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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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PARA O ENSAÍSTA, TIMOTHY LEARY ATUALIZOU A REVOLUÇÃO DIGITAL ANTEVISTA POR MARSHALL MCLUHAN E ABRIU NOVOS CAMINHOS PARA SUA COMPREENSÃO

DO CAOS AO ESPAÇO CIBERAL

por Augusto de Campos

Poucos terão tido antevisão tão instigante das transformações culturais introduzidas pelos novos meios tecnológicos como Timothy Leary, quando, em suas últimas intervenções teóricas, trocando o LSD pelo PC, o computador pessoal ("O PC é o LSD dos anos 90"), escreveu os textos depois compilados no livro "Chaos & Cyber Culture" [Ronin Publishing].
Reciclando e atualizando McLuhan, que ele nunca deixou de considerar um profeta das novas eras, Tim Leary analisou com notável perspicácia as implicações da revolução digital, buscando nesta -como seria de esperar do seu feitio contracultural- não a estrada real do triunfo tecnomercadológico, mas as sendas ou desvios que podem propiciar uma leitura mais otimista e dignificante, em termos de apropriação individual, criativa, dos novos recursos comunicativos que se abrem para o espaço cibernético.
"Caos & Cibercultura" reúne uma série de artigos que Leary escreveu nas décadas de 70 a 90, entre os quais aquele que dá nome ao volume, publicado em 1994, abrangendo suas reflexões e previsões sobre o universo digital e sua rede intercomunicativa. Impossível mapear o rico manancial das idéias de Leary, algumas das quais tento aqui resumir, sem recorrer à terminologia criativa com que ele as expõe com a exuberância e a turbulência de sua imaginação.
Em um desses artigos, "Como Eu Me Tornei Anfíbio", Timothy Leary descreve o processo de metamorfose cultural por que passou a sua percepção, como a de milhões de outros seres humanos, nos últimos anos, sob o impacto das novas mídias. Por volta de 1980 -afirma Leary-, ele começou a se sentir em estado de mutação, ao se ver gastando cerca de quatro horas por dia a produzir, escrever e dirigir imagens na sua tela pessoal. Foi quando aprendeu a arquivar, processar, organizar, armazenar, recuperar e transmitir seus pensamentos digitais sob a forma de palavras e ícones.
Esses exercícios de traduzir pensamentos em códigos digitais e imagens de tela o ajudaram a entender como seu cérebro funcionava, como o universo atua em termos de algoritmos de informação e, finalmente, a compreender como evitar a ditadura da televisão e democratizar a política "telecibernética" do futuro. Passara a sentir-se tão confortável em Cibéria, Tubolândia, no outro lado de sua janela para a realidade eletrônica, como ao operar no fechado Terrarium do mundo material. Eis aqui algumas das provocações de Leary, colecionadas e colacionadas das suas principais idéias, que poderiam compor uma espécie de manifesto ciberal:
Estamos mudando para uma outra espécie -de Aquária para o Terrarium, e agora estamos caminhando para a Cibéria. Os críticos da era da informação vêem tudo com sinal negativo, como se a quantidade de informação pudesse levar a uma perda de significado. Diziam o mesmo a respeito de Gutemberg. Nunca antes o indivíduo teve tanto poder. Mas na era da informação é preciso tornar visíveis os sinais. Popularização significa tornar as coisas disponíveis às pessoas. Hoje, a tarefa do filósofo é personalizar, popularizar e humanizar as idéias de computador de modo que as pessoas se sintam confortáveis com ele. Depois de ter evoluído em milhões de anos, da água para a terra, através dos períodos devoniano e triássico, o homem aprenderia, sob os auspícios da física quântica, a receber, processar e transmitir imagens eletrônicas -telefone, cinema, rádio, televisão, computadores, discos compactos, fax: subitamente ele cria realidades digitais que podem ser acessadas em telas da sala de estar. Ei-lo que passa de Aquária a Terrarium e deste a Cibéria, o universo dos signos eletrônicos.


Os críticos da era da informação vêem tudo com sinal negativo, como se a quantidade de informação pudesse levar a uma perda de significado; diziam o mesmo a respeito de Gutemberg; mas nunca antes o indivíduo teve tanto poder


Somos criaturas engatinhando para o centro do mundo cibernético. Assim como o cérebro pisciforme tinha que se "terravestir" para habitar o Terrarium, assim os nossos cérebros primatas tiveram que adotar vestes canaveral-espaciais para migrar para o "siderespaço". E usar aparatos digitais para habitar o "ciberespaço".

Aqueles de nós que escolheram a opção anfíbia passarão algumas de suas horas de vigília equipados e navegando na cibernético-psibernética Telalândia.

O nascimento da era informacional ocorreu em 1976, não numa fumarenta cidade industrial como Bethlehem, PA, mas num humilde estábulo (garagem) no solarento vale do Silício pós-industrial. O Computador Pessoal foi inventado por dois garotos cabeludos e barbudos, santo Estefânio, o Grande, e santo Estêvão, o Menor [ele trocadilha com os nomes de Steve Jobs e Stephen Wozniak], e, para completar a metáfora bíblica, o mesmo prodígio foi batizado a partir do Fruto da Árvore do Conhecimento: a Maçã (Apple!)

0"Cibernética" vem do grego, "kubernetes", piloto. A origem helênica dessa palavra é importante enquanto reflete as tradições socrático-platônicas de independência e autoconfiança individual. Quando traduzida para o latim, porém, a palavra grega surge como "gubernaetes". O verbo básico "gubernare" significa controlar as ações ou condutas, dirigir, exercitar a autoridade, submeter, comandar. Esse conceito romano é obviamente muito diferente da noção helênica do "piloto". A palavra "cibernética" foi cunhada em 1948 por Norbert Wiener, que escreveu: "Decidimos chamar todo o campo da teoria do controle e da comunicação, quer se trate de máquina ou animal, pelo nome de cibernética, que formamos a partir da palavra grega para timoneiro". Wiener e os engenheiros romanos corromperam o significado da palavra "ciber". A palavra grega "piloto" transforma-se em "governador" ou "diretor", o termo "guiar" se torna "controlar". Cumpre libertar o termo, reetimologizá-lo, redirigi-lo a um conceito autopoético. A palavra "governértica" se refere a uma atitude de controle-obediência em relação a si próprio e aos outros.
Os termos "pessoa cibernética" ou "cibernauta" nos fazem retornar ao significado original do "piloto". Essas palavras (e mais o termo pop "ciberpunk") se referem à personalização da tecnologia de informação-conhecimento, ao pensamento inovativo da parte do indivíduo. Tais expressões podem descrever um novo tipo de modelo de ser humano e uma nova ordem social.
"Ciberpunk" é uma terminologia popular, que pode ser aceita num sentido tolerante de humor "high-tech", uma granada-significado atirada contra as barricadas conservadoras da linguagem. O cibernauta ou "ciberpunk" é o piloto que pensa clara e criativamente, usando aplicações quântico-eletrônicas e know-how cerebral, o novo, atualizado modelo de ponta do século 21. Homo sapiens sapiens ciberneticus. O modelo clássico do Velho Mundo ocidental para o "ciberpunk" é Prometeu, um gênio tecnológico que "roubou" o fogo dos deuses e deu-o à humanidade.

Os "ciberpunks" são os inventores, escritores inovadores, artistas tecnofronteiriços, diretores de filmes de risco, compositores da mutação icônica, livre-cientistas tecnocriativos, visionários dos computadores, "hackers" elegantes, videomagos, todos aqueles que ousadamente armazenam e guiam idéias para lá onde os pensamentos nunca chegaram antes "through seas never sailed before". [traduzo: por mares nunca dantes navegados, como diria o pré-ciberpunk Camões].
Os primeiros 75 anos do século 20 foram devotados a preparar, treinar e iniciar os seres humanos a se comunicar em fala-quântica, isto é, a pensar e agir em um nível inteiramente diferente -em termos de "clusters" digitais. Dessa perspectiva histórica podemos ver que o século 20 (1900-1994) produziu uma avalanche de movimentos artísticos, literários, musicais e de entretenimento, todos eles compartilhando a mesma meta: desnudar as roupagens e os uniformes, dissolver nossa fé cega na estrutura estática; liberar-se da rigidez da cultura industrial; preparar-nos para conviver com o paradoxo, com estados alterados de percepção, com definições multidimensionais da natureza; tornar confortável, manejável, palatável, vivível a realidade quântica; fazer com que nos sintamos em casa ao movimentar eléctrons pelo monitor do nosso computador.
ARTE DIGITAL! DIY (Do It Yourself)!.

Uma nova forma de arte está emergindo -a produção de provocações de três minutos sobre atrações futuras. Haicais eletrônicos! Muitos filmes não sobrevivem aos trailers que os anunciaram. Os criadores de filmes estão aprendendo a lição da física quântica e da neurologia digital: muito mais informação em pacotes muito menores.

Uma nova linguagem global de sinais virtuais, ícones, píxeis 3-D será a língua franca da nossa espécie. Em lugar de usar palavras, nós nos comunicaremos em auto-editados clipes selecionados das selvas caóticas de imagens armazenadas em nossas pulsações. Os dialetos vocais locais permanecerão, é claro, para a comunicação íntima. Por estendermos nossas mentes e darmos poder aos nossos cérebros, não temos que abandonar os nossos corpos nem as nossas máquinas nem os nossos suaves e secretos murmúrios amorosos. Guiaremos carros, como agora andamos a cavalo, por prazer. Desenvolveremos estranhas expressões corporais, não para trabalhar como robôs eficientes, mas para realizar atos livres. Em lugar de uma engenharia reprimida, a "imagenharia", a fabricação de realidade eletrônica: aprender como expressar, comunicar e compartilhar as maravilhas dos nossos cérebros com os outros.

A boa notícia é que a mídia cibernética não pode ser controlada. Sinais eletrônicos espoucando pela atmosfera não podem ser paralisados por muros de pedra nem por cães da polícia de fronteiras.
Essas e outras idéias fictocientíficas, lançadas por Timothy nos anos 90, vão-se tornando cada vez mais realidade. Os computadores pessoais têm pouco mais de 20 anos. A internet menos de dez! Meu primeiro computador pessoal -um Mac Classic preto-e-branco, tela de 9 polegadas, com 40 MB no disco rígido interno e apenas dois de memória Ram, que eu achava uma maravilha -é hoje pura relíquia gigaobsolescida. As potencialidades da linguagem digital cresceram extraordinariamente, em ritmo vertiginoso, com hardwares e softwares cada vez mais aperfeiçoados e disponibilizados, reavivando no mundo dos signos a pertinência antecipadora das propostas da vanguarda, fulcradas em conceitos como a materialidade do texto e a sua projeção pluridimensional, visual e sonora ("verbivocovisual"), a interpenetração do verbal e do não-verbal, a montagem, a colagem, a interdisciplinaridade, a simultaneidade e, por fim, a interatividade, em substituição aos modelos convencionais do discurso ortodoxo e fechado. Cabe aos artistas e poetas explorar o território novo que nos oferece a engenharia computacional, libertá-la prometeicamente, ainda que de forma simbólica, como parábola exemplar, das práticas meramente institucionais e comércio-comunicativas e humanizá-la com o sopro transfigurador de suas criações.

Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Música de Invenção" e "Despoesia" (ed. Perspectiva), entre outros livros.


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