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LIVROS
O herói civilizador
Dois estudos analisam
de forma original as cartas
e a ação formadora
do escritor modernista Mário de Andrade
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Livros a respeito de Mário de Andrade nunca
são demais, e agora o
leitor é agraciado com
duas teses de doutoramento, ambas operando sobre
recortes originais e pouco versados. Eles nos mostram dimensões diversas desse herói
civilizador.
O primeiro, "Lundu do Escritor Difícil", apropria-se de
um poema do próprio escritor,
que este burilou para responder àqueles que o acusavam de
ser pouco legível.
A peça completa, transcrita
no livro, faz rir pelos recursos
que usa, com metáforas inusitadas e aproximações inesperadas ("de tão fácil virou fóssil").
Para maior provocação, mobiliza termos desconhecidos, em
geral coloquiais ou regionais,
sem por isso deixar de constituir uma plataforma estética.
O livro, como explicita seu
subtítulo, trata do célebre Congresso da Língua Nacional
Cantada, realizado em meados
de 1937 por iniciativa de Mário
quando ocupava o Departamento de Cultura da cidade de
São Paulo.
O tema do congresso pode
parecer esquisito e até excêntrico. Mas havia muito tempo
era preocupação central de
Mário, que aliás costumava
brandir aos puristas sua hipotética "Gramatiquinha da Fala
Brasileira". E ainda hoje, quando ouvimos gravações daquela
época, estranhamos a dicção
dos cantores, que a nossos ouvidos soa estrangeira.
Dicção importada
Por influência dos professores com que estudavam, vindos
de fora, os artistas proferiam
vogais e consoantes como se
fossem francesas ou italianas.
Por exemplo, nosso "r" brando era de prolação quase impossível, bem como o "e" mudo
de final de palavra. E as nasais,
sobretudo o "ão" tão freqüente
em nossa língua, eram desfiguradas. Tudo isso e muito mais o
congresso se propôs discutir
para encontrar soluções: as
metas eram práticas.
Durante uma semana inteira,
apresentaram-se comunicações preparadas por musicólogos, maestros e cantores, das
quais o livro fornece cuidadosos resumos.
Não se pense que o livro se
restrinja ao congresso. A grande discussão do tempo, e não só
no Brasil, levantada pelo romantismo e ainda candente,
era a incorporação de motivos
folclóricos, populares, que expressassem nas composições a
alma de um determinado povo.
A linguagem cosmopolita da
música erudita, no fundo eurocêntrica, via-se posta em xeque.
Assim proposta, a busca do nacional deixaria marcas indeléveis na evolução de nossa música erudita.
O segundo livro -"Orgulho
de Jamais Aconselhar"- focaliza a epistolografia de Mário,
desentranhando dela um projeto didático. Vai desde a análise meticulosa dos diferentes
papéis de carta utilizados até o
exame dos volumes de correspondência alheia encontrados
na biblioteca do escritor.
Mas isso é o de menos. O que
ganhamos, e que vai se desdobrando aos olhos do leitor, são
as diferentes figuras que o missivista assume, sempre a serviço do interlocutor. Este pode
aguardar uma discussão de alto
nível e um confronto como se
fosse entre iguais.
Como se pode imaginar, Mário recebia milhares de petições de parecer sobre trabalhos
que lhe eram enviados por músicos, pintores, poetas e outros
artistas. A todos respondia com
dedicação, procurando uma
troca elevada e que pudesse ser
útil ao destinatário.
Como ninguém ignora, essa
produção epistolar não encontra paralelo no Brasil, e certamente é o mais importante
conjunto em toda a nossa história. São literalmente milhares de cartas, quase todas já publicadas. O levantamento feito
pelo autor mostra 29 volumes
editados, fazendo cogitar se
Mário vai ultrapassar Proust,
um dos mais prolíficos missivistas de que se tem notícia,
que conta com 21.
Um traço a ser lembrado é
que Mário, além de responder a
qualquer desconhecido, por
mais humilde que fosse, também se carteava com a nata da
intelectualidade brasileira. Boa
parte da trajetória do modernismo tem sido reconstituída
graças a essa fonte.
Os principais nomes desfilam: afora Manuel Bandeira, já
citado, Anita Malfatti, Tarsila
do Amaral, Prudente de Morais
Neto, Pedro Nava, Carlos
Drummond de Andrade, Augusto Meyer, Portinari, Rubens
Borba de Morais, Camargo
Guarnieri, Ascenso Ferreira,
Lasar Segall, Paulo Prado, Graça Aranha, Menotti del Picchia.
E ainda muitos outros, da sua
e de outras gerações, como Câmara Cascudo, Tristão de
Athaíde, Fernando Sabino,
Oneyda Alvarenga, Guilherme
de Figueiredo, Rodrigo Mello
Franco de Andrade,
Henriqueta Lisboa, Alphonsus
de Guimaraens Filho, Murilo
Miranda.
Para focalizar a epistolografia de Mário, ninguém mais indicado do que o autor, a quem
devemos a monumental edição
da correspondência ativa e passiva entre Mário e Manuel Bandeira. Trabalhando há muitos
anos nos arquivos do Instituto
de Estudos Brasileiros da USP,
que tem a guarda do acervo de
Mário, o autor tem se especializado na correspondência do
grande modernista.
O presente livro analisa toda
a ativa e só podemos fazer votos
de que um dia se devote à passiva, numerosíssima, cuja catalogação, há pouco concluída sob o
comando da curadora Telê Porto Ancona Lopez, acusa cerca
de 8.000 itens.
Nunca é demais lembrar que
esse é o estudo pioneiro sobre a
correspondência ativa completa de Mário de Andrade.
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora titular de teoria literária na USP e autora de "Guimarães Rosa" (Publifolha).
LUNDU DO ESCRITOR DIFÍCIL -
CANTO NACIONAL E FALA
BRASILEIRA NA OBRA
DE MÁRIO DE ANDRADE
Autor: Maria Elisa Pereira
Editora: Unesp (tel. 0/xx/11/ 3242-7171)
Quanto: R$ 38 (232 págs.)
ORGULHO DE JAMAIS
ACONSELHAR
- A EPISTOLOGRAFIA
DE MÁRIO DE ANDRADE
Autor: Marcos Antonio de Moraes
Editora: Edusp
(tel. 0/xx/11/ 3091-4006)
Quanto: R$ 41 (248 págs.)
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