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O palco descabelado
No "Discurso
sobre a Poesia
Dramática", de
1758, o filósofo
iluminista
Diderot
antevê os
experimentos
do teatro
moderno
MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Discurso sobre a
Poesia Dramática"
é texto básico da
teoria teatral, e Denis Diderot, o autor, sumidade no assunto. Tanto que Lessing [1729-81], o pai
do teatro alemão, chegou a dizer que, depois de Aristóteles,
nenhum outro espírito filosófico se ocupara com tanta propriedade do drama. A obra é, na
verdade, uma carta endereçada
a Melchior Grimm, editor da
revista "Correspondência Literária, Filosófica e Crítica".
A forma escolhida mostra o
ímpeto polifônico do texto, que
abre mão da homofonia típica
do tratado e comprova mais
uma vez que a epístola é gênero
adequado para a divulgação da
teoria; basta lembrar a célebre
carta de Lukács a Leo Popper
acerca do ensaio e dois outros
trabalhos pioneiros do próprio
Diderot -"Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem"
(1749) e "Carta sobre os Surdos-Mudos para Uso dos que
Podem Ouvir e Falar" (1751).
Neles, a estrutura monológica do tratado também é abandonada em favor do dialogismo
da carta.
No "Discurso", Diderot diz
que o espectador deve sair do
teatro levando impressões, e
não palavras, e bate na altissonância dos dramaturgos franceses, poetas que escrevem
dramas. O filósofo iluminista
prega a veemência na ação, um
entusiasmo quase descabelado
-daí o fato de antecipar teorias
do melodrama-, que berra e
geme na tradição de Ésquilo e
Shakespeare.
A palavra é secundária; o que
vale no drama é a pantomima,
tanto que lhe parece menos
importante redigir as falas do
que indicar as atitudes. Sua
teoria quer transtornar, tocar a
alma do espectador, causar tumulto na platéia.
Diderot desafia o decoro, valoriza o natural; vê na história o
fundamento do drama e diz
-ingênuo- que virtude e verdade são as coisas que mais comovem o homem na arte.
Aproveita também para analisar sua própria obra, falar de
suas intenções e responder (o
texto é de 1758) às críticas sofridas por sua peça "O Filho
Natural" (1757), ilustrando a
teoria com exemplos clássicos
e de sua própria dramaturgia.
Vivência do real
O objetivo é eliminar a distância entre palco e platéia e fazer com que o espectador tenha
a ilusão de vivenciar um acontecimento real.
Se isso distancia Diderot do
teatro de um teórico moderno
como Bertolt Brecht, o fato de
sua peça perfeita ser, conforme
Barthes, uma "sucessão de quadros" aproxima-o da cena épica
do mesmo Brecht e ainda torna
procedente o título de um texto
de Eisenstein, escrito em 1943:
"Diderot Falou de Cinema!".
Ademais, no "Paradoxo sobre
o Comediante", Diderot defende a frialdade do ator contra a
sensibilidade, o que mais uma
vez o aproxima da estética antiilusionista de Brecht.
De quebra, Diderot faz belas
considerações de talhe aforístico no "Discurso" -o autor já
mostrara dominar o gênero em
"Pensamentos sobre a Interpretação da Natureza", 1754:
por exemplo, quando fala da
"vaidade dos elogios prodigalizados por ignorância e aceitos
por despudor". Acerca da crítica, diz: "O que é ruim passa,
malgrado o elogio da imbecilidade, e o que é bom permanece,
malgrado a hesitação da ignorância e o clamor da inveja".
Publicado pela Brasiliense
em 1986, na presente edição o
"Discurso" tem mais da metade de suas 195 páginas composta por anexos, notas, índices e
prefácio, frutos do trabalho
cuidadoso de Franklin de Mattos. Os anexos trazem a fortuna
crítica imediata da obra e vão
desde as considerações de Abbé de la Porte às invectivas
pragmáticas e divertidas de
madame Riccoboni, passando
pela resposta ainda mais divertida -e séria ao mesmo tempo- de Diderot à escritora.
Há também uma breve carta
de Voltaire, colaborador da
"Enciclopédia" (1751-1772) encabeçada por Diderot.
Sátira ao claustro
Dez anos antes do "Discurso", Diderot já teorizava em "As
Jóias Indiscretas" [Global].
Apesar do enredo simples e de
se situar na esteira do romance
libertino, a primeira obra do
autor já apresenta uma teoria
da arte, adianta temas e formas
da obra futura e antecipa conclusões da psicologia moderna.
Com "A Religiosa" (1796,
Ediouro), Diderot faria uma sátira ao caráter antinatural da
vida no claustro, antecipando
Nietzsche ao mostrar que os
votos de castidade, obediência
e pobreza representam uma
atrofia e até uma depravação
do ser humano.
A teoria aplicada de Diderot
continua na consciência de ficcionalidade de "Isso Não É um
Conto" (1773), precursor do
conto moderno pela concentração extrema dos meios em
direção ao clímax, e mesmo em
duas publicações póstumas antecipadoras: "Jacques o Fatalista e Seu Mestre" -romance
extraordinário, na esteira do
anti-romance de Cervantes
("Dom Quixote") e Laurence
Sterne ("Tristram Shandy")- e
"O Sobrinho de Rameau" [leia
texto ao lado], diálogo satírico-filosófico arrebatador.
Se as teses do "Discurso" podem parecer um tanto antiquadas diante da experimentação
dos palcos contemporâneos, é
certo que o realismo e a naturalidade que propagam deixariam o teatro nosso de cada dia
menos hermético e mais palatável; no melhor dos sentidos!
MARCELO BACKES é escritor e tradutor, doutor em
germanística e romanística pela Universidade de Freiburg
(Alemanha).
DISCURSO SOBRE A POESIA DRAMÁTICA
Autor:
Denis Diderot
Tradutor:
Franklin de Mattos
Editora:
Cosacnaify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto:
R$ 49 (200 págs.)
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