São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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LIVROS

Um comuna nos EUA

Em "Minha Descoberta da América", o poeta russo Maiakóvski faz uma crônica cultural da viagem que realizou à América Central e do Norte em 1925

PAULO BEZERRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1925, Maiakóvski empreende uma viagem aos EUA, passando por seis países, mas detendo seu registro em Cuba, México e nos próprios EUA, o que resultará em "Minha Descoberta da América", que a editora Martins Fontes traz ao público brasileiro em tradução direta do russo.
No início do livro o poeta define sua missão: registrar "coisas em si mesmas interessantes" em vez de "interesses fictícios por coisas, imagens e metáforas enfadonhas", isto é, sair do campo das abstrações poéticas para o campo da observação prática e imediata da vida.
Disso resulta uma prosa quase fotográfica, que mescla o ritmo da própria poesia maiakovskiana com o realismo cru do registro. Com essa poética do flash, ele descreve o navio povoado por uma mescla dos tipos humanos mais diversos, párias de toda espécie.
Russos vagando pelo mundo à procura de emprego, turcos que só falam inglês, representantes de empresas francesas com passaportes paraguaios e argentinos, esses "colonizadores contemporâneos" que dividem o navio em classes, com a primeira vomitando na segunda, a segunda na terceira e esta em si mesma: cruza tudo isso com a história da exploração dos índios e negros norte-americanos por toda espécie de aventureiros.
Em Havana, o olho clínico do "poeta da revolução" capta no ar os contrastes e desigualdades como símbolo do domínio dos EUA sobre as "três Américas", a presença de engraxates, vendedores de bilhetes de loteria, índios descalços, em suma, extratos sociais característicos de país atrasado, mas, por trás disso, a bandeira vermelha com a foice e o martelo, ecos da Revolução Russa.

Técnica e dólar
No México, sua crônica mostra que tudo é instável: a moeda é tão desacreditada que todos carregam dinheiro em sacos.
Em 30 anos, 37 presidentes, e destes, 30 generais, em cada nova posse o Colt fala antes do empossado. Domina o primitivismo no uso do revólver: atira-se em toda parte, no trânsito, nos salões, nas tavernas, mata-se gente como se matam moscas, usa-se o Colt até como saca-rolhas.
As touradas chocam o poeta com a violência nefasta contra os animais e o gosto primitivo do público, e ele lamenta não poder pôr metralhadoras nos chifres do touro e ensiná-lo a atirar contra aquela multidão, que mereceria estar no lugar do touro. Mas o México não é só violência, politicagem e corrupção: também tem arte, tem Diego Rivera, que o põe em contato com a riquíssima cultura do país, com seus museus e história, compensando a má impressão inicial.
O relato da passagem pelos EUA é uma crônica político-cultural à altura da pena de um grande prosador. Maiakóvski vê, com um misto de fascínio, temor e ironia, o febril e caótico progresso americano.
A indústria da aviação começa a decolar, o fordismo está em plena efervescência com sua filosofia social de aliciamento da classe trabalhadora.
Dois novos deuses são alvos de culto amplo e irrestrito e se impõem como padrão de um novo tipo de civilização: o deus-técnica e o deus-dólar. Há um uso exagerado da eletricidade, Nova York é um oceano de luzes e brilho, a energia alimenta a imensa roda da indústria, das ferrovias, o metrô é o centro nevrálgico de um vaivém alucinante, o frenesi da construção civil põe tudo abaixo: prédios de dez andares dão lugar a outros de 20, estes a outros de 30, estes a outros de 40, tudo parece provisório.
Em meio a isso, três tipos de psicose coletiva: do automóvel, do dólar e do beisebol. Há mais carros que gente.

Guetos e exaustão
Mas, em meio a todo esse progresso, o olho clínico registra os contrastes socioculturais: os guetos de negros, russos, judeus e outros emigrantes, a luta de classes, o racismo, os crimes impunes da Ku Klux Klan, acidentes de trabalho e mortes de operários por exaustão que a imprensa não registra, a corrupção da imprensa e da Justiça etc.
O poeta esboça um quadro social e psicológico de Chicago. A cidade é o segundo centro do dinheiro e do poder, é a sede de grandes trustes da indústria alimentícia como Armor, Swift, Wilson, que precisa de carne, o que faz dela um imenso matadouro. Morando ali, o indivíduo vira vegetariano ou sai matando gente com a mesma tranqüilidade com que se mata gado. E Maiakóvski associa a esse clima de matadouro o alto índice de criminalidade que Chicago ostenta.
O clima cultural também envolve o poeta. A Broadway o fascina, mas isso não o impede de ver as artes como mero adorno, desprovido de critério ou função estética, e registrar a breguice do novo-rico, uma estética do mau gosto e do grosseiro e um moralismo meio idiota.
Ao término da leitura, ficamos impressionados com a extraordinária crônica daquilo que seriam os Estados Unidos de hoje. E tudo registrado com o pulsar vibrante da escrita de Maiakóvski.


PAULO BEZERRA é professor aposentado da Universidade Federal Fluminense.

MINHA DESCOBERTA DA AMÉRICA
Autor: Vladímir Maiakóvski
Tradução: Graziela Schneider
Editora: Martins Fontes (tel. 0/xx/ 11/ 3116-0000)
Quanto: R$ 27 (120 págs.)


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