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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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EM "POLITIZAR AS NOVAS TECNOLOGIAS", LAYMERT GARCIA DOS SANTOS ALERTA QUE A SOCIEDADE BRASILEIRA AINDA NÃO SE DEU CONTA DOS EFEITOS DAS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS

CIBORGUES DA RESISTÊNCIA

Peter Parks - 6.jan.2003/France Presse
Visitantes observam fetos conservados em temperatura ambiente e sem nenhum odor, em Hong Kong


Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

Somos todos ciborgues. Com os avanços da tecnociência "pós-virada cibernética", o corpo, assim como a natureza, se tornou passível de ser processado por meio das linguagens da informática e genética. Em livro que reúne ensaios escritos ao longo de uma década, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos incita a um levante contra o determinismo tecnocientífico. Abordando ambiente, sociedade e arte, o autor de "Politizar as Novas Tecnologias - O Impacto Sócio-Técnico da Informação Digital e Genética" (ed. 34, 320 págs., R$ 34,00) defende que a politização implica não aceitar ser definido nos termos da "informática da dominação" [expressão da filósofa da ciência Donna Haraway, que o autor cita em seu livro].
"Foi através da questão do acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento associado que fui me encaminhando cada vez mais para a biotecnologia e me interessando em pensar mesmo o futuro do humano e as questões das transformações que estão em curso, como a passagem do humano para o ciborgue", diz em entrevista ao Mais!. Professor na Universidade Estadual de Campinas, ele oferece no livro subsídios para, uma vez ciborgues, sermos os "ciborgues da oposição".

O sr. nos mostra em seu livro que a tecnologia permeia hoje todas as dimensões da vida humana de forma quase invisível e envolve, portanto, questões de interesse público. Qual a importância de politizar o debate sobre as novas tecnologias?
Há uma necessidade em todos os tipos de sociedade de colocar em discussão não mais só os efeitos das inovações da tecnociência, mas também as opções tecnológicas que são feitas, e uma necessidade de subtrair esse debate do terreno exclusivo dos especialistas e, principalmente, só dos cientistas e dos tecnólogos. Isso já ficou claro em muitas sociedades, principalmente nos países mais avançados -já ficou clara a necessidade de a sociedade se pronunciar a respeito das opções que os cientistas e os tecnólogos tomam com relação às novas tecnologias.
No nosso caso, essa é uma questão muito importante também, ainda que certas pessoas digam -e eu às vezes fui criticado por isso- que não interessa falar de tecnologias de ponta em um país que tem muitos problemas que são pré-modernos. Eu acho que é necessário, sim, fazer essas discussões aqui para que as opções que são feitas ou que por ventura venham a ser feitas não apareçam como fatos consumados, porque muitas vezes é assim que acontece.
Ou seja, temos que trabalhar nas duas pontas, a gente tem uma sociedade que é pré-moderna, moderna, pós-moderna, tudo ao mesmo tempo, nós temos todas essas temporalidades convivendo ao mesmo tempo. E justamente por isso nós temos que colocar questões que são de ponta em um país que não está todo em um patamar, digamos, pós-industrial. Porque elas nos chegam fatalmente.

No campo ambiental, o sr. nos apresenta um quadro da biodiversidade brasileira sendo colonizada e pirateada. Ou seja, mesmo dentro de uma perspectiva de possibilidade de preservação, continuamos prejudicados do ponto de vista da propriedade intelectual?
Essa é uma questão que na verdade decorre de uma espécie de paradoxo, que é o seguinte: por um lado você tem uma erosão de biodiversidade crescente, isso não só no Brasil, mas mundialmente, e você tem uma consciência de que essa perda progressiva aumenta os riscos de esgotamento ou leva a uma limitação séria de recursos. Desde o relatório do Clube de Roma [associação privada composta por cientistas, políticos e civis de vários continentes, com sede no Instituto Tecnológico de Massachusetts, que, em 1972, elaborou relatórios de grande repercussão sobre o limite dos recursos naturais no planeta], no começo dos anos 70, você já tem a idéia de que os recursos do planeta são limitados. Inclusive toda a questão ambiental se articula em torno da escassez e dos limites dos recursos.
Mas por outro lado, e por isso eu digo que é um paradoxo, à medida que a tecnociência avançou e que a aliança entre tecnociência e capital permitiu a exploração não só tecnocientífica, mas também comercial, da informação digital e genética, isso fez com que os recursos digitais e genéticos abrissem para o capitalismo uma espécie de jogo no qual se pode começar do zero, porque as recombinações são ilimitadas, possibilitando que o capitalismo seja explorado sob novas bases, que são inéditas.
No começo dos anos 90, no Brasil, a questão da nossa megadiversidade era só de especialistas, e para o resto da população era uma não-questão. E era uma contradição gigantesca para nós, como país de maior megadiversidade do planeta, porque, em um momento em que informação genética passava a ser um recurso valioso para o capitalismo de ponta, nós tínhamos os recursos, mas não tínhamos tecnologia para explorá-los e nem sequer a consciência de como fazer para negociar melhor os termos da troca de recursos por tecnologia.
E uma outra dimensão ainda hoje menos discutida, mas igualmente importante para nós, é a do conhecimento tradicional embutido nesses recursos, ou seja, é o fato de a gente ter mais de 300 povos indígenas diferentes, de a gente ter um conhecimento tradicional com relação a essa biodiversidade que é riquíssimo, de a gente não ter consciência da existência desse conhecimento nem do valor que ele tem e de não ter dispositivos legais de proteção para eles.

Que avanços têm ocorrido na normatização dos usos e intervenções na biodiversidade e no próprio ser humano? Porque no campo da genética também se coloca a questão da propriedade. Em um dos artigos de seu livro ("Limites e Rupturas na Esfera da Informação"), o sr. conclui com uma visão muito sombria, ao afirmar que o poder de intervenção parece ilimitado.
O que tem acontecido a partir da década de 90 no campo jurídico é um deslizamento progressivo para permitir e legitimar a apropriação da vida, e essa apropriação se dá por meio da apropriação genética não-humana e também humana, progressivamente. Essa é uma questão que continua e muitas vezes ela se faz, eu diria, muito mais por meio dos deslizes que são produzidos por meio de jurisprudência do que propriamente por legislações que passam por parlamentos. E a bioética, na maioria dos casos que conheço pelo menos, só faz sacramentar aquilo que é decidido pela tecnociência; então a bioética é muito criticável, porque muitas vezes ela dá uma legitimidade a esse processo de deslizamento progressivo, que na verdade facilita tal apropriação da vida.
Eu tento problematizar o tempo inteiro o que significa essa apropriação, porque eu acho que é, digamos, a última fronteira do capitalismo. Não sou eu que digo isso, é o jornal "Financial Times", por exemplo, quando diz que a derradeira privatização é a discussão entre as farmacêuticas que querem patentear descobertas, e não inovações, e as que querem patentear processos e produtos de inovação. E estão discutindo isso para ver como é que se dá esse apagamento de fronteira entre descoberta e inovação.

Seu prognóstico -feito em 2000- continua o mesmo, então?
Eu acho o seguinte: na verdade o prognóstico é que essa apropriação é progressiva, acho que ela vai continuar, mas de certa maneira há uma movimentação no sentido de colocar limites a essa apropriação, e é por isso que eu acho importante que os não-especialistas, que não só os tecnólogos e os cientistas, entrem no debate e possam se pronunciar não só sobre os efeitos das tecnologias, mas sobre as opções tecnológicas que são feitas e sobre quais são as implicações dessas apropriações da vida.

Isso tem implicações na concepção do que seja a condição humana. O pós-humano já virou um clichê, e o conceito vem sendo usado nas mais diversas acepções, mas o sr. poderia explicar como o define?
Eu acho que a gente pode usar o conceito em um sentido até heurístico, para entender a passagem. Existem muitas definições e muitas variações sobre que sentido conferir a essa expressão. A que eu prefiro, na verdade, é: primeiro, o pós-humano de certa maneira marcaria o fim do humanismo e marcaria uma passagem para uma situação na qual o homem não é mais a medida de todas as coisas, o que, no meu entender significa que nós estamos passando para um outro tipo de referencial.
Esse outro tipo de referencial é dado por uma linguagem nova -que é a linguagem da informação- , que trabalha em um plano que é pré-individual, ou seja, informação genética e informação digital trabalham em um plano que é inferior ao plano do organismo, do indivíduo, do inteiro.
Quando a gente passa para esse outro plano, que é o plano micro -e é a virada cibernética que permite isso- , o que acontece? Vou dar um exemplo: a medicina pós-humana não considera mais o corpo do ponto de vista anatômico. Ela vai definir o corpo como uma série de agenciamentos de informação que vai ser "rendido", ou seja, que vai ser processado por meio de uma linguagem informática e uma genética.
Então o corpo não vai mais ser visto da mesma maneira. Isso se pode perceber claramente, por exemplo, no Projeto do Humano Visível, que é a digitalização total do corpo para servir como uma referência à visualização absoluta do corpo. Esse projeto é paralelo ao Projeto Genoma Humano, que pretende decifrar o plano micro, que pretende decifrar justamente a informação genética de cada um. Então você tem uma digitalização total por um lado e, por outro lado, uma decifração do código genético. Esse corpo na verdade vai ser visto como maquinações, num plano micro, e o resultado dele no plano orgânico é o resultado dessas maquinações. Nós não estamos mais interessados na anatomia desse corpo, nós mudamos de plano.
E a medicina pós-humana vai trabalhar com as possibilidades, que se abrem pelas novas tecnologias, de fazer intervenções e modificações nesse corpo, que na verdade não cabem dentro da concepção de medicina moderna. Já é outra medicina. Essa dissolução que ocorre na passagem para uma perspectiva micro, molecular, essa dissolução é que está sendo chamada de o pós-humano. Esse "pós" designa uma passagem para alguma outra coisa.

E o que é essa outra coisa?
Aí começam as diferenciações dentro do pós-humano sobre o que seria, digamos assim, a "superação" desse corpo. De um lado existe uma corrente que vai começar a trabalhar a "obsolescência" do corpo, e daí Kurzweil, por exemplo, falar em um ser humano 2.0, pensando essa superação como uma transcendência desse corpo sendo concebida da seguinte maneira: "E se o corpo fosse apenas um suporte que pode ser, digamos, abstraído, e a gente pudesse pensar a mente humana como algo que pudesse ter uma continuidade, a gente poderia fazer o humano existir para além desse suporte?". Essa linhagem vai trabalhar isso via inteligência artificial e robótica.
A outra linha é a da biogenética, que é a transformação do próprio humano. A transformação do humano, de certo modo, abre perspectivas de uma segunda linha de evolução, que não é mais uma evolução natural. E a grande discussão hoje em dia é qual é o sentido dessa transformação que pode levar a uma outra natureza humana e quem vai entrar nessa outra natureza humana. Aí você tem toda a questão, por exemplo, das novas formulações da eugenia, todo o medo da volta das doutrinas eugênicas dos anos 30, inclusive do nazismo etc., sobre melhoramento não mais de raça, mas de patrimônio genético.

Passagens do seu livro sugerem que é na experiência estética que o homem encontra algumas das respostas diante do assombro das transformações que estão em curso. Qual o papel da arte nesse contexto?
A arte, seguindo um pouco as indicações principalmente de Deleuze, interessa como criação de devir. Portanto, a arte trabalha fundamentalmente com a questão do virtual, porque o devir é aquilo que ainda não foi atualizado, que existe como virtual e que encontra uma expressão em uma criação. A arte é um terreno extremamente sensível, e o próprio capital e a tecnociência estão cada vez mais conscientes da importância da arte, exatamente porque ambos lidam com o virtual, claro que não da mesma maneira.
E não é por acaso que o interesse pela arte se deslocou para a arte contemporânea, que hoje a alta finança está interessada por arte contemporânea, e não mais pela "obra", por aquilo que pode ser inscrito ou que já foi inscrito na história da arte etc.
O que me interessa mais além da relação da arte com o virtual é o modo como os artistas contemporâneos estão estabelecendo uma relação nova com as tecnologias, no sentido em que nem eles são senhores das tecnologias nem são escravos delas, mas estabelecem uma relação de diálogo intenso com elas.
Não havendo primazia nem do humano nem da máquina, essa relação possibilita a realização de potências das máquinas que ainda não tinham sido atualizadas junto com potências criativas do humano que também não tinham sido atualizadas, porque elas só podem se dar na relação, que é o que ocorre por exemplo nos trabalhos do Bill Viola, um artista capaz de captar essas potências por meio de um uso muito particular e criativo das novas tecnologias.


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