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Romance anexo
Ganhador do Prêmio
Pulitzer em 2006, "O Senhor March" revisita o clássico "Mulherzinhas"
Geraldine Brooks habilmente usou a ausência do pai no livro original para construir seu romance, de modo que, em vez de tentar uma continuação, criou uma espécie de complemento
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IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Escrever a sequência de
um romance famoso é
carimbar o passaporte
para o insucesso. Em
1991, Alexandra Ripley (1934-2004) publicou
uma "Scarlett" que trazia o ostensivo subtítulo de "Uma Sequela a "E o Vento Levou" de
Margareth Mitchell".
Margareth, já milionária
com a vendagem de seu livro,
se não tivesse morrido em
1949, atropelada por um táxi,
nem precisaria reclamar da
"carona" que Alexandra quis
pegar em seu romance: a crítica
se incumbiu de demolir a nova
"Scarlett" e os leitores foram
também quase unânimes em
achá-la desprezível. Sua maior
conquista foi virar minissérie
de televisão.
Como seria possível emprestar sobrevida a personagens
tão marcantes quanto Scarlett
O'Hara e Rhett Butler, principalmente depois que [o diretor] Victor Fleming e [o produtor David] O. Selznick os imortalizaram nas figuras de Vivien
Leigh e Clark Gable, no filme
de 1939, três anos depois da publicação do livro, que já havia
vendido um milhão de exemplares só no lançamento?
O relato de Margareth Mitchell acabava na frase famosa
de Scarlett: "I'll think about
that tomorrow" (algo como
"Amanhã eu penso nisto" ou
"Amanhã é um novo dia") -e
não havia nada mais a acrescentar.
Recentemente, um escritor
sueco, Frederik Colting, sob o
capcioso pseudônimo de J.D.
California, também teve o descaro de lançar um "60 Years
Later - Coming through the
Rye" [60 Anos mais Tarde
-Passando pelo Campo de Centeio, Windupbird Publishing],
em que dá sequência às aventuras de Holden Caulfield, personagem criado por J.D. Salinger
em "The Catcher in the Rye"
(no Brasil, "O Apanhador no
Campo de Centeio"), texto carismático da juventude mundial dos anos 50 e reverenciado
até hoje.
Além disso, esse livro teve
um "revival" (trágico) ao ser
encontrado no bolso de Mark
Chapman, assassino de John
Lennon, naquele fatídico 8 de
dezembro de 1980.
Apesar de seu isolamento voluntário, Salinger protestou na
hora e com toda a razão, alegando plágio e usurpação de direitos autorais. A Justiça dos
Estados Unidos proibiu a publicação do livro por lá, embora
ele já esteja circulando na Inglaterra. As críticas iniciais (raríssimas) indicam mais uma
tentativa frustrada de continuação.
A família March
Provavelmente levando em
conta esses fracassos foi que
Geraldine Brooks tomou um
rumo inusitado ao escrever "O
Senhor March" (ótima tradução de Marcos Malvezzi Leal),
ora lançado pela Ediouro.
Seria um suicídio literário
tentar a continuação do romance "Little Women" (entre
nós, "Mulherzinhas"), de Louisa May Alcott (1832-1888), um
clássico da literatura norte-americana que se passa no terceiro quartel do século 19.
A história de Marmee March
e suas quatro filhas, Meg, Jo,
Beth e Amy, tem o sabor das
narrativas róseas de Jane Austen [1775-1817, autora de "Orgulho e Preconceito"], e também aí as meninas são casadoiras, caridosas, humanitárias e
de boa formação.
O livro começa num dia de
Natal, quando o pai, Robson
March, uma espécie de pregador e capelão leigo, está ausente, por ter acompanhado voluntariamente os "ianques" que
marchavam para os confrontos
iniciais das guerras separatistas [nos EUA, entre 1861 e
1865].
Dois terços decorridos da
história, num momento dramático da narrativa, Marmee (a
matriarca da família) recebe a
notícia de que o marido está
gravemente ferido num hospital de Washington, sendo sua
presença ali requerida.
A narrativa passa a concentrar-se no desenvolvimento
dos casos amorosos e sociais
das filhas, e o pai só reaparece
no fim do livro.
Já Geraldine Brooks habilmente usou esse hiato (a ausência do pai, Robson) para
construir seu romance, de modo que, em vez de tentar uma
continuação de "Mulherzinhas", preferiu criar um romance "ad latere", uma espécie
de anexo, de complemento, de
geminação.
"Mulherzinhas" encantou os
leitores pela fluência, pela adequação e pela naturalidade da
narrativa, sabendo-se hoje que
boa parte dela é biográfica, com
Louisa May Alcott se autorretratando na figura de Jo, a futura escritora da família.
Publicado em 1868, foi adaptado para o teatro em 1912 e conheceu em seguida mais de
uma dezena de versões cinematográficas, sendo as mais famosas a de 1933 ("Quatro Irmãs",
de George Cukor, com Katharine Hepburn no papel de Jo), a
de 1949 ("Quatro Destinos", de
Mervyn LeRoy, com Elizabeth
Taylor, June Allyson, Janet
Leight e Margaret O'Brien) e a
mais recente, de 1994 ["Adoráveis Mulheres", de Gillian
Armstrong], com Susan Sarandon e Winona Ryder -embora
haja registro de outra, ainda
mais nova, de 2001 [dirigida para a TV norte-americana por
Brian Large].
Além disso, inspirou duas
óperas e vários musicais, sem
falar nas adaptações para livros
infantis e para histórias em
quadrinhos.
Volta sem volta
Fugindo desse fantasma
ameaçador pela grandiosidade
e pela abrangência, Geraldine
Brooks arrasta seu herói solitário pela retaguarda dos campos
de batalha, onde se misturam
soldados regulares, rebeldes,
desertores, escravos foragidos,
aventureiros, prostitutas, o
cortejo habitual dessas escaramuças patrióticas.
Robson circunvaga em meio
a essa gente em sua tentativa
delirante de socorrer os feridos, dar-lhes algum conforto
espiritual e alfabetizar as crianças negras, escravas ou libertas.
Ele é também uma espécie de
filósofo, tendo em sua casa, em
Concord, convivido com [o filósofo] Henry Thoreau e [o escritor] Ralph Waldo Emerson.
Sua fé no abolicionista John
Brown arruinou-lhe o patrimônio quando este último passou
das pregações à luta armada,
invadindo o forte Harpers
Ferry, onde acabou sendo executado.
Quando ainda em casa, Robson já fazia parte da "underground railway", uma organização em cadeia para levar
escravos foragidos à liberdade
no Canadá. Aqui ele passa por
alguns lances verdadeiramente
épicos, descritos com vigor
e acuidade por Geraldine
Brooks, que não faz dele um herói convencional, mas salienta
seu lado humano, fraco, promíscuo e de certa forma covarde, embora viva em permanente conflito com ele mesmo.
Com base nas cartas e diários
do verdadeiro sr. Alcott, a autora consegue criar grandes momentos ficcionais deste livro,
cujos matizes em claro-escuro
contrastam visivelmente com
as afabilidades cromáticas de
"Mulherzinhas".
Numa segunda parte, quem
entra em cena é Marmee, relatando sua ida a Washington e
o encontro com Robson, gravemente ferido, no hospital. Às
vezes o tom é de anticlímax,
mas toda a narrativa serve
para configurar os conflitos
psíquicos do marido, que finalmente regressa ao lar, mas
sempre atormentado, nessa
volta sem volta.
IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor. É autor de "A Caça Virtual" (ed. Record).
O SENHOR MARCH
Autora: Geraldine Brooks
Tradução: Marcos Malvezzi Leal
Editora: Ediouro (tel. 0/xx/21/3882-8200)
Quanto: R$ 41,90 (304 págs.)
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