São Paulo, domingo, 09 de agosto de 2009

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Conversa fiada

Na era das tecnologias da comunicação, declínio da arte do diálogo é ideia prematura

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Muitos livros já foram escritos sobre a arte da conversa, vários deles recentemente. Um dos temas recorrentes é que a arte da conversa vem perdendo força nos últimos 50 anos, ou mesmo há mais tempo. O tema ganha ênfase em "Conversation - A History of a Declining Art" [Conversação - Uma História de uma Arte em Declínio, Yale University Press], do norte-americano Stephen Miller.
De acordo com o autor, a era de ouro da conversação foi o século 18, especialmente na Inglaterra de David Hume [filósofo], Samuel Johnson [poeta e crítico] e seus amigos. Miller não nega a importância da contribuição francesa, tampouco presta muita atenção a ela.
Ele tem pouco de bom a dizer sobre as práticas em seu próprio país, mesmo no século 19, mas até o século 19 parece bom comparado ao que ele tem a dizer sobre os "modernos inimigos da conversação", de Norman Mailer [escritor] ao rapper Eminem, e sobre "as maneiras como hoje deixamos de conversar".
Devemos, é claro, cuidar para não idealizar ou exagerar as virtudes do "mundo conversador que perdemos", quer destaquemos as cortes da Itália renascentista (como a de Urbino, descrita vividamente por Baldassare Castiglione em seu "O Cortesão"), os salões parisienses dos séculos 17 e 18 (com anfitriãs como a marquesa de Rambouillet) ou as tavernas e os clubes de Londres ou Edimburgo no século 18.
Johnson, afinal, era um grande orador, mas não está claro que ouvisse os outros oradores o suficiente para ser descrito como grande praticante do diálogo. O relato de Miller é demasiado pessimista e simplista. Mesmo assim, a ideia de uma arte em declínio é um artifício útil, pois nos encoraja a formular perguntas sobre a natureza da conversação e também sobre as condições materiais, sociais e culturais que tornaram a boa conversa possível no passado e que podem possibilitá-la hoje ou no futuro.
Em um espaço limitado, é provavelmente melhor nos concentrarmos em dois pontos, um relativo à especialização das formas de conversa e o outro sobre os espaços ou lugares em que essas formas de conversa acontecem.
É comum observar que a sociedade contemporânea depende de divisões de trabalho muito mais precisas e de uma especialização muito maior do que nas sociedades do passado, especialmente nas sociedades pré-industriais das chamadas eras de ouro da conversação, desde o Renascimento até o iluminismo (sem falar na China, no Japão, na Índia ou no mundo islâmico).
Não surpreende, portanto, que seja necessário distinguir diversos gêneros orais.

Conversa viva
Um dos primeiros que vêm à mente é o seminário acadêmico, em que a discussão geral que se segue à apresentação de um tópico particular é pelo menos tão importante quanto a própria apresentação.
Próximo ao seminário, mas menos formal, está o "grupo de discussão" que se reúne regularmente, em horas marcadas, para discutir tópicos escolhidos de antemão. Um tipo especial de grupo de discussão, o "talk show", acontece num estúdio de TV e permite que milhões de pessoas o acompanhem como ouvintes e, às vezes, façam intervenções. Um quarto gênero de conversação é a entrevista, geralmente um diálogo entre duas pessoas, às vezes mais.
Nesses quatro casos, o espaço em que o colóquio acontece tem extrema importância. Os organizadores de seminários, por exemplo, sabem que as discussões são mais animadas em determinados ambientes, assim como sabem quando é hora de sair do espaço acadêmico e passar para um café ou bar, pois beber juntos garante que a conversa flua mais livremente. A tradicional tertúlia espanhola era realizada em um café particular por essa mesma razão.
Conversas menos formais e mais gerais aconteciam, e de fato ainda acontecem em volta da mesa do jantar. Uma das razões pelas quais a cultura tradicional da troca oral de ideias ainda sobrevive nas faculdades de Oxford e Cambridge é que essas faculdades contam com "salas comuns" em que são servidos café e vinho. Os fundamentos materiais da sociabilidade, incluindo a conversação, não devem ser esquecidos.
Mas um desafio a nossas concepções sobre os gêneros e os espaços da conversação surgiu com a ascensão da internet. Miller faz menção breve aos blogs como mais um exemplo de "artifício para evitar a conversa", trazendo à mente a imagem do indivíduo solitário diante da tela. Poderíamos, porém, enxergar os blogs como uma forma de comunicação.
Assim como as "salas de bate-papo" on-line oferecem espaços virtuais para o flerte e a fofoca, os blogs proporcionam a indivíduos comuns oportunidades de expressar suas opiniões sobre fatos da atualidade, incluindo comentários sobre os comentários de outras pessoas. O fato de não podermos ver ou ouvir os outros comentaristas tem a vantagem de nos libertar de certos preconceitos.
Castiglione, a marquesa de Rambouillet ou Johnson talvez ficassem chocados com os avanços recentes, mas estes parecem ser apropriados para uma sociedade que é relativamente democrática e igualitária, além de tecnologicamente sofisticada. Se enxergarmos os blogs como uma forma de conversa, ao lado dos seminários, grupos de discussão, entrevistas e "talk shows", a ideia do declínio de uma arte tradicional parece ser prematura.

PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar).

Tradução de Clara Allain.



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