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Autores
Língua solta
Polonês que escrevia
em inglês, Joseph Conrad percebeu na
linguagem
a fraqueza
das palavras
da realidade
que exprimem
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
O ano de 2007 é um
bom momento para lembrar o romancista Joseph
Conrad. Ele nasceu há 150 anos, em 3/12/1857,
e foi batizado Józef Teodor Nalecz Korzenióvski.
Um de seus melhores romances, "O Agente Secreto"
[ed. Revan], foi publicado pela
primeira vez há cem anos
-mas poderia ter sido escrito
ontem, pela atualidade de seu
relato de um complô para explodir o observatório de
Greenwich e pela descrição de
um terrorista que caminha pelas ruas de Londres com uma
bomba atada ao peito.
Mas há um motivo muito diferente para lembrar Conrad
em nossa era de globalização,
quando os romancistas às vezes escrevem em uma segunda
língua, em vez da nativa. Hoje,
por exemplo, o tcheco Milan
Kundera e o espanhol Jorge
Semprún escrevem em francês.
O exilado russo Vladimir Nabokov escrevia em inglês -assim como o polonês Conrad.
Dança das letras
Quando Gilberto Freyre
[1900-87] era estudante nos
EUA, um de seus professores
lhe aconselhou que escrever
em inglês ajudaria sua carreira
literária, porque ele poderia se
tornar um "novo Conrad".
Freyre rejeitou o conselho, dizendo que não sabia "dançar"
em inglês, enquanto podia fazê-lo em português.
Conrad também não sabia
dançar em inglês, apesar de
certa vez ter afirmado que fora
"adotado pelo gênio da língua".
Ele só aprendeu inglês aos 20
anos, muito depois do francês e
do polonês, e no final da vida falava com forte sotaque estrangeiro. Até hoje um falante nativo pode "escutar" esse sotaque
quando lê seus romances. Estudiosos muitas vezes notaram os
problemas de Conrad com a ordem das palavras em inglês.
O próprio autor se queixou
da falta de domínio de sua nova
língua, declarando que às vezes
levava um dia inteiro para encontrar a palavra certa para expressar o que queria dizer. Em
suma, é fácil ver no caso dele o
que "se perdeu na tradução".
Uma questão difícil, mas ao
mesmo tempo mais interessante, é se ele ganhou algo em troca
ou, de modo mais geral, se escrever em uma segunda ou terceira línguas pode na verdade
ser um benefício assim como
uma desvantagem.
Contribuições
Diversas frases nos romances de Conrad que soam diferentes ou estranhas para o leitor de língua inglesa vêm a ser traduções literais de expressões francesas ou polonesas.
Pelo menos algumas dessas
frases emprestadas enriqueceram a língua inglesa com novas
expressões.
A busca de Conrad por um
equivalente inglês do que os
lingüistas chamam de "aspecto" dos verbos poloneses (que
exprime a perspectiva do narrador sobre uma ação) ou por
equivalentes das construções
reflexivas polonesas o levou a
fazer inovações lingüísticas,
aumentando, assim, o repertório da gramática inglesa.
Conrad também recorreu
habilmente a diversas línguas
para produzir o efeito de cor local, para fazer os leitores sentirem que haviam sido transportados para a África central, a
Malásia ou a América do Sul.
Em "Nostromo" [Cia. das Letras], por exemplo, ambientado
no imaginário país sul-americano de Costaguana, aparecem
no texto cerca de cem palavras
espanholas, além de frases inteiras tiradas do francês ou do
italiano (a língua materna do
próprio Nostromo assim como
da família Viola).
No entanto, na minha opinião, a verdadeira importância
do "estrangeirismo" de Conrad
para suas novelas é outra.
Um tema importante nessas
novelas é a relação -ou, mais
exatamente, a falta de relação-
entre a língua e o que ela descreve ("realidade", "experiência" ou "vida").
Perto do fim de "O Agente
Secreto", por exemplo, a conversa entre o camarada Ossipon e Winnie Verloc produz
uma série de mal-entendidos.
Como disse alguém sobre os ingleses e os americanos, Ossipon
e Winnie são "divididos por
uma língua comum".
Do mesmo modo, os discursos de revolucionários como
Michaelis e Yundt, no capítulo
três de "Agente Secreto", são
apresentados pelo narrador como palavras ocas.
Yundt também é descrito como um grande ator -"ator em
plataformas, em assembléias
secretas, em entrevistas privadas"- que "nunca em sua vida
levantara pessoalmente nem
sequer o dedo mínimo contra o
edifício social".
De modo semelhante, em
"Nostromo", a eloqüência de
políticos como dom José Avellanos é gradualmente revelada
como mero teatro (uma "ópera
bouffe", segundo um observador francês).
Em outras palavras, uma fachada atrás da qual se dão os
verdadeiros eventos políticos,
que por sua vez revelam que
"plus ça change, plus c'est la
même chose" [quanto mais
muda, mais é a mesma coisa].
Para complicar, como Conrad adora fazer, o próprio cinismo do observador é minado
pelo narrador, sem que se ofereça uma alternativa clara.
Distanciamento
Em pequenos incidentes sucessivos, um personagem após
o outro se preocupa com a má
compreensão de uma mensagem ou considera uma discussão "conversa fiada" ou faz um
discurso "em que a boca do orador ficava abrindo e fechando",
mas o público só consegue ouvir algumas frases isoladas, como "a felicidade do povo".
Não é preciso escrever em
língua estrangeira para ter
consciência das discrepâncias
entre o mundo e as palavras
que empregamos para descrevê-lo. Do mesmo modo, parece
plausível dizer que os poliglotas
provavelmente são mais agudamente conscientes do problema do que os monoglotas.
Os estrangeiros se sentem e
de fato estão mais distantes do
que os nativos da língua e da
cultura que os cerca. Às vezes
essa distância é uma fraqueza.
Por outro lado, quando ela assume a forma de distanciamento deliberado, o que os russos
chamam de "ostranenie", essa
situação pode ser transformada
em força.
Certamente tornou-se uma
força no caso de Conrad.
Ele tinha plena consciência
das limitações da língua, limitações essas que discute com sua
própria voz em cartas, assim
como por meio de diversos personagens de seus romances.
Certa vez ele escreveu para seu
amigo Cunninghame Graham
que "metade das palavras que
usamos não tem nenhum significado, e da outra metade cada
homem entende cada palavra
segundo os moldes de seu próprio capricho e imaginação".
Uma das grandes conquistas
de Conrad foi usar as palavras
de modo a revelar as fraquezas
que elas próprias encerram.
Ainda mais notável, aprendeu a
fazê-lo numa língua que não
era a sua. Ele morreu em 1924.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves .
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