São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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+ música

Um mundo sem maravilhas

Relação de Louis Armstrong com a pobreza e a segregação em Nova Orleans é tema de livro nos EUA

MIKE HOBART

O enorme papel de Louis Armstrong na evolução do jazz talvez seja incontestável; no entanto há uma dúvida incômoda. Haveria realmente um gênio transcendental por trás de seu dúbio revirar de olhos, tendo por pano de fundo o Carnaval de Nova Orleans? O acadêmico Thomas Brothers reuniu, em "Louis Armstrong's New Orleans" ["A Nova Orleans de Louis Armstrong", Norton, 386 págs., 17,99 libras, R$ 72], uma riqueza de detalhes históricos para explicar como surgiu o gênio. Quaisquer imagens românticas que restavam da Nova Orleans do início do século 20 logo são afastadas por depoimentos sobre os desfiles de rua, que percorriam "caminhos de lama pútrida, cheia de esgoto". A cidade crepitava com tensões sociais -em certo momento, ela foi dividida em campos étnicos.
Armstrong cresceu em um bairro operário duro, onde grassava a prostituição. Quando criança, vagava pelas ruas, onde cantava por trocados. Parte de seu aprendizado foi tocando nas bandas ambulantes que surgiam em quase qualquer ocasião, de enterros a anúncios de novas lojas. Alguns músicos detestavam tocar nessas bandas, temendo a violência dos passantes e as doenças nas ruas pútridas.
Armstrong, porém, adorava a liberdade de movimento das paradas, que o levavam a partes da cidade normalmente proibidas aos afro-americanos. Ele também se dedicou a dominar a improvisação e a harmonia européia, técnicas que eram protegidas pelos músicos de pele mais clara. Brothers destrincha brilhantemente as hierarquias de classe e cor com que Armstrong teve de lidar para alcançar êxito como músico. Armstrong foi incomumente fiel aos valores culturais de sua origem na periferia, mas seu gênio foi apropriar-se das técnicas de diversas tradições musicais.
Dez anos após deixar Nova Orleans, ele se apresentou para o rei da Inglaterra, anunciando de modo genial: "Esta é para o senhor, Rex". Rex era o nome dado ao rei branco no Carnaval de Nova Orleans, alvo de zombaria dos participantes do Carnaval negro. É improvável que sua platéia real tivesse consciência do claro insulto racial contido nessas palavras.
Do contrário, talvez o rei não tivesse achado tão divertido o título da canção: "I'll Be Glad You're Dead You Rascal You" [Ficarei Feliz Quando Você Morrer, Seu Bandido].


MIKE HOBART é crítico de jazz do "Financial Times", jornal em que este texto foi publicado.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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