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A nova era do rádio
Em "Os Anos de Chumbo",
o crítico
Arlindo Machado
reúne textos escritos no período militar
e vê a censura como ameaça
à web
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Arlindo Machado resolveu reunir textos
seus produzidos
durante o regime
militar no Brasil.
Lance arriscado para quem se
propõe a pensar temas tão "velozes" como as novas tecnologias, o cinema e a televisão.
Mas o resultado, que se pode
ler em "Os Anos de Chumbo", é
um achado inesperado do professor de comunicação e semiótica, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e
de cinema, rádio e TV na USP.
Ele encontra em temas mais
ou menos "marginais" do período -o rádio, as técnicas, o
"cinema conceitual"- pontos
de contato com debates e problemas atuais -novas formas
de pensamento para além da
forma escrita e a internet.
Machado defende, na entrevista abaixo, que vivemos um
período de transição entre o
primado da escrita sobre o pensamento e novas formas de
pensar propiciadas pelo audiovisual -problema que já estaria na obra do cineasta Jean-Luc Godard. E aponta risco de
restrição ao diálogo aberto na
internet -o que já teria acontecido, no passado, com o rádio.
FOLHA - Num dos ensaios do livro,
o sr. menciona o desejo manifestado por Bertolt Brecht de que os rádios fossem usados não exclusivamente como receptores, mas também como emissores, o que modificaria relações de poder. A internet,
de certa maneira, é isso, não é?
ARLINDO MACHADO - Isso tem sido dito. Numa matéria recente,
a revista "Wired" fazia essa
comparação: o rádio era o que é
a internet hoje. O sujeito comprava o rádio, que era transmissor e receptor e, ao comprá-lo,
adquiria também uma faixa de
onda que era dele -que seria
como se fosse o endereço de e-mail ou sua página pessoal.
E o rádio tinha, no início, um
sistema de rede, pois seu alcance era limitado. Se você quisesse atingir uma região além do
seu alcance, enviava a mensagem para uma pessoa específica, que a retransmitia, e assim
por diante. Que é mais ou menos como funciona a internet.
O rádio funcionou assim, durante todo um primeiro período. Só que chegou um momento em que a transmissão foi separada da recepção. Esse artigo
colocava a questão: será que isso não poderia acontecer com a
internet também?
É uma advertência. Cada vez
mais há discursos conservadores com respeito à internet. O
fato de haver muita pornografia, pedofilia, o uso da internet
por grupos terroristas serve de
munição para os setores mais
conservadores dizerem que ela
precisa ser controlada.
Em algum momento, isso poderá ser um pretexto para que
certos consórcios internacionais intervenham e retirem a
possibilidade de você ser um
receptor e um transmissor.
Existe o precedente do rádio
-a história não necessariamente precisa se repetir, mas é
preciso estar atento.
FOLHA - No livro, o sr. escrevia durante a ditadura. Quando mudamos
para uma situação de mais democracia, a expectativa é de que o pensamento se torne mais crítico e efetivo. Mas fica a sensação de que a
capacidade de intervenção é sempre
pequena, que tudo pode ser dito,
mas pouco muda. Faz sentido?
MACHADO - Não sei. É um pouco
relativo. Existe um pensamento crítico hoje, mas diferente
daquela época, quando o pensamento era mais radical
-mais que isso, às vezes era
mesmo sectário. Esse sectarismo do pensamento, que continua existindo em certos grupos, implica uma visão messiânica do mundo, a noção de que
se pode transformar o mundo
em algo diferente do que é.
O pensamento crítico mudou
muito. Não sei se para pior, talvez tenha mudado para melhor.
Acho que as pessoas têm mais o
pé no chão hoje. Não exigimos
do mundo mais do que ele pode
ser. Conhecemos os limites da
sociedade para mudar. O que
buscamos hoje são mudanças
pontuais, em certos aspectos,
que possam tornar o mundo
mais habitável.
Quando leio os meus textos,
percebo que alguns ainda são
baseados numa utopia de virada radical.
FOLHA - Então por que reunir textos do período da ditadura?
MACHADO - Nunca tive a intenção de publicar. Mas, de repente, comecei a perceber que uma
série de questões que estão
sendo colocadas hoje são de
certa forma retomadas de
questões daquela época.
Talvez não seja por acaso que
vários livros e questões daquele
período sejam retomados. Os
filmes do Godard daquele período, por exemplo, de 1968 ao
final dos anos 70 -aquela fase
invisível do Godard-, estão todos sendo relançados.
Algumas questões que estão
sendo colocadas na internet, algumas questões de mídia tática,
são retomadas de idéias daquele período. Isso é um aspecto do
problema.
Outro aspecto é que havia então uma discussão marginal sobre a técnica, que foi crescendo
e hoje é hegemônica. Fora isso,
ainda há a discussão do que eu
chamava de "cinema conceitual", e recentemente a questão
de um audiovisual que estaria
substituindo o livro voltou.
Um pensamento que eu tinha naquele tempo, que parecia meio morto, mas que de repente ressuscitou, especialmente pela obra do Godard.
Que seria uma espécie de filósofo, hoje, só que não escreve
mais livros, mas um filósofo
que faz filmes, vídeos, programas de televisão. O pensamento hoje talvez não esteja mais
sendo escrito.
Provavelmente, daqui para a
frente, o pensamento não será
mais necessariamente escrito.
Será escrito, também, mas haverá outras formas de manifestação do pensamento que não
unicamente essa.
Deleuze já apontara isso. O
Godard, na série "História(s)
do Cinema", para a TV, faz isso,
ao pensar o cinema, faz uma
crítica ao cinema, sobre a sua
impossibilidade de dar conta
do mundo e de fazer uma intervenção real na sociedade.
FOLHA - E por que esses limites do
cinema?
MACHADO - Talvez ele esteja ali
hipervalorizando sua própria
obra. Talvez dizendo que ninguém havia conseguido ainda o
que ele já fizera: transformar o
cinema numa forma de pensamento, e não apenas numa técnica de contar histórias.
Talvez esteja querendo dizer
que o cinema quis dar um salto,
e não conseguiu. Poderia ser a
linguagem do século 20, do século 21, o modo como as pessoas pensam, como as pessoas
educam, como transmitem seu
pensamento. A TV talvez seja
mais isso.
Acho que vivemos um período de transição. Continuamos
publicando livros. Mas você vê
que as novas gerações têm cada
vez mais dificuldade de lidar
com essa civilização do livro.
Por outro lado, são absolutamente eloqüentes quando pegam uma câmera na mão,
quando estão na frente de um
computador, de um programa
de edição. Há facilidade em lidar com essas linguagens e dificuldade em colocar sujeito, verbo e complemento numa frase.
É uma mutação que está
acontecendo.
Se você imaginar que quase
todo mundo tem um celular,
com uma câmera que é capaz
de gravar um vídeo, e que as câmeras recentes podem até editar um vídeo... Um celular hoje
é uma estação completa de produção audiovisual -e há gente
mesmo fazendo documentários com celulares.
Fico imaginando que no futuro será muito mais fácil fazer
audiovisual do que escrever. Os
instrumentos ficaram tão baratos, tão acessíveis que fazer um
vídeo hoje é uma coisa banal
-como se a possibilidade de fazer um vídeo estivesse tão à
mão quanto ter uma caneta e
uma caderneta de anotações.
FOLHA - Isso cria diferenças na forma de pensamento?
MACHADO - Creio que sim. Se
acreditarmos, como [Marshall]
McLuhan, que muitas das nossas limitações de pensamento
são fruto de uma cultura da escrita, linearizada, hierárquica,
baseada na lei, sim. Godard diz
isso, de seu desejo de retomar o
diálogo socrático, da possibilidade de ter um pensamento se
constituindo -não uma coisa
dogmática, escrita, registrada
em um livro.
FOLHA - Isso é mais fácil na cultura
do audiovisual e da internet?
MACHADO - Penso que sim,
principalmente a partir dos
meios pós-cinematográficos.
Na época em que escrevi estes textos, eles ainda eram muito cinematográficos, porque é o
que existia na época.
Mas depois tudo se radicalizou. A internet levou isso às últimas conseqüências. Você pode constituir um pensamento
audiovisual de modo simples e
inclusive distribuí-lo pela internet. Vivemos uma mutação
muito grande, muito repentina.
E creio que o pensamento vai
viver saltos gigantescos.
OS ANOS DE CHUMBO
Autor: Arlindo Machado
Editora: Sulina (tel. 0/xx/51/3311-4082)
Quanto: R$ 39 (312 págs.)
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