São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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Em "História e Teoria Social", Peter Burke analisa o diálogo, ao mesmo tempo tenso e frutífero, entre as ciências humanas desde o século 18

A terceira via do pensamento

Ronaldo Vainfas
especial para a Folha

Peter Burke é autor já bastante conhecido dos historiadores brasileiros, em especial os dedicados ao Antigo Regime. Dele já foram traduzidos no Brasil, entre outros, "Cultura Popular na Idade Moderna" (Cia. das Letras), "A Fabricação do Rei" (ed. Jorge Zahar) e "A Escrita da História" (ed. Unesp), compondo obra de excelente contribuição historiográfica, seja teórica, seja para o conhecimento das transformações operadas na Europa entre os séculos 16 e 18.
"História e Teoria Social" permite conhecer o início da carreira de Burke, pois resultou de curso sobre "estrutura social e mudança social" ministrado na Universidade de Sussex, na Inglaterra, no início dos anos 1960 e publicado somente em 1980. Esta nova versão, datada de 1992, foi razoavelmente revista, pois incorporou algumas contribuições da década de 1980. Mas o livro conserva a estrutura básica original e o eixo teórico da reflexão, ou seja, o problema da teoria social aplicada à história, convencido que estava Burke de que "Marx e Durkheim, Weber e Malinowski ainda têm muito a nos ensinar". Trata-se, assim, de um livro teórico sobre as potencialidades do enfoque interdisciplinar nas ciências humanas e, não obstante pensado inicialmente em termos da relação entre história e sociologia, a antropologia joga papel relevante nas reflexões do autor. Sociologia e antropologia, portanto, compõem, basicamente, o par de disciplinas que Burke chama de "teoria social" ao longo do livro.
O ponto de partida é o diálogo difícil que marcou a relação entre historiadores e "teóricos sociais" desde o limiar da sociologia no pensamento dos "teóricos da sociedade civil". Burke oferece, com base nessa questão, uma utilíssima história da sociologia, da antropologia e da própria história desde o século 18. No século 19, o século da ciência seria o tempo do desencontro radical no seio das humanidades.
De um lado, os historiadores, à frente dos quais Leopold von Ranke, emblema do historicismo oitocentista, desprezando olimpicamente as teorias sociais e refugiados na pesquisa documental, factual, empírica, política. Um ponto de vista compartilhado, aliás, por filósofos-historiadores como Wilhem Dilthey e Benedetto Croce. De outro lado, os "teóricos sociais" da época, como Tocqueville e o próprio Marx, repudiando o trabalho dos historiadores profissionais, mas não a história, em que eram versadíssimos, oferecendo interpretações originais sobre o passado. Spencer resumiu bem esse estado de coisas, ao dizer que "a sociologia estava para a história assim como um edifício estava para um monte de pedras e tijolos ao seu redor...".
Pareto, Weber e Durkheim, os grandes sociólogos da belle époque, expressariam esse tempo da sociologia como "rainha das ciências humanas", uma disciplina ensaística, teórica, porém muito preocupada com a história.
O primeiro paradoxo, mostra-nos Burke, viria nas primeiras décadas do século 20, após a morte de Durkheim e Weber, respectivamente em 1917 e 1920, quando a sociologia abandonou gradativamente a história, desenvolvendo métodos para a avaliação da sociedade contemporânea -a capitalista. Mas os historiadores, por sua vez, despertariam para a importância das teorias sociais, sobretudo da sociologia clássica, com destaque para Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores do movimento dos "Annales" e da famosa revista homônima (1929).


Outro ponto alto do livro é a discussão sobre a pertinência e operosidade dos conceitos, isto é, se vale tentar explicar as sociedades passadas a partir de conceitos que lhes são extemporâneos


Com grande erudição e inteligência, Burke recupera esse percurso de encontro e desencontro, avançando na demonstração dos meios e modos por meio dos quais a história, como disciplina ou ciência, procurou incorporar, ao longo do século 20, perspectivas e métodos da "teoria social", a exemplo da comparação e dos métodos quantitativos, destacando, com razão, a forte aproximação com a antropologia, de que a micro-história desenvolvida na Itália, a partir dos anos 1970, seria o exemplo mais destacado. Por meio de uma exposição didática e sintética, coisa em que Burke é sempre genial, o livro vai desvendando esses diálogos interdisciplinares sem cair em esquematismos ou proselitismos doutrinários tão comuns nesse tipo de obras. Mas não evita enunciar os limites e as críticas que tal ou qual corrente a seu ver merece, como as várias vertentes ancoradas no quantitativismo -a chamada "cliometria"-, ingênuas a ponto de crer na objetividade de seus dados e ignorar o caráter indiciário e imperfeito dos registros coletados.
Outro ponto alto do livro é a discussão sobre a pertinência e operosidade dos conceitos, isto é, se vale tentar explicar as sociedades passadas a partir de conceitos que lhes são extemporâneos ou se o melhor é deixar que a época estudada fale por si mesma -uma tentação dos historiadores mais ligados, por exemplo, à antropologia hermenêutica.
Burke resolve bem a questão, ao sugerir que, embora os "saberes locais" tenham seu valor e devam ser decifrados, a interpretação teórica é essencial. Afinal os historiadores não contemporâneos da época estudada "têm ao menos as vantagens da compreensão a posteriori e de uma visão mais global".
Isso posto, Burke expõe uma série de conceitos operativos ligados aos papéis sociais dos agentes históricos em função da família e parentesco; sexo e gênero; comunidade e identidade; classe e status; centro e periferia; mentalidade e ideologia etc.
Sua excelente exposição abre o leque de possibilidades e deixa claro que a história não pode ser reconstruída a partir unicamente da problemática das classes sociais.
O capítulo final põe em cena uma questão essencial para os historiadores, a saber, a discussão sobre como a teoria social pode ajudá-los a compreender e explicar as mudanças históricas. O ponto de partida reside na exposição e contraste entre o modelo spenceriano e o marxista, ambos de certa forma evolucionistas, embora o primeiro, sob diversas variantes, preconize transições suaves e quase naturais das sociedades tradicionais às modernas, enquanto o segundo enfatiza mudanças abruptas, revolucionárias. Haveria um terceiro caminho? Burke o localiza no que chama de "sociologia histórica", cética quanto ao peso da economia ou da tecnologia no processo de mudança e adepta da política e da guerra como campos essenciais de explicação.
Mas vai além, permitindo-se trabalhar "de dentro para fora" no item "seis monografias à procura de uma teoria". Expõe, então, as contribuições de Norbert Elias, Michel Foucault, Fernand Braudel, Le Roy Ladurie, Nathan Wachtel e Marshal Sahlins, selecionando um livro de cada autor. Se todos eles são hoje muito conhecidos pelos historiadores, nos anos 1960 eram novidade, valendo dizer que os comentários de Peter Buke são ainda de atualidade indiscutível.
Burke termina o livro assumindo, pessoalmente, a validez de certo ecletismo teórico, desde que se o entenda como abertura intelectual para idéias diferentes e consistentes, conforme o objeto de investigação. Mas o que fica claro, lembrando que o texto resulta de um curso universitário, é que Peter Burke, além de historiador, desde o início de sua carreira foi excelente professor. Um mestre capaz de ensinar teoria de forma inteligível em lugar de usá-la para esconder a falta de idéias ou propagar doutrinas.


Ronaldo Vainfas é professor titular do departamento de história da Universidade Federal Fluminense, autor de "Os Protagonistas Anônimos da História" (ed. Campus), entre outros.


História e Teoria Social
280 págs., R$ 30,00
de Peter Burke. Ed. Unesp (pça. da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/3242-7171).



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