|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ autores
Saída à francesa
O psicanalista
Renato Mezan
avalia o livro
motivacional
escrito por
Carlos Alberto
Parreira e tenta
entender o
fracasso do
Brasil na Copa
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
No sábado 1º de julho, os brasileiros
assistiram estarrecidos a um vexame
da seleção nacional. Apáticos, desorganizados,
os jogadores permitiram à
França impor seu estilo e chutaram pouquíssimas vezes a
gol. "Time sem vergonha", "desengonçado", "dorminhoco",
"covarde", bradavam os jornais
no dia seguinte. Boleiros de todos os matizes ofereceram explicações para o desastre; alguns apontaram fatores de ordem psicológica, já que a Kaká
e seus companheiros sobram
talento e experiência.
Nada entendo de futebol e
não me estimo competente para avaliar as análises que pipocaram na imprensa, no rádio e
na televisão.
A pouca preparação de conjunto, a realização de um único
amistoso em Moscou -a -17ºC,
em março!-, as dificuldades
para se concentrar em Weggis
[na Suíça] sob o assédio de tantos curiosos, a demora do técnico em promover substituições necessárias e sua obstinação com o "quadrado trágico", a
má forma de alguns atletas
-parece razoável supor que tudo isso tenha contribuído para
o fracasso. Meu ângulo é outro:
eu diria que, além de garra, o
que faltou aos representantes
do Brasil foi um pouco da velha
e boa psicanálise.
Explico-me: não era preciso
colocar divãs no vestiário. Mas
a característica mais visível do
time -ser constituído por estrelas que em sua maioria jogam no exterior- requeria cuidados particulares em matéria
de preparação psicológica.
Obstáculos específicos
O descaso com esse aspecto
fundamental pode ter sido decisivo para o pífio desempenho
contra a França e contra nossos
demais adversários -e isso
apesar de Carlos Alberto Parreira ser autor do livro "Formando Equipes Vencedoras"
(ed. Best-Seller), no qual sublinha a cada página a importância da motivação e do espírito
de equipe que tão cruelmente
faltaram aos seus comandados.
Atentemos um pouco para a
situação emocional daqueles
homens, que poucas vezes e só
a grandes intervalos haviam
atuado juntos. Não é impossível unir indivíduos brilhantes
numa equipe: os físicos que fizeram a bomba atômica, os
conjuntos de câmara de música
erudita, os professores de um
cursinho bem-sucedido mostram que isso é factível. Mas,
para obter êxito nessa tarefa, é
preciso vencer obstáculos muito específicos.
Um deles é a rivalidade entre
os integrantes do grupo; outro
consiste na confiança na própria superioridade, na crença
de que a performance esperada
se materializará espontaneamente. Em competições, isso
conduz a menosprezar o adversário e a esperar que os outros,
ou a sorte, se encarreguem de
fazer o necessário para obter a
vitória.
Foi o que vimos no lance do
gol francês. Ninguém menos
que Pelé comentou que havia
três jogadores brasileiros "à
toa"; Zidane surpreendeu nossa zaga cobrando rapidamente
a falta, a bola passou por todos e
aterrissou aos pés de Henry. A
jogada era ensaiada, surgira várias vezes ao longo da partida, e
os brasileiros a tinham discutido na véspera, mas ninguém fez
nada do que havia sido combinado para a neutralizar.
Falhou Roberto Carlos que, a
bem da verdade, não estava
"ajeitando a liga" (Arnaldo Jabor, psicografando Nelson Rodrigues em "O Estado de S.
Paulo"), mas espreitando os adversários por baixo das próprias pernas. Todos pareciam
esperar que alguém saltasse,
mas ninguém o fez, e o resultado foi o que sabemos.
A arrogância ("hybris"), sabe-se desde os gregos, é o que
traz ruína aos heróis. Pessoas
de quem se espera um grande
desempenho tendem a ocultar
sua ansiedade e seus medos
atrás dessa máscara, que corresponde a uma reação maníaca diante de fantasias e angústias muito humanas.
A isso se acrescenta, no caso
da seleção brasileira, algo que
Luis Fernando Veríssimo notou com argúcia: o peso do passado, a necessidade de igualar
-já que superá-los é quase impossível- os gigantes que tantas glórias conquistaram.
Intimidação
Falou-se no desrespeito à camisa amarela, na displicência
com que Ronaldo e companhia
envergaram o uniforme ilustre.
Creio que se trata de outra
coisa: por trás da soberba, havia
intimidação, e não só diante de
Leônidas, Pelé, Garrincha, Rivelino e outros deuses mais recentes. Era intimidação diante
de si mesmos, temor de não
corresponderem à expectativa
de tantos e às exigências do
próprio superego.
Ter trabalhado esse aspecto
da angústia dos jogadores não
teria talvez trazido a sexta estrela, mas certamente os ajudaria a ver nos companheiros um
apoio indispensável para atingir a meta comum e a criar o espírito de equipe que em momento nenhum eles apresentaram. Tal espírito só surge nas
condições que Freud descreveu em "Psicologia das Massas": identificação recíproca
entre os membros de um grupo, como conseqüência da
identificação de cada um com
um ideal de ego (causa, bandeira, valor) investido por todos.
Muito se falou sobre o fato de
que, por atuarem na Europa, os
jogadores têm pouco contato
com a torcida brasileira e que
foi um erro não terem se concentrado na Granja Comary
[em Teresópolis, RJ], vendo a
cada dia atrás do alambrado os
rostos ansiosos dos compatriotas e imbuindo-se da responsabilidade de não os decepcionar.
Não se tratava de vencer a
qualquer preço, mas -como fizeram argentinos e ingleses-
de lutar até o fim e deixar o estádio de cabeça erguida. Ao invés disso, diriam as más línguas, nossa seleção saiu da Copa à francesa -e duplamente:
eliminados pelos "bleus" e sorrateiros, furtivos, pelos fundos
do hotel.
Em comparação, lembre-se
que em 2002 Luiz Felipe Scolari também tinha nas mãos astros de primeira grandeza e
soube fazer deles um time, não
uma "fila de ônibus", para usar
uma das imagens com que Parreira descreve um grupo sem
objetivos comuns.
Para quem conhece a complexidade da alma humana e a
sutileza com que a psicanálise
procura dar conta dela, a leitura das platitudes que recheiam
os manuais de "liderança" produz um misto de incredulidade
e irritação. O livro de Parreira
se baseia nessa psicologia rasteira, difundida por palestrantes (ai, a língua portuguesa...) e
paga a peso de ouro por platéias
deslumbradas pela tecnologia
do PowerPoint.
Em vez de se servir dos conhecimentos acumulados em
um século de exploração do inconsciente -a delicada relojoaria das fantasias, ansiedades e
defesas, movida por poderosos
impulsos emocionais-, essa
psicologia de botequim confia
em receitas do seguinte teor:
"Crie um ambiente positivo,
com uma atitude mental positiva, contra as influências negativas, valorizando as conquistas e
estabelecendo um clima de paz
e harmonia no grupo. Busque o
melhor desempenho, lute contra a resistência às mudanças..." ("Formando...", pág. 83).
Para "acender a chama interior que nos impulsiona rumo
aos objetivos", nosso psicólogo
se apóia em "histórias de superação, para estimular os indivíduos a se mirar nelas" (pág. 80).
Crente de que "a motivação é
uma necessidade biológica, como dormir, comer e respirar"
(pág. 90), estabelece "metas
concretas" a serem atingidas
por "estímulos concretos":
"Acerte um número x de passes" ou "diminua seu tempo".
O pressuposto disso tudo
-que soa como música aos ouvidos dos que acham que a vida
psíquica se regula pela aritmética- é uma confusa mistura de
voluntarismo com técnicas de
persuasão inspiradas (distantemente, diga-se de passagem)
pela teoria skinneriana do condicionamento.
O sucesso dessas práticas para treinar cachorros e golfinhos
é inegável, mas bem menor
quando os "modelos inspiradores" esbarram em inibições internas, em identificações contraditórias e em angústias cuja
origem mergulha no remoto
passado infantil.
Fracasso do sobrenatural
Ainda que Parreira tivesse
obedecido à risca suas próprias
recomendações (entre outras,
"ter sempre um líder em campo", "não existe fórmula; é entrega, trabalho duro, sem cara
feia", "manter acesa a mística
da camisa amarela"), o resultado teria possivelmente sido o
mesmo de 1994, quando, após
duas horas de combate inglório, a seleção se tornou tetracampeã graças ao nervosismo
de Roberto Baggio, que chutou
para fora o seu pênalti.
Uma última reflexão: vivemos na sociedade da imagem,
nos dizem. Tudo é aparência,
nada mais tem a áspera consistência da realidade. Nossos craques, apesar dos comerciais para a TV em que exercitam toda
a sua habilidade com a bola, demonstraram quão ilusória é essa afirmação: sem realidade
que a sustente, a imagem se torna simulacro e, ao primeiro teste, se esfuma.
O "dream team" só existia na
imaginação dos seus componentes e na esperança de 180
milhões de brasileiros.
E de nada adiantou recorrer
ao sobrenatural, que, na comissão técnica, parece substituir o
respeito pela realidade, tanto a
"concreta" quanto a psíquica. À
página 138 da obra de Parreira,
lemos sobre o "lado místico,
que os grandes líderes não devem deixar totalmente de lado.
Não significa nada de concreto,
mas cria uma força positiva".
A eficácia dessa força pode
ser medida pela sorte que o técnico diz ter com o número sete,
já que nasceu "num dia 27, em
43, que, somados, dão 7" (?!). O
jogo com os gauleses ocorreu
em 1º/ 7/06; ora, além de estarmos no mês 7, o dia mais o ano
dão 7, duplicando o número favorável. "Qu'en dites-vous,
Monsieur Parreira?"
"Sim, amigos", como diria o
cronista de "À Sombra das
Chuteiras Imortais": faltou psicanálise, sobraram psicologia
barata e superstições.
O legado de Freud não pode,
é claro, substituir um bom preparo técnico. Mas talvez tivesse
sido útil no terreno emocional,
abrindo espaço para que os jogadores ultrapassassem suas
barreiras internas e pudessem
exibir em campo todo o talento
que possuem. Fica a sugestão
para 2010: afinal, ignorar a realidade psíquica é o melhor modo de se deixar derrotar por ela.
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Texto Anterior: Biblioteca básica: Macau Próximo Texto: + música: Um mundo sem maravilhas Índice
|