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Jardins rarefeitos
Poesia de
Dora Ribeiro
cria um sensualismo quase abstrato, de onde tira sua força e seus impasses
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Nem todos concordarão em dizer-se
que Augusto de
Campos é o nosso
único grande poeta vivo. Mas poucos discordarão em declarar-se que, entre
as dezenas de poetas jovens,
poucos parecem fadados a permanecer. Entre eles, está Dora
Ribeiro.
Não se dá por acaso que sua
obra seja pequena. Ser poeta,
ou melhor, manter-se poeta,
sobretudo em um país de público ralo, de crítica quase inexistente e de frágeis departamentos de letras é muito difícil;
desde logo, ele não contará
com publicidade e terá de dispor de seus próprios meios para ser o seu próprio editor.
Como "A Teoria do Jardim"
(Companhia das Letras, 96
págs, R$ 32,50) surge em uma
editora dotada de boa distribuição, espera-se que Dora Ribeiro tenha saltado esse primeiro obstáculo.
Comece-se pela referência a
dois poemas de abertura. O primeiro principia com os versos
"girassol/ abre os braços a cada
manhã/ pensando no caminho/ e no avesso dele". O segundo é um dos poucos com título: "Paisagem Brasileira". Em
um e outro, o "jardim" encontra seus polos.
O polo-girassol declara o que
se cumpre no jardim: é ele formado menos por coisas ou seres, cheiros e cores, embora sejam nomeados, do que pelo
movimento das sensações. O
que assume o direito de pertencer ao jardim foi ou é presença, porém mais importa pela dinâmica que o impregna.
O polo-paisagem, encarnado
por um único poema, não é por
isso menos relevante: sem ele,
o jardim correria o risco de ter
uma função decorativa. A "paisagem brasileira" dá as costas
ao descritivismo testemunhal,
variante "politicamente correta" do velho realismo, e ressalta
o lugar onde o jardim se situa.
Seu posicionamento não
precisa de palavras nobres para
dizer de sua dramática miséria:
"a mulher tem o tamanho da
casa/ e o seu filho mal passa/
pela porta"; "o morro da paisagem desce/ e não sobe mais".
(Como, a propósito do Rio de
Janeiro, Lévi-Strauss anotava
nos "Tristes Trópicos", o Brasil
é o único país em que as construções no alto dos morros são
reservadas aos miseráveis.)
Sensualismo
Em "Bicho do Mato" (2000),
Dora Ribeiro reunia sua obra
até então publicada. Nela, dois
traços eram destacados: as cenas de lembrança associadas a
um sensualismo tão "orientalmente" discreto que pôde ser
chamado de "sensualismo abstrato". Embora um e outro aqui
permaneçam, ambos se tornam
rarefeitos. Rarefeita a lembrança não porque seja agora mais
remota, senão porque, menos
presa à memória de quem a
guarda, torna-se mais apta para
servir de material para a metamorfose.
A transformação mostra-se
com nitidez pela comparação
de dois poemas. O primeiro
precisa de uma estrofe para que
declare o que ainda é resto da
memória: "uma infância de árvores/ lembro-me disso/ os galhos acolhiam o/ meu corpo/ e
as minhas pernas/ amarravam-me ao/ improvável".
Já em
"Parca Serenidade 2", basta um
verso para que o metamórfico
se realize: "a infância é o nosso
mais fiel e longo animal".
É da metamorfose da memória que depende o cumprimento do desejo: "quero a majestade humana/ essa dança louca/
que junta todas as divindades/
no mesmo".
No entanto, ainda mais ressalta a rarefação agora do sensualismo abstrato -ressalta
porque sua menor presença
não se mede quantitativamente. Se não for meu ouvido que
entortou, versos como "quero
falar uma língua nova/ principiada na carta do teu/ corpo"
ou "e só depois/ de tomado o
corpo feminino/ falam os deuses" são gastos porque sua dicção já se tornou esperada.
O rendimento volta a ser positivo na estrofe final de "Para
Onde Vai a Paisagem": "Para
onde vão os nossos/ corpos separados/ pela música do teu
tempo/ para onde nos leva/ a
árvore fóssil/ que escondes no
teu silêncio".
A música que vem do outro
separa e não reúne os corpos,
pois não nasce de consonâncias, mas da dureza ("a árvore
fóssil") encrustada no silêncio
do outro. O fóssil não se impõe
por "uma infância de árvores"
senão que se transforma em arqueologia de rigidez e silêncio.
Não há pois menor coerência
em que o silêncio seja reinvocado em versos em que, de igual, o
sensualismo abstrato mostra-se diluído: "puro caminho de silêncio/ nas mãos que conhecem o amor/ divinamente humano".
Pergunto-me, por fim, a dicção que se gastou não traria o
sinal de outra via que começa?
Ela não se preludia na pergunta
de "a que mundo pertencem/
as perguntas-abismo/ que o
meu cérebro não visita"? O traço menos se apaga do que submerge para que, ao fermentar,
assuma outra feição.
A questão que nos pomos antecipa o que explicita o poema
"(Pergunta à Vieira)". Entendendo o "à vieira" como à maneira de Vieira, só ironicamente o poema seria coerente com
o texto do pregador: "o que faz
um corpo/ entre livros, teatros
e jogos de/ xadrez/ lugares onde a vida/ depende da iluminação e/ do método de leitura?".
Para o Vieira dos sermões, o
corpo não era obstáculo para as
tarefas que realizava ou aludia,
até porque, embora necessário,
não passava de acidente.
O corpo que os versos lhe atribuem
são a metamorfose de um outro
corpo: aquele que de si, em "A
Teoria do Jardim", ainda se indaga.
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente
na seção "Autores", do Mais!.
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