São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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A nova era do rádio

Em "Os Anos de Chumbo", o crítico Arlindo Machado reúne textos escritos no período militar e vê a censura como ameaça à web

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Arlindo Machado resolveu reunir textos seus produzidos durante o regime militar no Brasil.
Lance arriscado para quem se propõe a pensar temas tão "velozes" como as novas tecnologias, o cinema e a televisão.
Mas o resultado, que se pode ler em "Os Anos de Chumbo", é um achado inesperado do professor de comunicação e semiótica, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e de cinema, rádio e TV na USP. Ele encontra em temas mais ou menos "marginais" do período -o rádio, as técnicas, o "cinema conceitual"- pontos de contato com debates e problemas atuais -novas formas de pensamento para além da forma escrita e a internet.
Machado defende, na entrevista abaixo, que vivemos um período de transição entre o primado da escrita sobre o pensamento e novas formas de pensar propiciadas pelo audiovisual -problema que já estaria na obra do cineasta Jean-Luc Godard. E aponta risco de restrição ao diálogo aberto na internet -o que já teria acontecido, no passado, com o rádio.

 

FOLHA - Num dos ensaios do livro, o sr. menciona o desejo manifestado por Bertolt Brecht de que os rádios fossem usados não exclusivamente como receptores, mas também como emissores, o que modificaria relações de poder. A internet, de certa maneira, é isso, não é?
ARLINDO MACHADO -
Isso tem sido dito. Numa matéria recente, a revista "Wired" fazia essa comparação: o rádio era o que é a internet hoje. O sujeito comprava o rádio, que era transmissor e receptor e, ao comprá-lo, adquiria também uma faixa de onda que era dele -que seria como se fosse o endereço de e-mail ou sua página pessoal. E o rádio tinha, no início, um sistema de rede, pois seu alcance era limitado. Se você quisesse atingir uma região além do seu alcance, enviava a mensagem para uma pessoa específica, que a retransmitia, e assim por diante. Que é mais ou menos como funciona a internet. O rádio funcionou assim, durante todo um primeiro período. Só que chegou um momento em que a transmissão foi separada da recepção. Esse artigo colocava a questão: será que isso não poderia acontecer com a internet também?
É uma advertência. Cada vez mais há discursos conservadores com respeito à internet. O fato de haver muita pornografia, pedofilia, o uso da internet por grupos terroristas serve de munição para os setores mais conservadores dizerem que ela precisa ser controlada. Em algum momento, isso poderá ser um pretexto para que certos consórcios internacionais intervenham e retirem a possibilidade de você ser um receptor e um transmissor. Existe o precedente do rádio -a história não necessariamente precisa se repetir, mas é preciso estar atento.

FOLHA - No livro, o sr. escrevia durante a ditadura. Quando mudamos para uma situação de mais democracia, a expectativa é de que o pensamento se torne mais crítico e efetivo. Mas fica a sensação de que a capacidade de intervenção é sempre pequena, que tudo pode ser dito, mas pouco muda. Faz sentido?
MACHADO -
Não sei. É um pouco relativo. Existe um pensamento crítico hoje, mas diferente daquela época, quando o pensamento era mais radical -mais que isso, às vezes era mesmo sectário. Esse sectarismo do pensamento, que continua existindo em certos grupos, implica uma visão messiânica do mundo, a noção de que se pode transformar o mundo em algo diferente do que é. O pensamento crítico mudou muito. Não sei se para pior, talvez tenha mudado para melhor. Acho que as pessoas têm mais o pé no chão hoje. Não exigimos do mundo mais do que ele pode ser. Conhecemos os limites da sociedade para mudar. O que buscamos hoje são mudanças pontuais, em certos aspectos, que possam tornar o mundo mais habitável. Quando leio os meus textos, percebo que alguns ainda são baseados numa utopia de virada radical.

FOLHA - Então por que reunir textos do período da ditadura?
MACHADO -
Nunca tive a intenção de publicar. Mas, de repente, comecei a perceber que uma série de questões que estão sendo colocadas hoje são de certa forma retomadas de questões daquela época. Talvez não seja por acaso que vários livros e questões daquele período sejam retomados. Os filmes do Godard daquele período, por exemplo, de 1968 ao final dos anos 70 -aquela fase invisível do Godard-, estão todos sendo relançados. Algumas questões que estão sendo colocadas na internet, algumas questões de mídia tática, são retomadas de idéias daquele período. Isso é um aspecto do problema. Outro aspecto é que havia então uma discussão marginal sobre a técnica, que foi crescendo e hoje é hegemônica. Fora isso, ainda há a discussão do que eu chamava de "cinema conceitual", e recentemente a questão de um audiovisual que estaria substituindo o livro voltou. Um pensamento que eu tinha naquele tempo, que parecia meio morto, mas que de repente ressuscitou, especialmente pela obra do Godard. Que seria uma espécie de filósofo, hoje, só que não escreve mais livros, mas um filósofo que faz filmes, vídeos, programas de televisão. O pensamento hoje talvez não esteja mais sendo escrito. Provavelmente, daqui para a frente, o pensamento não será mais necessariamente escrito. Será escrito, também, mas haverá outras formas de manifestação do pensamento que não unicamente essa. Deleuze já apontara isso. O Godard, na série "História(s) do Cinema", para a TV, faz isso, ao pensar o cinema, faz uma crítica ao cinema, sobre a sua impossibilidade de dar conta do mundo e de fazer uma intervenção real na sociedade.

FOLHA - E por que esses limites do cinema?
MACHADO -
Talvez ele esteja ali hipervalorizando sua própria obra. Talvez dizendo que ninguém havia conseguido ainda o que ele já fizera: transformar o cinema numa forma de pensamento, e não apenas numa técnica de contar histórias. Talvez esteja querendo dizer que o cinema quis dar um salto, e não conseguiu. Poderia ser a linguagem do século 20, do século 21, o modo como as pessoas pensam, como as pessoas educam, como transmitem seu pensamento. A TV talvez seja mais isso. Acho que vivemos um período de transição. Continuamos publicando livros. Mas você vê que as novas gerações têm cada vez mais dificuldade de lidar com essa civilização do livro. Por outro lado, são absolutamente eloqüentes quando pegam uma câmera na mão, quando estão na frente de um computador, de um programa de edição. Há facilidade em lidar com essas linguagens e dificuldade em colocar sujeito, verbo e complemento numa frase. É uma mutação que está acontecendo. Se você imaginar que quase todo mundo tem um celular, com uma câmera que é capaz de gravar um vídeo, e que as câmeras recentes podem até editar um vídeo... Um celular hoje é uma estação completa de produção audiovisual -e há gente mesmo fazendo documentários com celulares. Fico imaginando que no futuro será muito mais fácil fazer audiovisual do que escrever. Os instrumentos ficaram tão baratos, tão acessíveis que fazer um vídeo hoje é uma coisa banal -como se a possibilidade de fazer um vídeo estivesse tão à mão quanto ter uma caneta e uma caderneta de anotações.

FOLHA - Isso cria diferenças na forma de pensamento?
MACHADO -
Creio que sim. Se acreditarmos, como [Marshall] McLuhan, que muitas das nossas limitações de pensamento são fruto de uma cultura da escrita, linearizada, hierárquica, baseada na lei, sim. Godard diz isso, de seu desejo de retomar o diálogo socrático, da possibilidade de ter um pensamento se constituindo -não uma coisa dogmática, escrita, registrada em um livro.

FOLHA - Isso é mais fácil na cultura do audiovisual e da internet?
MACHADO -
Penso que sim, principalmente a partir dos meios pós-cinematográficos. Na época em que escrevi estes textos, eles ainda eram muito cinematográficos, porque é o que existia na época. Mas depois tudo se radicalizou. A internet levou isso às últimas conseqüências. Você pode constituir um pensamento audiovisual de modo simples e inclusive distribuí-lo pela internet. Vivemos uma mutação muito grande, muito repentina. E creio que o pensamento vai viver saltos gigantescos.


OS ANOS DE CHUMBO
Autor:
Arlindo Machado
Editora: Sulina (tel. 0/xx/51/3311-4082)
Quanto: R$ 39 (312 págs.)


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