São Paulo, domingo, 09 de agosto de 2009

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Jardins rarefeitos

Poesia de Dora Ribeiro cria um sensualismo quase abstrato, de onde tira sua força e seus impasses

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Nem todos concordarão em dizer-se que Augusto de Campos é o nosso único grande poeta vivo. Mas poucos discordarão em declarar-se que, entre as dezenas de poetas jovens, poucos parecem fadados a permanecer. Entre eles, está Dora Ribeiro.
Não se dá por acaso que sua obra seja pequena. Ser poeta, ou melhor, manter-se poeta, sobretudo em um país de público ralo, de crítica quase inexistente e de frágeis departamentos de letras é muito difícil; desde logo, ele não contará com publicidade e terá de dispor de seus próprios meios para ser o seu próprio editor. Como "A Teoria do Jardim" (Companhia das Letras, 96 págs, R$ 32,50) surge em uma editora dotada de boa distribuição, espera-se que Dora Ribeiro tenha saltado esse primeiro obstáculo.
Comece-se pela referência a dois poemas de abertura. O primeiro principia com os versos "girassol/ abre os braços a cada manhã/ pensando no caminho/ e no avesso dele". O segundo é um dos poucos com título: "Paisagem Brasileira". Em um e outro, o "jardim" encontra seus polos. O polo-girassol declara o que se cumpre no jardim: é ele formado menos por coisas ou seres, cheiros e cores, embora sejam nomeados, do que pelo movimento das sensações. O que assume o direito de pertencer ao jardim foi ou é presença, porém mais importa pela dinâmica que o impregna.
O polo-paisagem, encarnado por um único poema, não é por isso menos relevante: sem ele, o jardim correria o risco de ter uma função decorativa. A "paisagem brasileira" dá as costas ao descritivismo testemunhal, variante "politicamente correta" do velho realismo, e ressalta o lugar onde o jardim se situa.
Seu posicionamento não precisa de palavras nobres para dizer de sua dramática miséria: "a mulher tem o tamanho da casa/ e o seu filho mal passa/ pela porta"; "o morro da paisagem desce/ e não sobe mais".
(Como, a propósito do Rio de Janeiro, Lévi-Strauss anotava nos "Tristes Trópicos", o Brasil é o único país em que as construções no alto dos morros são reservadas aos miseráveis.)

Sensualismo
Em "Bicho do Mato" (2000), Dora Ribeiro reunia sua obra até então publicada. Nela, dois traços eram destacados: as cenas de lembrança associadas a um sensualismo tão "orientalmente" discreto que pôde ser chamado de "sensualismo abstrato". Embora um e outro aqui permaneçam, ambos se tornam rarefeitos. Rarefeita a lembrança não porque seja agora mais remota, senão porque, menos presa à memória de quem a guarda, torna-se mais apta para servir de material para a metamorfose.
A transformação mostra-se com nitidez pela comparação de dois poemas. O primeiro precisa de uma estrofe para que declare o que ainda é resto da memória: "uma infância de árvores/ lembro-me disso/ os galhos acolhiam o/ meu corpo/ e as minhas pernas/ amarravam-me ao/ improvável".
Já em "Parca Serenidade 2", basta um verso para que o metamórfico se realize: "a infância é o nosso mais fiel e longo animal". É da metamorfose da memória que depende o cumprimento do desejo: "quero a majestade humana/ essa dança louca/ que junta todas as divindades/ no mesmo".
No entanto, ainda mais ressalta a rarefação agora do sensualismo abstrato -ressalta porque sua menor presença não se mede quantitativamente. Se não for meu ouvido que entortou, versos como "quero falar uma língua nova/ principiada na carta do teu/ corpo" ou "e só depois/ de tomado o corpo feminino/ falam os deuses" são gastos porque sua dicção já se tornou esperada.
O rendimento volta a ser positivo na estrofe final de "Para Onde Vai a Paisagem": "Para onde vão os nossos/ corpos separados/ pela música do teu tempo/ para onde nos leva/ a árvore fóssil/ que escondes no teu silêncio".
A música que vem do outro separa e não reúne os corpos, pois não nasce de consonâncias, mas da dureza ("a árvore fóssil") encrustada no silêncio do outro. O fóssil não se impõe por "uma infância de árvores" senão que se transforma em arqueologia de rigidez e silêncio.
Não há pois menor coerência em que o silêncio seja reinvocado em versos em que, de igual, o sensualismo abstrato mostra-se diluído: "puro caminho de silêncio/ nas mãos que conhecem o amor/ divinamente humano". Pergunto-me, por fim, a dicção que se gastou não traria o sinal de outra via que começa? Ela não se preludia na pergunta de "a que mundo pertencem/ as perguntas-abismo/ que o meu cérebro não visita"? O traço menos se apaga do que submerge para que, ao fermentar, assuma outra feição.
A questão que nos pomos antecipa o que explicita o poema "(Pergunta à Vieira)". Entendendo o "à vieira" como à maneira de Vieira, só ironicamente o poema seria coerente com o texto do pregador: "o que faz um corpo/ entre livros, teatros e jogos de/ xadrez/ lugares onde a vida/ depende da iluminação e/ do método de leitura?". Para o Vieira dos sermões, o corpo não era obstáculo para as tarefas que realizava ou aludia, até porque, embora necessário, não passava de acidente.
O corpo que os versos lhe atribuem são a metamorfose de um outro corpo: aquele que de si, em "A Teoria do Jardim", ainda se indaga.

LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.



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