São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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Língua solta

Polonês que escrevia em inglês, Joseph Conrad percebeu na linguagem a fraqueza das palavras da realidade que exprimem

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

O ano de 2007 é um bom momento para lembrar o romancista Joseph Conrad. Ele nasceu há 150 anos, em 3/12/1857, e foi batizado Józef Teodor Nalecz Korzenióvski.
Um de seus melhores romances, "O Agente Secreto" [ed. Revan], foi publicado pela primeira vez há cem anos -mas poderia ter sido escrito ontem, pela atualidade de seu relato de um complô para explodir o observatório de Greenwich e pela descrição de um terrorista que caminha pelas ruas de Londres com uma bomba atada ao peito.
Mas há um motivo muito diferente para lembrar Conrad em nossa era de globalização, quando os romancistas às vezes escrevem em uma segunda língua, em vez da nativa. Hoje, por exemplo, o tcheco Milan Kundera e o espanhol Jorge Semprún escrevem em francês. O exilado russo Vladimir Nabokov escrevia em inglês -assim como o polonês Conrad.

Dança das letras
Quando Gilberto Freyre [1900-87] era estudante nos EUA, um de seus professores lhe aconselhou que escrever em inglês ajudaria sua carreira literária, porque ele poderia se tornar um "novo Conrad". Freyre rejeitou o conselho, dizendo que não sabia "dançar" em inglês, enquanto podia fazê-lo em português.
Conrad também não sabia dançar em inglês, apesar de certa vez ter afirmado que fora "adotado pelo gênio da língua".
Ele só aprendeu inglês aos 20 anos, muito depois do francês e do polonês, e no final da vida falava com forte sotaque estrangeiro. Até hoje um falante nativo pode "escutar" esse sotaque quando lê seus romances. Estudiosos muitas vezes notaram os problemas de Conrad com a ordem das palavras em inglês.
O próprio autor se queixou da falta de domínio de sua nova língua, declarando que às vezes levava um dia inteiro para encontrar a palavra certa para expressar o que queria dizer. Em suma, é fácil ver no caso dele o que "se perdeu na tradução".
Uma questão difícil, mas ao mesmo tempo mais interessante, é se ele ganhou algo em troca ou, de modo mais geral, se escrever em uma segunda ou terceira línguas pode na verdade ser um benefício assim como uma desvantagem.

Contribuições
Diversas frases nos romances de Conrad que soam diferentes ou estranhas para o leitor de língua inglesa vêm a ser traduções literais de expressões francesas ou polonesas.
Pelo menos algumas dessas frases emprestadas enriqueceram a língua inglesa com novas expressões.
A busca de Conrad por um equivalente inglês do que os lingüistas chamam de "aspecto" dos verbos poloneses (que exprime a perspectiva do narrador sobre uma ação) ou por equivalentes das construções reflexivas polonesas o levou a fazer inovações lingüísticas, aumentando, assim, o repertório da gramática inglesa.
Conrad também recorreu habilmente a diversas línguas para produzir o efeito de cor local, para fazer os leitores sentirem que haviam sido transportados para a África central, a Malásia ou a América do Sul.
Em "Nostromo" [Cia. das Letras], por exemplo, ambientado no imaginário país sul-americano de Costaguana, aparecem no texto cerca de cem palavras espanholas, além de frases inteiras tiradas do francês ou do italiano (a língua materna do próprio Nostromo assim como da família Viola).
No entanto, na minha opinião, a verdadeira importância do "estrangeirismo" de Conrad para suas novelas é outra. Um tema importante nessas novelas é a relação -ou, mais exatamente, a falta de relação- entre a língua e o que ela descreve ("realidade", "experiência" ou "vida").
Perto do fim de "O Agente Secreto", por exemplo, a conversa entre o camarada Ossipon e Winnie Verloc produz uma série de mal-entendidos. Como disse alguém sobre os ingleses e os americanos, Ossipon e Winnie são "divididos por uma língua comum".
Do mesmo modo, os discursos de revolucionários como Michaelis e Yundt, no capítulo três de "Agente Secreto", são apresentados pelo narrador como palavras ocas. Yundt também é descrito como um grande ator -"ator em plataformas, em assembléias secretas, em entrevistas privadas"- que "nunca em sua vida levantara pessoalmente nem sequer o dedo mínimo contra o edifício social".
De modo semelhante, em "Nostromo", a eloqüência de políticos como dom José Avellanos é gradualmente revelada como mero teatro (uma "ópera bouffe", segundo um observador francês).
Em outras palavras, uma fachada atrás da qual se dão os verdadeiros eventos políticos, que por sua vez revelam que "plus ça change, plus c'est la même chose" [quanto mais muda, mais é a mesma coisa]. Para complicar, como Conrad adora fazer, o próprio cinismo do observador é minado pelo narrador, sem que se ofereça uma alternativa clara.

Distanciamento
Em pequenos incidentes sucessivos, um personagem após o outro se preocupa com a má compreensão de uma mensagem ou considera uma discussão "conversa fiada" ou faz um discurso "em que a boca do orador ficava abrindo e fechando", mas o público só consegue ouvir algumas frases isoladas, como "a felicidade do povo".
Não é preciso escrever em língua estrangeira para ter consciência das discrepâncias entre o mundo e as palavras que empregamos para descrevê-lo. Do mesmo modo, parece plausível dizer que os poliglotas provavelmente são mais agudamente conscientes do problema do que os monoglotas.
Os estrangeiros se sentem e de fato estão mais distantes do que os nativos da língua e da cultura que os cerca. Às vezes essa distância é uma fraqueza.
Por outro lado, quando ela assume a forma de distanciamento deliberado, o que os russos chamam de "ostranenie", essa situação pode ser transformada em força.
Certamente tornou-se uma força no caso de Conrad.
Ele tinha plena consciência das limitações da língua, limitações essas que discute com sua própria voz em cartas, assim como por meio de diversos personagens de seus romances.
Certa vez ele escreveu para seu amigo Cunninghame Graham que "metade das palavras que usamos não tem nenhum significado, e da outra metade cada homem entende cada palavra segundo os moldes de seu próprio capricho e imaginação".
Uma das grandes conquistas de Conrad foi usar as palavras de modo a revelar as fraquezas que elas próprias encerram.
Ainda mais notável, aprendeu a fazê-lo numa língua que não era a sua. Ele morreu em 1924.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! . Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves .


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