São Paulo, domingo, 09 de agosto de 2009

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Romance anexo

Ganhador do Prêmio Pulitzer em 2006, "O Senhor March" revisita o clássico "Mulherzinhas"


Geraldine Brooks habilmente usou a ausência do pai no livro original para construir seu romance, de modo que, em vez de tentar uma continuação, criou uma espécie de complemento


IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escrever a sequência de um romance famoso é carimbar o passaporte para o insucesso. Em 1991, Alexandra Ripley (1934-2004) publicou uma "Scarlett" que trazia o ostensivo subtítulo de "Uma Sequela a "E o Vento Levou" de Margareth Mitchell".
Margareth, já milionária com a vendagem de seu livro, se não tivesse morrido em 1949, atropelada por um táxi, nem precisaria reclamar da "carona" que Alexandra quis pegar em seu romance: a crítica se incumbiu de demolir a nova "Scarlett" e os leitores foram também quase unânimes em achá-la desprezível. Sua maior conquista foi virar minissérie de televisão.
Como seria possível emprestar sobrevida a personagens tão marcantes quanto Scarlett O'Hara e Rhett Butler, principalmente depois que [o diretor] Victor Fleming e [o produtor David] O. Selznick os imortalizaram nas figuras de Vivien Leigh e Clark Gable, no filme de 1939, três anos depois da publicação do livro, que já havia vendido um milhão de exemplares só no lançamento? O relato de Margareth Mitchell acabava na frase famosa de Scarlett: "I'll think about that tomorrow" (algo como "Amanhã eu penso nisto" ou "Amanhã é um novo dia") -e não havia nada mais a acrescentar.
Recentemente, um escritor sueco, Frederik Colting, sob o capcioso pseudônimo de J.D. California, também teve o descaro de lançar um "60 Years Later - Coming through the Rye" [60 Anos mais Tarde -Passando pelo Campo de Centeio, Windupbird Publishing], em que dá sequência às aventuras de Holden Caulfield, personagem criado por J.D. Salinger em "The Catcher in the Rye" (no Brasil, "O Apanhador no Campo de Centeio"), texto carismático da juventude mundial dos anos 50 e reverenciado até hoje.
Além disso, esse livro teve um "revival" (trágico) ao ser encontrado no bolso de Mark Chapman, assassino de John Lennon, naquele fatídico 8 de dezembro de 1980. Apesar de seu isolamento voluntário, Salinger protestou na hora e com toda a razão, alegando plágio e usurpação de direitos autorais. A Justiça dos Estados Unidos proibiu a publicação do livro por lá, embora ele já esteja circulando na Inglaterra. As críticas iniciais (raríssimas) indicam mais uma tentativa frustrada de continuação.

A família March
Provavelmente levando em conta esses fracassos foi que Geraldine Brooks tomou um rumo inusitado ao escrever "O Senhor March" (ótima tradução de Marcos Malvezzi Leal), ora lançado pela Ediouro. Seria um suicídio literário tentar a continuação do romance "Little Women" (entre nós, "Mulherzinhas"), de Louisa May Alcott (1832-1888), um clássico da literatura norte-americana que se passa no terceiro quartel do século 19.
A história de Marmee March e suas quatro filhas, Meg, Jo, Beth e Amy, tem o sabor das narrativas róseas de Jane Austen [1775-1817, autora de "Orgulho e Preconceito"], e também aí as meninas são casadoiras, caridosas, humanitárias e de boa formação. O livro começa num dia de Natal, quando o pai, Robson March, uma espécie de pregador e capelão leigo, está ausente, por ter acompanhado voluntariamente os "ianques" que marchavam para os confrontos iniciais das guerras separatistas [nos EUA, entre 1861 e 1865].
Dois terços decorridos da história, num momento dramático da narrativa, Marmee (a matriarca da família) recebe a notícia de que o marido está gravemente ferido num hospital de Washington, sendo sua presença ali requerida. A narrativa passa a concentrar-se no desenvolvimento dos casos amorosos e sociais das filhas, e o pai só reaparece no fim do livro.
Já Geraldine Brooks habilmente usou esse hiato (a ausência do pai, Robson) para construir seu romance, de modo que, em vez de tentar uma continuação de "Mulherzinhas", preferiu criar um romance "ad latere", uma espécie de anexo, de complemento, de geminação. "Mulherzinhas" encantou os leitores pela fluência, pela adequação e pela naturalidade da narrativa, sabendo-se hoje que boa parte dela é biográfica, com Louisa May Alcott se autorretratando na figura de Jo, a futura escritora da família.
Publicado em 1868, foi adaptado para o teatro em 1912 e conheceu em seguida mais de uma dezena de versões cinematográficas, sendo as mais famosas a de 1933 ("Quatro Irmãs", de George Cukor, com Katharine Hepburn no papel de Jo), a de 1949 ("Quatro Destinos", de Mervyn LeRoy, com Elizabeth Taylor, June Allyson, Janet Leight e Margaret O'Brien) e a mais recente, de 1994 ["Adoráveis Mulheres", de Gillian Armstrong], com Susan Sarandon e Winona Ryder -embora haja registro de outra, ainda mais nova, de 2001 [dirigida para a TV norte-americana por Brian Large].
Além disso, inspirou duas óperas e vários musicais, sem falar nas adaptações para livros infantis e para histórias em quadrinhos.

Volta sem volta
Fugindo desse fantasma ameaçador pela grandiosidade e pela abrangência, Geraldine Brooks arrasta seu herói solitário pela retaguarda dos campos de batalha, onde se misturam soldados regulares, rebeldes, desertores, escravos foragidos, aventureiros, prostitutas, o cortejo habitual dessas escaramuças patrióticas.
Robson circunvaga em meio a essa gente em sua tentativa delirante de socorrer os feridos, dar-lhes algum conforto espiritual e alfabetizar as crianças negras, escravas ou libertas. Ele é também uma espécie de filósofo, tendo em sua casa, em Concord, convivido com [o filósofo] Henry Thoreau e [o escritor] Ralph Waldo Emerson. Sua fé no abolicionista John Brown arruinou-lhe o patrimônio quando este último passou das pregações à luta armada, invadindo o forte Harpers Ferry, onde acabou sendo executado.
Quando ainda em casa, Robson já fazia parte da "underground railway", uma organização em cadeia para levar escravos foragidos à liberdade no Canadá. Aqui ele passa por alguns lances verdadeiramente épicos, descritos com vigor e acuidade por Geraldine Brooks, que não faz dele um herói convencional, mas salienta seu lado humano, fraco, promíscuo e de certa forma covarde, embora viva em permanente conflito com ele mesmo. Com base nas cartas e diários do verdadeiro sr. Alcott, a autora consegue criar grandes momentos ficcionais deste livro, cujos matizes em claro-escuro contrastam visivelmente com as afabilidades cromáticas de "Mulherzinhas".
Numa segunda parte, quem entra em cena é Marmee, relatando sua ida a Washington e o encontro com Robson, gravemente ferido, no hospital. Às vezes o tom é de anticlímax, mas toda a narrativa serve para configurar os conflitos psíquicos do marido, que finalmente regressa ao lar, mas sempre atormentado, nessa volta sem volta.

IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor. É autor de "A Caça Virtual" (ed. Record).


O SENHOR MARCH

Autora: Geraldine Brooks
Tradução: Marcos Malvezzi Leal
Editora: Ediouro (tel. 0/xx/21/3882-8200)
Quanto: R$ 41,90 (304 págs.)




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