deve transformar essa tecnicidade em recurso ideológico), se ele se cercou de técnicos astutos -a esquerda, diga-se de passagem, foi bastante cega no que se refere ao problema da inflação-, fez coisas dificilmente admissíveis: duvido que a privatização da Companhia Vale do Rio Doce tenha sido uma coisa boa para o país (sobre as condições dessa privatização e de outras, o governo FHC deve uma explicação). No momento da crise mexicana, ele perdeu tempo e interveio muito tarde, por razões eleitorais. Mas o essencial é o erro de um governo com o PFL e companhia, que só poderia dar no que deu: veja-se o caso da crise energética, que se explica, entre outras razões, pela incompetência, para não dizer mais, de gente nomeada para satisfazer às exigências das alianças eleitorais. Isso posto, ou por isso mesmo, o oportunismo recente do PT é uma catástrofe. Não que os defensores do governo tucano tenham legitimidade para dar lições (ele pegam o PT pelo colarinho por causa das alianças desastrosas que se anunciam, mas, com relação às próprias alianças, dizem: "Piques!... Nós não podemos ser pegos. Nós somos nós e as alianças foram necessárias". Isso não é sério). Na realidade, o processo a que se assiste no atual PT tem como modelo a política de Fernando Henrique Cardoso e do PSDB: o PT imita os tucanos e isso pode ser a morte do PT. Senão, vejamos. Ao contrário do que se diz, a trajetória do PT e de Lula foi, até aqui, muito honrosa. Criou-se um grande partido de esquerda, que em geral administrou bem várias prefeituras, desenvolveu o projeto importante dos orçamentos participativos no sul do país e até obrigou o PSDB a triar os seus candidatos à Vice-Presidência, para ter alguma chance diante do adversário. Que Lula e parte do PT tenham se manifestado contra certas violências do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), não tenho dúvida, é positivo. O MST tem importância como movimento que mobiliza camponeses, mas a sua ideologia, nutrida do culto de Che Guevara e de outros, é pré-totalitária. Isso deve ser dito sem medo e com todas as letras. Lula falou a favor da propriedade privada. Isso também é correto. Propriedade privada é diferente de capital (e, mesmo em relação ao capital, não se trata de acabar com ele amanhã ou depois de amanhã). Remeto os que acham que com isso Lula caminha para a direita à "Introdução Geral" ao meu livro e também a conferências que fiz nos últimos anos. Há um jeito de ir para a esquerda que na realidade leva para a direita ou pelo menos para o totalitarismo (se se quiser falar de totalitarismo de "esquerda").


SE LULA E O PT NÃO ABANDONARAM CERTAS ILUSÕES NO PLANO DA POLÍTICA INTERNACIONAL, O QUE É LAMENTÁVEL, HOUVE CERTAMENTE PROGRESSO


Se Lula e o PT não abandonaram certas ilusões no plano da política internacional, o que é lamentável, houve certamente progresso: eles tomaram alguma distância em relação aos antigos modelos (a propósito da pretensa incompetência do PT, seria preciso lembrar a quantidade de grandes intelectuais brasileiros que apóiam esse partido e as possibilidades que ele tem, por isso, de mobilizar grandes energias intelectuais em caso de vitória. Quanto à ameaça de caos na hipótese de uma vitória de Lula, esse tipo de conversa já existia no tempo do "front populaire" francês e é uma faca de dois gumes). Na realidade o problema das alianças é por um lado ético e por outro lado político. O que quero dizer com isso? Alianças são válidas e possíveis, mas um partido de esquerda democrático que se preze não faz alianças: 1) com gente claramente à direita (com o centro se pode fazer, e não se diga que é difícil distinguir centro e direita, trata-se de estabelecer um critério geral); 2) com gente notoriamente corrupta. A primeira exigência é política, a segunda é ética, mas uma ética que se exige da política, que deve estar incluída na política de um partido de esquerda democrático. A confusão é grande a respeito disto. Se não for corrigido, o caminho que o PT está seguindo conduzirá à sua morte. Votarei em Lula, porque acho que os erros ainda são reversíveis; e espero a sua vitória. Mas o destino da esquerda brasileira não se identifica com o destino do PT e ainda menos com o destino de Lula. Se o PT abandonar a política de alianças oportunistas, escolher um bom candidato (ou candidata) à Vice-Presidência, a derrota não será uma catástrofe. O PT e, com ele, a esquerda continuarão o seu curso ascendente. Mas se ele insistir nessas alianças? Se, nessas condições, ele perder as eleições (e isso pode acontecer, pois nem eleitoralmente é certo que esses pactos valham a pena), acontecerá o que rezava o velho saber churchilliano: venderam a honra para conseguir a vitória, pois tiveram a desonra e a derrota... E, se o PT ganhar nessas condições, ele vai governar apoiado nos "pastores" do PL, nas mais belas flores do PMDB e em quem mais...? Pergunto-me em que um tal governo seria melhor do que os outros?

E se o PT insistir nesse caminho?
Nesse caso, não tenho dúvida (e essa é a atitude de muita gente), deixarei de votar nesse partido. Não para adotar uma posição de repúdio à política, como a que pregam certos neo-anarquistas milenaristas, de que também me ocupo no meu livro, os quais se alimentam precisamente do desencanto crescente com a política do PT. Tampouco iria aderir a algum grupúsculo revolucionário (gostaria que os membros desses grupos estudassem um pouquinho mais a história desastrosa do bolchevismo). Votaria em branco, mas só até que se formasse um novo partido, reunindo as forças socialistas e democráticas não contaminadas pelo oportunismo e pela corrupção. Essa não seria a primeira vez que um partido de esquerda teria apodrecido.
Em seu livro o sr. acusa o governo de FHC e o seu ex-colega José Arthur Giannotti de praticarem e pregarem o "amoralismo". Gostaria que comentasse esse ponto.
Dedico um certo número de páginas do meu livro à crítica de Giannotti. Há um certo parentesco, que assinalo, entre a ética de Giannotti e a ética política de FHC, mas me ocupo da primeira também independentemente, como farei aqui. O que não significa que os problemas que discuto não tenham também implicações políticas, e a fortiori no Brasil de hoje. Tudo isso se articula de algum modo, embora não de modo imediato. Minha crítica a Giannotti é ao mesmo tempo teórica, ética e política. Li "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras), mas não acho que tenha grande importância. Bem mais importantes, porque muito esclarecedores, são os artigos que ele publicou na Folha (refiro-me aos artigos sobre as "zonas de amoralidade" etc.), que analiso em detalhe no meu livro. Tento mostrar: 1) que a suposta leitura vulgar ou ingênua desses textos é a que se impõe: Giannotti procede a uma verdadeira defesa de um certo amoralismo -eu diria do amoralismo- em ética e em política; 2) que esse amoralismo tem afinidade pelo menos com parte dos seus textos teóricos e converge perfeitamente com as suas práticas na universidade, principalmente no plano da competição universitária. Aqui aparecem questões prévias de que trato em detalhes no meu livro. A recusa preliminar em discutir certo tipo de problemas microssociais sob pretexto de que são "individuais" ou "pessoais" não tem nenhuma justificação. Há um individual "pessoal" e há um individual "universal", sem o que a "Crítica da Razão Prática" de Kant seria um livro de fofocas (mesmo se tratadas abstratamente). Contra os preconceitos correntes que professam em uníssono marxistas, nietzchianos, psicanalistas a-críticos, filósofos universitários etc., acho que discutir esse gênero de questões é da maior importância. Nessas discussões, há, é claro, um quociente "individual-pessoal", mas ele não é essencial. Aliás Giannotti sempre usou esse tipo de argumento. Ele, que se pretende crítico do psicologismo, sempre psicologizou sem mais -em relação a seus atos, diz: "É meu jeito", "Eu sou assim"...- o que é de ordem transcendental, o que concerne ao bem e ao mal (ou é, digamos, de ordem "psicoética"). De que estou falando? Do fato de que Giannotti, com alguns dos seus amigos, sempre praticou e pratica um estilo hipercompetitivo e até "brutal" (ele mesmo empregou e assumiu esse termo) dentro da universidade. Na realidade, Giannotti pratica dentro da universidade um tipo de competição que é do estilo da competição comercial ou capitalista. Discuto isso mais em detalhe no meu livro, diria aqui apenas que esse estilo é a morte da universidade. Longe de fecundar o trabalho teórico, a competição sem limites (não falo da emulação ou mesmo da competição com regras, e não se diga que a diferença é relativa: ela é enorme) desserve -sem falar do resto- o progresso intelectual. O argumento de que eles estão preocupados com a "excelência" é pura ideologia; preocupa-lhes isso sim o próprio destino e o dos grupos que representam. Giannotti utiliza o mito popular, totalmente falso, do grande professor "de maus bofes", mas sentinela da ciência e intransigente com a verdade... Isso é ilusório. Se as relações entre virtude e ciência são complicadas, o caso geral é o da convergência, não o da divergência -e, quando ocorre esta última, em geral a ausência de virtude, digamos assim, se opera longe das práticas intelectuais. Com o que não quero dizer que o nível de Giannotti seja "ruim" -na realidade, ele é "mediano"- nem dizer que nada do que escreveu presta. Tudo somado, e apesar das aparências, o segredo de Giannotti está nas suas insuficiências como teórico. As práticas hipercompetitivas lhe são, sem dúvida, fonte de grande prazer, mas os motivos profundos não são apenas "libidinais", são também funcionais; Giannotti precisa delas. As vantagens que poderiam resultar para a coletividade dos raros casos em que o que ele escreveu -refiro-me ao que tem real interesse- não se encontra "melhor", em outro lugar, são amplamente compensadas pelo clima infernal que assim se induz e pelos efeitos negativos desse clima sobre os progressos da teoria. Poderia dar muitos exemplos. Vendo o resultado, uma ética de um amoralismo consternante, uma lógica eclética com pouco brilho e em geral uma produção muito marcada pelo conhecimento-por-ouvir-dizer e sem outra orientação maior que não a da luta contra os "inimigos" (isto é, a do primado da concorrência, que passa a ser substantiva), tenho às vezes a impressão de que Giannotti é uma espécie de Gonçalves de Magalhães (poeta considerado o fundador do romantismo brasileiro) da filosofia brasileira: filósofo semi-oficial, muito apoiado pela mídia, mas sem real talento. Como examina a recente ascensão da extrema direita na Europa? Que consequências ela pode ter?
O assunto exigiria uma resposta longa. Na introdução ao meu livro, escrita em fins de 2001, refiro-me ao problema. Há um componente histórico, a presença de um "fundo" de extrema direita, que agora emerge. Antes de estudar as causas dessa emergência, valeria a pena analisar os casos negativos, isto é, o dos países onde ela não emerge, e estudar por que não emerge. Até aqui -a situação poderia mudar- escapam dessa onda de extrema direita principalmente a Espanha, a Grã-Bretanha e a Alemanha. Acho que as razões são as seguintes: a Espanha e a Alemanha passaram por traumas violentíssimos (derrota e destruição, guerra civil), por causa de governos de extrema direita. Isso de certo modo os imuniza, salvo erro. Quanto à Inglaterra, a vitória sobre o nazismo está inscrita como "página gloriosa" na sua história. Claro que isso tudo vem de mais longe -e é em parte efeito. Passando agora aos casos positivos -limito-me à França-, há um outro dado histórico, porém mais recente. A dissolução do império colonial terminou com a Guerra da Argélia (compare-se com o final relativamente pacífico do Império Britânico, pelo menos no que concerne às relações colônia/metrópole). E a guerra da Argélia significou xenofobia antiárabe, sobretudo no sul. No plano imediato, temos a situação precária dos setores marginalizados pela globalização (setores que a esquerda governamental "esqueceu" completamente, mas a esquerda não-oficial esquece outras coisas), o desenvolvimento de um começo de violência urbana (ligada a esses fenômenos mas também ao enfraquecimento de estruturas familiares e a outros fatores), o déficit democrático e social da construção européia e a questão da imigração. Os países da Europa terão de aceitar a idéia de uma nação pluriétnica e pluri-religiosa, para além dos limites atuais. Ora, o que se fez até aqui em matéria de integração


SE OCORRER UMA CRISE ECONÔMICA AGUDA, A FRANÇA CORRERÁ UM RISCO REAL DE ACORDAR SOB UM GOVERNO FASCISTA


de imigrantes e filhos de imigrantes é muito pouco. Uma medida importante seria a concessão de direito de voto aos estrangeiros não-comunitários (os outros já o têm) nas eleições municipais e européias, medida que, parcial ou totalmente, está no programa da maioria dos partidos de esquerda e extrema esquerda. A mobilização, principalmente da juventude de esquerda, foi muito impressionante e de certo modo salvou -por ora- a República. Mas resta o fato de que uns 5 milhões de franceses votaram e votam num candidato neofascista, racista e demagogo. Principalmente depois de ter lido a excelente biografia de Hitler por Yan Kershaw, um livro que é ao mesmo tempo uma importante história do nazismo, estou convencido de que, se ocorrer uma crise econômica aguda -a tal crise que, segundo alguns, poderia conduzir ao socialismo-, a França correrá um risco real de acordar, um dia, sob um governo fascista.
Analisando o novo terrorismo, o sr. diz que ele combina o que há de mais regressivo no mundo periférico com o que há de mais moderno no mundo capitalista. Como vê as possíveis consequências dessa "aliança"?
O fenômeno do terrorismo tem que ser estudado com muito cuidado, como um fato que não é novo na história. Creio que é preciso pensar o seu caráter regressivo. Ele é certamente regressivo em relação ao capitalismo democrático. O terrorismo fundamentalista atual aparece na interseção de dois elementos: por um lado, se liga ao desmantelamento e à relativa banalização das modernas técnicas de extermínio; por outro, à medida que retoma tradições religiosas antigas, tem algo de arcaico. Mas ele também tem uma modernidade política para além das técnicas de extermínio. Definir essa modernidade não é fácil. Digamos o seguinte: dadas as condições da economia mundial, as características em geral autocráticas dos movimentos de libertação nacional e tendo em vista os erros e crimes dos governos ocidentais -penso no caso Mossadegh no Irã, derrubado por um complô anglo-americano, ou na expedição anti-Nasser no Egito-, os movimentos nacionais e antiimperialistas, uma vez no poder, desembocaram num impasse econômico e político. Das condições desse impasse é que nasceram -e fundamentalmente se desenvolveram, a partir de realidades já existentes- de um lado os novos fundamentalismos e, de outro, as autocracias e terrorismos laicos.
Do ponto de vista do socialismo democrático, tudo isso representa uma aberração. Há uma certa analogia entre o que aconteceu no Primeiro Mundo e na sua periferia imediata. Assim como o socialismo democrático desemboca em poder de Estado na Rússia e no Leste Europeu, os movimentos nacionais e antiimperialistas se perdem nas formas autocráticas ou nos fundamentalismos religiosos. Assim como as burocracias foram e ainda são regressivas, são também regressivos os terrorismos pseudolibertários de toda a sorte e os fundamentalismos político-religiosos. Bem entendido, é preciso evidentemente incluir entre estes últimos o dos colonos israelenses que ocupam ilegalmente o território palestino.



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