São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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LIVROS

O herói civilizador

Dois estudos analisam de forma original as cartas e a ação formadora do escritor modernista Mário de Andrade

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Livros a respeito de Mário de Andrade nunca são demais, e agora o leitor é agraciado com duas teses de doutoramento, ambas operando sobre recortes originais e pouco versados. Eles nos mostram dimensões diversas desse herói civilizador.
O primeiro, "Lundu do Escritor Difícil", apropria-se de um poema do próprio escritor, que este burilou para responder àqueles que o acusavam de ser pouco legível.
A peça completa, transcrita no livro, faz rir pelos recursos que usa, com metáforas inusitadas e aproximações inesperadas ("de tão fácil virou fóssil").
Para maior provocação, mobiliza termos desconhecidos, em geral coloquiais ou regionais, sem por isso deixar de constituir uma plataforma estética.
O livro, como explicita seu subtítulo, trata do célebre Congresso da Língua Nacional Cantada, realizado em meados de 1937 por iniciativa de Mário quando ocupava o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo.
O tema do congresso pode parecer esquisito e até excêntrico. Mas havia muito tempo era preocupação central de Mário, que aliás costumava brandir aos puristas sua hipotética "Gramatiquinha da Fala Brasileira". E ainda hoje, quando ouvimos gravações daquela época, estranhamos a dicção dos cantores, que a nossos ouvidos soa estrangeira.

Dicção importada
Por influência dos professores com que estudavam, vindos de fora, os artistas proferiam vogais e consoantes como se fossem francesas ou italianas.
Por exemplo, nosso "r" brando era de prolação quase impossível, bem como o "e" mudo de final de palavra. E as nasais, sobretudo o "ão" tão freqüente em nossa língua, eram desfiguradas. Tudo isso e muito mais o congresso se propôs discutir para encontrar soluções: as metas eram práticas.
Durante uma semana inteira, apresentaram-se comunicações preparadas por musicólogos, maestros e cantores, das quais o livro fornece cuidadosos resumos.
Não se pense que o livro se restrinja ao congresso. A grande discussão do tempo, e não só no Brasil, levantada pelo romantismo e ainda candente, era a incorporação de motivos folclóricos, populares, que expressassem nas composições a alma de um determinado povo.
A linguagem cosmopolita da música erudita, no fundo eurocêntrica, via-se posta em xeque. Assim proposta, a busca do nacional deixaria marcas indeléveis na evolução de nossa música erudita.
O segundo livro -"Orgulho de Jamais Aconselhar"- focaliza a epistolografia de Mário, desentranhando dela um projeto didático. Vai desde a análise meticulosa dos diferentes papéis de carta utilizados até o exame dos volumes de correspondência alheia encontrados na biblioteca do escritor.
Mas isso é o de menos. O que ganhamos, e que vai se desdobrando aos olhos do leitor, são as diferentes figuras que o missivista assume, sempre a serviço do interlocutor. Este pode aguardar uma discussão de alto nível e um confronto como se fosse entre iguais.
Como se pode imaginar, Mário recebia milhares de petições de parecer sobre trabalhos que lhe eram enviados por músicos, pintores, poetas e outros artistas. A todos respondia com dedicação, procurando uma troca elevada e que pudesse ser útil ao destinatário.
Como ninguém ignora, essa produção epistolar não encontra paralelo no Brasil, e certamente é o mais importante conjunto em toda a nossa história. São literalmente milhares de cartas, quase todas já publicadas. O levantamento feito pelo autor mostra 29 volumes editados, fazendo cogitar se Mário vai ultrapassar Proust, um dos mais prolíficos missivistas de que se tem notícia, que conta com 21.
Um traço a ser lembrado é que Mário, além de responder a qualquer desconhecido, por mais humilde que fosse, também se carteava com a nata da intelectualidade brasileira. Boa parte da trajetória do modernismo tem sido reconstituída graças a essa fonte.
Os principais nomes desfilam: afora Manuel Bandeira, já citado, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Prudente de Morais Neto, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Augusto Meyer, Portinari, Rubens Borba de Morais, Camargo Guarnieri, Ascenso Ferreira, Lasar Segall, Paulo Prado, Graça Aranha, Menotti del Picchia.
E ainda muitos outros, da sua e de outras gerações, como Câmara Cascudo, Tristão de Athaíde, Fernando Sabino, Oneyda Alvarenga, Guilherme de Figueiredo, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Henriqueta Lisboa, Alphonsus de Guimaraens Filho, Murilo Miranda.
Para focalizar a epistolografia de Mário, ninguém mais indicado do que o autor, a quem devemos a monumental edição da correspondência ativa e passiva entre Mário e Manuel Bandeira. Trabalhando há muitos anos nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, que tem a guarda do acervo de Mário, o autor tem se especializado na correspondência do grande modernista.
O presente livro analisa toda a ativa e só podemos fazer votos de que um dia se devote à passiva, numerosíssima, cuja catalogação, há pouco concluída sob o comando da curadora Telê Porto Ancona Lopez, acusa cerca de 8.000 itens.
Nunca é demais lembrar que esse é o estudo pioneiro sobre a correspondência ativa completa de Mário de Andrade.


WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora titular de teoria literária na USP e autora de "Guimarães Rosa" (Publifolha).

LUNDU DO ESCRITOR DIFÍCIL - CANTO NACIONAL E FALA BRASILEIRA NA OBRA DE MÁRIO DE ANDRADE
Autor: Maria Elisa Pereira
Editora: Unesp (tel. 0/xx/11/ 3242-7171)
Quanto: R$ 38 (232 págs.)

ORGULHO DE JAMAIS ACONSELHAR - A EPISTOLOGRAFIA DE MÁRIO DE ANDRADE
Autor: Marcos Antonio de Moraes
Editora: Edusp
(tel. 0/xx/11/ 3091-4006)
Quanto: R$ 41 (248 págs.)


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