São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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O palco descabelado

No "Discurso sobre a Poesia Dramática", de 1758, o filósofo iluminista Diderot antevê os experimentos do teatro moderno

MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Discurso sobre a Poesia Dramática" é texto básico da teoria teatral, e Denis Diderot, o autor, sumidade no assunto. Tanto que Lessing [1729-81], o pai do teatro alemão, chegou a dizer que, depois de Aristóteles, nenhum outro espírito filosófico se ocupara com tanta propriedade do drama. A obra é, na verdade, uma carta endereçada a Melchior Grimm, editor da revista "Correspondência Literária, Filosófica e Crítica".
A forma escolhida mostra o ímpeto polifônico do texto, que abre mão da homofonia típica do tratado e comprova mais uma vez que a epístola é gênero adequado para a divulgação da teoria; basta lembrar a célebre carta de Lukács a Leo Popper acerca do ensaio e dois outros trabalhos pioneiros do próprio Diderot -"Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem" (1749) e "Carta sobre os Surdos-Mudos para Uso dos que Podem Ouvir e Falar" (1751).
Neles, a estrutura monológica do tratado também é abandonada em favor do dialogismo da carta. No "Discurso", Diderot diz que o espectador deve sair do teatro levando impressões, e não palavras, e bate na altissonância dos dramaturgos franceses, poetas que escrevem dramas. O filósofo iluminista prega a veemência na ação, um entusiasmo quase descabelado -daí o fato de antecipar teorias do melodrama-, que berra e geme na tradição de Ésquilo e Shakespeare.
A palavra é secundária; o que vale no drama é a pantomima, tanto que lhe parece menos importante redigir as falas do que indicar as atitudes. Sua teoria quer transtornar, tocar a alma do espectador, causar tumulto na platéia. Diderot desafia o decoro, valoriza o natural; vê na história o fundamento do drama e diz -ingênuo- que virtude e verdade são as coisas que mais comovem o homem na arte. Aproveita também para analisar sua própria obra, falar de suas intenções e responder (o texto é de 1758) às críticas sofridas por sua peça "O Filho Natural" (1757), ilustrando a teoria com exemplos clássicos e de sua própria dramaturgia.

Vivência do real
O objetivo é eliminar a distância entre palco e platéia e fazer com que o espectador tenha a ilusão de vivenciar um acontecimento real.
Se isso distancia Diderot do teatro de um teórico moderno como Bertolt Brecht, o fato de sua peça perfeita ser, conforme Barthes, uma "sucessão de quadros" aproxima-o da cena épica do mesmo Brecht e ainda torna procedente o título de um texto de Eisenstein, escrito em 1943: "Diderot Falou de Cinema!".
Ademais, no "Paradoxo sobre o Comediante", Diderot defende a frialdade do ator contra a sensibilidade, o que mais uma vez o aproxima da estética antiilusionista de Brecht. De quebra, Diderot faz belas considerações de talhe aforístico no "Discurso" -o autor já mostrara dominar o gênero em "Pensamentos sobre a Interpretação da Natureza", 1754: por exemplo, quando fala da "vaidade dos elogios prodigalizados por ignorância e aceitos por despudor". Acerca da crítica, diz: "O que é ruim passa, malgrado o elogio da imbecilidade, e o que é bom permanece, malgrado a hesitação da ignorância e o clamor da inveja".
Publicado pela Brasiliense em 1986, na presente edição o "Discurso" tem mais da metade de suas 195 páginas composta por anexos, notas, índices e prefácio, frutos do trabalho cuidadoso de Franklin de Mattos. Os anexos trazem a fortuna crítica imediata da obra e vão desde as considerações de Abbé de la Porte às invectivas pragmáticas e divertidas de madame Riccoboni, passando pela resposta ainda mais divertida -e séria ao mesmo tempo- de Diderot à escritora.
Há também uma breve carta de Voltaire, colaborador da "Enciclopédia" (1751-1772) encabeçada por Diderot.

Sátira ao claustro
Dez anos antes do "Discurso", Diderot já teorizava em "As Jóias Indiscretas" [Global]. Apesar do enredo simples e de se situar na esteira do romance libertino, a primeira obra do autor já apresenta uma teoria da arte, adianta temas e formas da obra futura e antecipa conclusões da psicologia moderna.
Com "A Religiosa" (1796, Ediouro), Diderot faria uma sátira ao caráter antinatural da vida no claustro, antecipando Nietzsche ao mostrar que os votos de castidade, obediência e pobreza representam uma atrofia e até uma depravação do ser humano.
A teoria aplicada de Diderot continua na consciência de ficcionalidade de "Isso Não É um Conto" (1773), precursor do conto moderno pela concentração extrema dos meios em direção ao clímax, e mesmo em duas publicações póstumas antecipadoras: "Jacques o Fatalista e Seu Mestre" -romance extraordinário, na esteira do anti-romance de Cervantes ("Dom Quixote") e Laurence Sterne ("Tristram Shandy")- e "O Sobrinho de Rameau" [leia texto ao lado], diálogo satírico-filosófico arrebatador.
Se as teses do "Discurso" podem parecer um tanto antiquadas diante da experimentação dos palcos contemporâneos, é certo que o realismo e a naturalidade que propagam deixariam o teatro nosso de cada dia menos hermético e mais palatável; no melhor dos sentidos!


MARCELO BACKES é escritor e tradutor, doutor em germanística e romanística pela Universidade de Freiburg (Alemanha).

DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMÁTICA
Autor: Denis Diderot
Tradutor: Franklin de Mattos
Editora: Cosacnaify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 49 (200 págs.)


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