São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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A consciência de uma nação

Caso Dreyfus, que está completando cem anos, projetou figura do intelectual na sociedade moderna

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Contra Alfred Dreyfus nenhuma acusação subsiste." Com essa declaração, a Corte francesa encerrou, em 12 de julho de 1906, um dos mais rumorosos casos judiciais da história moderna. O "affaire Dreyfus", como foi conhecido, transformou-se num divisor de águas, numa crise de consciência de grandes proporções.
O centenário da absolvição, à qual se seguiu a indenização moral sob a forma da Legião de Honra, está sendo evocado na França com numerosos eventos e com o lançamento de várias obras sobre o tema.
Relembrando. Em 1894 o capitão de artilharia Alfred Dreyfus foi acusado de passar segredos militares franceses à Embaixada alemã em Paris.
Dreyfus era judeu, e a denúncia logo gerou ruidosas manifestações anti-semitas. Intimidado por elas, o alto comando militar francês levou o capitão à corte marcial. As evidências eram contraditórias, para dizer o mínimo, e numerosos erros judiciais foram cometidos, mas mesmo assim o tribunal acabou condenando Dreyfus por alta traição. O militar foi deportado para a ilha do Diabo, na Guiana Francesa, um lugar que, pelas terríveis condições, fazia jus ao sinistro nome, e lá ficou por quase cinco anos.
Nesse meio tempo, assumiu o novo chefe da contra-espionagem, o tenente-coronel Georges Piquart, prosseguiu a investigação e descobriu o verdadeiro espião, o major Ferdinand Esterhazy. Os superiores de Piquart disseram que não maculariam ainda mais a imagem do Exército com um novo julgamento. Piquart protestou e foi, por sua vez, preso.
A condenação de Dreyfus desencadeou uma onda de protestos que culminaram na famosa carta aberta do escritor Émile Zola ao presidente Félix Faure, carta à qual o jornalista e político Georges Clemenceau deu o título pelo qual até hoje é conhecida -"J'Accuse", eu acuso- e que foi publicada em 13/1/1898 no jornal "L'Aurore". Em setembro de 1899, o presidente da França ofereceu a Dreyfus o perdão judicial, que ele recusou. Finalmente veio a reabilitação.

Anti-semitismo
Poucos eventos tiveram tamanha repercussão quanto o caso Dreyfus. De um lado, ficou clara a força do anti-semitismo, mesmo num país culto e refinado como a França, berço de uma revolução que supostamente consagrou a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
O fato impressionou particularmente um jornalista austríaco que estava em Paris cobrindo o julgamento. Theodor Herzl era um judeu assimilado e não dava muita importância a suas origens. O caso Dreyfus fez com que mudasse radicalmente. Passou a defender a idéia de que os judeus necessitavam de um Estado em que pudessem levar uma existência normal, sem o temor da perseguição, um objetivo a que o Holocausto deu trágica legitimidade e que foi atingido com a criação do Estado de Israel, em 1948.
De outra parte, o caso Dreyfus evidenciou a força e a virulência de uma direita racista, organizada em grupos dos quais a Action Française, de Charles Maurras, foi um exemplo. Na Segunda Guerra, essa direita seria a base do governo de Vichy, que colaborou com os nazistas e deportou milhares de judeus para os campos de concentração.
Diante dessa maré de intolerância, a esquerda e os liberais se deram conta de que não poderiam ficar calados e inermes. Alguém precisava funcionar como intérprete da realidade sociopolítica e cultural, como voz da consciência.
Surgia assim o intelectual. A palavra, aparentemente, não existia antes do caso Dreyfus. Sua criação é atribuída ora a Clemenceau ora ao direitista Maurice Barrès, que a usou para referir-se ironicamente aos signatários de um manifesto lançado em defesa de Dreyfus.
No caso Dreyfus, os intelectuais estavam unidos em torno de uma causa; eram todos "dreyfusards".
Mas -e exatamente por causa da independência de pensamento que forçosamente os caracterizava- não tardaram a entrar em amargas polêmicas. A Primeira Guerra opôs pacifistas e patriotas; a Revolução Russa separou trotskistas de stalinistas. E depois havia a militância político-partidária, com o inevitável choque entre grupos e facções, mesmo de esquerda.
O engajamento já não era espontâneo, obedecia a diretrizes e exigia adaptações, acomodações e até negação de posições previamente assumidas -aquilo que Julien Benda chamou de "a traição dos intelectuais".
A era dos intelectuais chegou a seu auge no período 1945-1950, com Jean-Paul Sartre e o existencialismo. Sartre, "o intelectual completo", nas palavras de Pierre Bourdieu, foi membro da Resistência antinazista e era escritor, dramaturgo, jornalista, filósofo.
A revista "Les Temps Modernes", que dirigia, se tornou porta-voz da intelectualidade. Mas Sartre também foi criticado por sua militante adesão ao maoísmo (apesar de haver rompido com o Partido Comunista, que se tornara o reduto de muitos intelectuais).

Mocinhos e bandidos
A denúncia dos crimes do stalinismo, em 1956, abalou profundamente não apenas a esquerda como a intelectualidade. Cada vez mais ficava difícil diferenciar quem eram, em política, os mocinhos e os bandidos, os heróis e os vilões (para dar um exemplo atual: Saddam Hussein é contra o império americano, mas isso faz dele um herói?).
Não é de estranhar que muitos intelectuais tenham optado por não se manifestar; aliás, uma jornada de debates realizada recentemente tinha como mote "O Silêncio dos Intelectuais". O silêncio resulta da perplexidade, e é interessante lembrar que, no século 12, o médico e filósofo Maimônides escreveu um tratado chamado exatamente "O Guia dos Perplexos".
Tido como obra sobre a religião judaica (considerada herética por muitos), o "Guia" envolve, contudo, uma meditação sobre a busca da verdade, que, segundo Maimônides, ora é evidente, ora se oculta.
Encontrá-la é uma tarefa espinhosa e, no presente momento, o Brasil presencia um debate muito ilustrativo dessa dificuldade, naquilo que já está sendo chamado de "a guerra dos manifestos" e que opõe, de um lado, intelectuais favoráveis às cotas para minorias étnicas nas universidades públicas e, de outro, os que temem a emergência de uma espécie de racismo em razão da medida.
Os dois lados estão de acordo quanto a que algo deve ser feito para corrigir as clamorosas desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira, e que datam de séculos, mas diferem quanto à maneira de corrigir essas desigualdades.
Será pela identidade racial? Será pela renda? Será pelo investimento na escola pública? Estamos no início dessa discussão, e é possível que em alguns momentos ela se torne amarga, mas, de qualquer modo, é benéfica.
Nem tudo na vida é decidido com a precisão da matemática; o relacionamento entre seres humanos é dialético: a verdade, ou uma verdade, surgindo do inevitável choque de opiniões. E essa verdade, mostra-nos o caso Dreyfus, acaba se impondo, mesmo depois de muito tempo, mesmo à custa de sofrimento. Nesse sentido, ele é um verdadeiro guia dos perplexos.


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