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A consciência de uma nação
Caso Dreyfus, que está completando cem anos, projetou figura do intelectual na sociedade moderna
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Contra Alfred Dreyfus
nenhuma acusação
subsiste." Com essa
declaração, a Corte
francesa encerrou,
em 12 de julho de 1906, um dos
mais rumorosos casos judiciais
da história moderna. O "affaire
Dreyfus", como foi conhecido,
transformou-se num divisor de
águas, numa crise de consciência de grandes proporções.
O centenário da absolvição, à
qual se seguiu a indenização
moral sob a forma da Legião de
Honra, está sendo evocado na
França com numerosos eventos e com o lançamento de várias obras sobre o tema.
Relembrando. Em 1894 o capitão de artilharia Alfred Dreyfus foi acusado de passar segredos militares franceses à Embaixada alemã em Paris.
Dreyfus era judeu, e a denúncia logo gerou ruidosas manifestações anti-semitas. Intimidado por elas, o alto comando
militar francês levou o capitão
à corte marcial. As evidências
eram contraditórias, para dizer
o mínimo, e numerosos erros
judiciais foram cometidos, mas
mesmo assim o tribunal acabou condenando Dreyfus por
alta traição. O militar foi deportado para a ilha do Diabo,
na Guiana Francesa, um lugar
que, pelas terríveis condições,
fazia jus ao sinistro nome, e lá
ficou por quase cinco anos.
Nesse meio tempo, assumiu
o novo chefe da contra-espionagem, o tenente-coronel
Georges Piquart, prosseguiu a
investigação e descobriu o verdadeiro espião, o major Ferdinand Esterhazy. Os superiores
de Piquart disseram que não
maculariam ainda mais a imagem do Exército com um novo
julgamento. Piquart protestou
e foi, por sua vez, preso.
A condenação de Dreyfus desencadeou uma onda de protestos que culminaram na famosa carta aberta do escritor
Émile Zola ao presidente Félix
Faure, carta à qual o jornalista
e político Georges Clemenceau
deu o título pelo qual até hoje é
conhecida -"J'Accuse", eu
acuso- e que foi publicada em
13/1/1898 no jornal "L'Aurore". Em setembro de 1899, o
presidente da França ofereceu
a Dreyfus o perdão judicial, que
ele recusou. Finalmente veio a
reabilitação.
Anti-semitismo
Poucos eventos tiveram tamanha repercussão quanto o
caso Dreyfus. De um lado, ficou
clara a força do anti-semitismo,
mesmo num país culto e refinado como a França, berço de
uma revolução que supostamente consagrou a liberdade, a
igualdade e a fraternidade.
O fato impressionou particularmente um jornalista austríaco que estava em Paris cobrindo o julgamento. Theodor
Herzl era um judeu assimilado
e não dava muita importância a
suas origens. O caso Dreyfus fez
com que mudasse radicalmente. Passou a defender a idéia de
que os judeus necessitavam de
um Estado em que pudessem
levar uma existência normal,
sem o temor da perseguição,
um objetivo a que o Holocausto
deu trágica legitimidade e que
foi atingido com a criação do
Estado de Israel, em 1948.
De outra parte, o caso Dreyfus evidenciou a força e a virulência de uma direita racista,
organizada em grupos dos
quais a Action Française, de
Charles Maurras, foi um exemplo. Na Segunda Guerra, essa
direita seria a base do governo
de Vichy, que colaborou com os
nazistas e deportou milhares
de judeus para os campos de
concentração.
Diante dessa maré de intolerância, a esquerda e os liberais
se deram conta de que não poderiam ficar calados e inermes.
Alguém precisava funcionar
como intérprete da realidade
sociopolítica e cultural, como
voz da consciência.
Surgia assim o intelectual. A
palavra, aparentemente, não
existia antes do caso Dreyfus.
Sua criação é atribuída ora a
Clemenceau ora ao direitista
Maurice Barrès, que a usou para referir-se ironicamente aos signatários de um manifesto lançado em defesa de
Dreyfus.
No caso Dreyfus, os intelectuais estavam unidos em
torno de uma causa; eram
todos "dreyfusards".
Mas -e exatamente por
causa da independência de
pensamento que forçosamente os caracterizava-
não tardaram a entrar em
amargas polêmicas. A Primeira Guerra opôs pacifistas e patriotas; a Revolução
Russa separou trotskistas
de stalinistas. E depois havia a militância político-partidária, com o inevitável
choque entre grupos e facções, mesmo de esquerda.
O engajamento já não era
espontâneo, obedecia a diretrizes e exigia adaptações,
acomodações e até negação
de posições previamente
assumidas -aquilo que Julien Benda chamou de "a
traição dos intelectuais".
A era dos intelectuais
chegou a seu auge no período 1945-1950, com Jean-Paul Sartre e o existencialismo. Sartre, "o intelectual
completo", nas palavras de
Pierre Bourdieu, foi membro da Resistência antinazista e era escritor, dramaturgo, jornalista, filósofo.
A revista "Les Temps Modernes", que dirigia, se tornou porta-voz da intelectualidade. Mas Sartre também foi criticado por sua
militante adesão ao maoísmo (apesar de haver rompido com o Partido Comunista, que se tornara o reduto
de muitos intelectuais).
Mocinhos e bandidos
A denúncia dos crimes do
stalinismo, em 1956, abalou
profundamente não apenas
a esquerda como a intelectualidade. Cada vez mais ficava difícil diferenciar
quem eram, em política, os
mocinhos e os bandidos, os
heróis e os vilões (para dar
um exemplo atual: Saddam
Hussein é contra o império
americano, mas isso faz dele
um herói?).
Não é de estranhar que
muitos intelectuais tenham
optado por não se manifestar; aliás, uma jornada de
debates realizada recentemente tinha como mote "O
Silêncio dos Intelectuais".
O silêncio resulta da perplexidade, e é interessante
lembrar que, no século 12, o
médico e filósofo Maimônides escreveu um tratado
chamado exatamente "O
Guia dos Perplexos".
Tido como obra sobre a
religião judaica (considerada herética por muitos), o
"Guia" envolve, contudo,
uma meditação sobre a busca da verdade, que, segundo
Maimônides, ora é evidente, ora se oculta.
Encontrá-la é uma tarefa
espinhosa e, no presente
momento, o Brasil presencia um debate muito ilustrativo dessa dificuldade,
naquilo que já está sendo
chamado de "a guerra dos
manifestos" e que opõe, de
um lado, intelectuais favoráveis às cotas para minorias étnicas nas universidades públicas e, de outro, os
que temem a emergência de
uma espécie de racismo em
razão da medida.
Os dois lados estão de
acordo quanto a que algo
deve ser feito para corrigir
as clamorosas desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira, e que datam de séculos, mas diferem
quanto à maneira de corrigir essas desigualdades.
Será pela identidade racial? Será pela renda? Será
pelo investimento na escola
pública? Estamos no início
dessa discussão, e é possível
que em alguns momentos
ela se torne amarga, mas, de
qualquer modo, é benéfica.
Nem tudo na vida é decidido com a precisão da matemática; o relacionamento
entre seres humanos é dialético: a verdade, ou uma
verdade, surgindo do inevitável choque de opiniões. E
essa verdade, mostra-nos o
caso Dreyfus, acaba se impondo, mesmo depois de
muito tempo, mesmo à custa de sofrimento. Nesse sentido, ele é um verdadeiro
guia dos perplexos.
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