São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Saída à francesa

O psicanalista Renato Mezan avalia o livro motivacional escrito por Carlos Alberto Parreira e tenta entender o fracasso do Brasil na Copa

RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

No sábado 1º de julho, os brasileiros assistiram estarrecidos a um vexame da seleção nacional. Apáticos, desorganizados, os jogadores permitiram à França impor seu estilo e chutaram pouquíssimas vezes a gol. "Time sem vergonha", "desengonçado", "dorminhoco", "covarde", bradavam os jornais no dia seguinte. Boleiros de todos os matizes ofereceram explicações para o desastre; alguns apontaram fatores de ordem psicológica, já que a Kaká e seus companheiros sobram talento e experiência.
Nada entendo de futebol e não me estimo competente para avaliar as análises que pipocaram na imprensa, no rádio e na televisão.
A pouca preparação de conjunto, a realização de um único amistoso em Moscou -a -17ºC, em março!-, as dificuldades para se concentrar em Weggis [na Suíça] sob o assédio de tantos curiosos, a demora do técnico em promover substituições necessárias e sua obstinação com o "quadrado trágico", a má forma de alguns atletas -parece razoável supor que tudo isso tenha contribuído para o fracasso. Meu ângulo é outro: eu diria que, além de garra, o que faltou aos representantes do Brasil foi um pouco da velha e boa psicanálise.
Explico-me: não era preciso colocar divãs no vestiário. Mas a característica mais visível do time -ser constituído por estrelas que em sua maioria jogam no exterior- requeria cuidados particulares em matéria de preparação psicológica.

Obstáculos específicos
O descaso com esse aspecto fundamental pode ter sido decisivo para o pífio desempenho contra a França e contra nossos demais adversários -e isso apesar de Carlos Alberto Parreira ser autor do livro "Formando Equipes Vencedoras" (ed. Best-Seller), no qual sublinha a cada página a importância da motivação e do espírito de equipe que tão cruelmente faltaram aos seus comandados.
Atentemos um pouco para a situação emocional daqueles homens, que poucas vezes e só a grandes intervalos haviam atuado juntos. Não é impossível unir indivíduos brilhantes numa equipe: os físicos que fizeram a bomba atômica, os conjuntos de câmara de música erudita, os professores de um cursinho bem-sucedido mostram que isso é factível. Mas, para obter êxito nessa tarefa, é preciso vencer obstáculos muito específicos.
Um deles é a rivalidade entre os integrantes do grupo; outro consiste na confiança na própria superioridade, na crença de que a performance esperada se materializará espontaneamente. Em competições, isso conduz a menosprezar o adversário e a esperar que os outros, ou a sorte, se encarreguem de fazer o necessário para obter a vitória.
Foi o que vimos no lance do gol francês. Ninguém menos que Pelé comentou que havia três jogadores brasileiros "à toa"; Zidane surpreendeu nossa zaga cobrando rapidamente a falta, a bola passou por todos e aterrissou aos pés de Henry. A jogada era ensaiada, surgira várias vezes ao longo da partida, e os brasileiros a tinham discutido na véspera, mas ninguém fez nada do que havia sido combinado para a neutralizar.
Falhou Roberto Carlos que, a bem da verdade, não estava "ajeitando a liga" (Arnaldo Jabor, psicografando Nelson Rodrigues em "O Estado de S. Paulo"), mas espreitando os adversários por baixo das próprias pernas. Todos pareciam esperar que alguém saltasse, mas ninguém o fez, e o resultado foi o que sabemos.
A arrogância ("hybris"), sabe-se desde os gregos, é o que traz ruína aos heróis. Pessoas de quem se espera um grande desempenho tendem a ocultar sua ansiedade e seus medos atrás dessa máscara, que corresponde a uma reação maníaca diante de fantasias e angústias muito humanas.
A isso se acrescenta, no caso da seleção brasileira, algo que Luis Fernando Veríssimo notou com argúcia: o peso do passado, a necessidade de igualar -já que superá-los é quase impossível- os gigantes que tantas glórias conquistaram.

Intimidação
Falou-se no desrespeito à camisa amarela, na displicência com que Ronaldo e companhia envergaram o uniforme ilustre.
Creio que se trata de outra coisa: por trás da soberba, havia intimidação, e não só diante de Leônidas, Pelé, Garrincha, Rivelino e outros deuses mais recentes. Era intimidação diante de si mesmos, temor de não corresponderem à expectativa de tantos e às exigências do próprio superego.
Ter trabalhado esse aspecto da angústia dos jogadores não teria talvez trazido a sexta estrela, mas certamente os ajudaria a ver nos companheiros um apoio indispensável para atingir a meta comum e a criar o espírito de equipe que em momento nenhum eles apresentaram. Tal espírito só surge nas condições que Freud descreveu em "Psicologia das Massas": identificação recíproca entre os membros de um grupo, como conseqüência da identificação de cada um com um ideal de ego (causa, bandeira, valor) investido por todos.
Muito se falou sobre o fato de que, por atuarem na Europa, os jogadores têm pouco contato com a torcida brasileira e que foi um erro não terem se concentrado na Granja Comary [em Teresópolis, RJ], vendo a cada dia atrás do alambrado os rostos ansiosos dos compatriotas e imbuindo-se da responsabilidade de não os decepcionar.
Não se tratava de vencer a qualquer preço, mas -como fizeram argentinos e ingleses- de lutar até o fim e deixar o estádio de cabeça erguida. Ao invés disso, diriam as más línguas, nossa seleção saiu da Copa à francesa -e duplamente: eliminados pelos "bleus" e sorrateiros, furtivos, pelos fundos do hotel.
Em comparação, lembre-se que em 2002 Luiz Felipe Scolari também tinha nas mãos astros de primeira grandeza e soube fazer deles um time, não uma "fila de ônibus", para usar uma das imagens com que Parreira descreve um grupo sem objetivos comuns.
Para quem conhece a complexidade da alma humana e a sutileza com que a psicanálise procura dar conta dela, a leitura das platitudes que recheiam os manuais de "liderança" produz um misto de incredulidade e irritação. O livro de Parreira se baseia nessa psicologia rasteira, difundida por palestrantes (ai, a língua portuguesa...) e paga a peso de ouro por platéias deslumbradas pela tecnologia do PowerPoint.
Em vez de se servir dos conhecimentos acumulados em um século de exploração do inconsciente -a delicada relojoaria das fantasias, ansiedades e defesas, movida por poderosos impulsos emocionais-, essa psicologia de botequim confia em receitas do seguinte teor: "Crie um ambiente positivo, com uma atitude mental positiva, contra as influências negativas, valorizando as conquistas e estabelecendo um clima de paz e harmonia no grupo. Busque o melhor desempenho, lute contra a resistência às mudanças..." ("Formando...", pág. 83).
Para "acender a chama interior que nos impulsiona rumo aos objetivos", nosso psicólogo se apóia em "histórias de superação, para estimular os indivíduos a se mirar nelas" (pág. 80). Crente de que "a motivação é uma necessidade biológica, como dormir, comer e respirar" (pág. 90), estabelece "metas concretas" a serem atingidas por "estímulos concretos": "Acerte um número x de passes" ou "diminua seu tempo".
O pressuposto disso tudo -que soa como música aos ouvidos dos que acham que a vida psíquica se regula pela aritmética- é uma confusa mistura de voluntarismo com técnicas de persuasão inspiradas (distantemente, diga-se de passagem) pela teoria skinneriana do condicionamento.
O sucesso dessas práticas para treinar cachorros e golfinhos é inegável, mas bem menor quando os "modelos inspiradores" esbarram em inibições internas, em identificações contraditórias e em angústias cuja origem mergulha no remoto passado infantil.

Fracasso do sobrenatural
Ainda que Parreira tivesse obedecido à risca suas próprias recomendações (entre outras, "ter sempre um líder em campo", "não existe fórmula; é entrega, trabalho duro, sem cara feia", "manter acesa a mística da camisa amarela"), o resultado teria possivelmente sido o mesmo de 1994, quando, após duas horas de combate inglório, a seleção se tornou tetracampeã graças ao nervosismo de Roberto Baggio, que chutou para fora o seu pênalti.
Uma última reflexão: vivemos na sociedade da imagem, nos dizem. Tudo é aparência, nada mais tem a áspera consistência da realidade. Nossos craques, apesar dos comerciais para a TV em que exercitam toda a sua habilidade com a bola, demonstraram quão ilusória é essa afirmação: sem realidade que a sustente, a imagem se torna simulacro e, ao primeiro teste, se esfuma.
O "dream team" só existia na imaginação dos seus componentes e na esperança de 180 milhões de brasileiros.
E de nada adiantou recorrer ao sobrenatural, que, na comissão técnica, parece substituir o respeito pela realidade, tanto a "concreta" quanto a psíquica. À página 138 da obra de Parreira, lemos sobre o "lado místico, que os grandes líderes não devem deixar totalmente de lado. Não significa nada de concreto, mas cria uma força positiva".
A eficácia dessa força pode ser medida pela sorte que o técnico diz ter com o número sete, já que nasceu "num dia 27, em 43, que, somados, dão 7" (?!). O jogo com os gauleses ocorreu em 1º/ 7/06; ora, além de estarmos no mês 7, o dia mais o ano dão 7, duplicando o número favorável. "Qu'en dites-vous, Monsieur Parreira?"
"Sim, amigos", como diria o cronista de "À Sombra das Chuteiras Imortais": faltou psicanálise, sobraram psicologia barata e superstições.
O legado de Freud não pode, é claro, substituir um bom preparo técnico. Mas talvez tivesse sido útil no terreno emocional, abrindo espaço para que os jogadores ultrapassassem suas barreiras internas e pudessem exibir em campo todo o talento que possuem. Fica a sugestão para 2010: afinal, ignorar a realidade psíquica é o melhor modo de se deixar derrotar por ela.


RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

Texto Anterior: Biblioteca básica: Macau
Próximo Texto: + música: Um mundo sem maravilhas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.