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Andando na linha
"As Esquerdas no Brasil" traça um ambicioso painel das variantes de socialismo praticadas no Brasil
desde o início do século 20
Reprodução
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A atriz carioca Leila Diniz (1945-72) |
OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
que pode haver em
comum entre personagens tão distintos como Leila
Diniz, Carlos Marighella e Lula? O fato de a
atriz, o guerrilheiro e o presidente serem de esquerda.
Essa seria uma resposta destinada à polêmica não estivesse
fundada na noção do pensador
italiano Norberto Bobbio, para
quem ser de esquerda é ser
guiado pela perspectiva da
igualdade social e de direitos.
É sob esse amplo guarda-chuva ideológico que estão
abrigados partidos, correntes,
facções, dissidências e personalidades abordados nos três
volumes de "As Esquerdas no
Brasil" [org. Jorge Ferreira e
Daniel Aarão Reis, ed. Civilização Brasileira, R$ 70 e 574
págs. (vol. 1), R$ 72 e 630 págs.
(vol. 2) e R$ 75 e 700 págs. (vol.
3)], o mais ambicioso e abrangente painel de todas as variações do socialismo praticadas
no Brasil desde o início do século passado.
A mais antiga delas, registrada a partir dos primórdios da
República Velha, é o anarquismo sindical dos imigrantes italianos. Mais tarde, em 1922,
funda-se o Partido Comunista,
o tronco de onde sairiam quase
todos os galhos socialistas.
Os grandes desdobramentos
correspondem a mudanças no
movimento comunista internacional. As denúncias dos crimes de Stálin, em 1956, fragmentam o PCB obediente a
Moscou; pouco depois, o êxito
da revolução cubana estimula o
surgimento de grupos armados. E assim por diante, até a
queda do Muro de Berlim, em
1989, acabar com os parâmetros do socialismo.
Os volumes, organizados por
temas e por ordem cronológica, cumprem função de contar
essa história com uma preocupação que é também didática, o
que não deixa de ser útil, dada a
floresta de siglas partidárias,
mais densa à medida que as
agremiações se distanciam do
stalinismo e se aproximam do
trotskismo.
Volumes irregulares
Obra de 68 autores, os três
volumes são necessariamente
irregulares. Há também muita
sobreposição de informação, e
esse é um problema que talvez
pudesse ter sido evitado pela
edição.
O saldo, porém, é positivo:
entre sínteses, análises e perfis,
a história das esquerdas emerge como num caleidoscópio. O
que se perde em linearidade ganha-se em pluralidade.
Embora os autores participem do projeto como acadêmicos -e não como militantes
que alguns foram ou são-, as
eventuais simpatias de um são
anuladas pelas do outro.
Se a obra é pouco ortodoxa ao
estabelecer hierarquias, isso
acaba por enriquecer o resultado. Lamarca e Marighela, por
exemplo, os dois grandes líderes da luta armada, são tratados
em um único verbete, ao passo
que Leila Diniz e o Barão de Itararé são tratados em separado.
Embora tenha sido um grande humorista, como militante
comunista o barão teve um papel apenas discreto.
Ainda assim, Leandro Konder, que esboça seu perfil, faz
valer a inclusão do personagem
ao concluir que, antes de ser
elemento de desagregação, ele
pode ter influído na política
cultural do PCB, obrigando
seus companheiros a conviver
com a diversidade. "Ainda não
era o pluralismo, mas talvez
fosse um passo -pequeno, precioso- na direção dele."
Quanto a Leila Diniz, apesar
de sua conduta não ter sido
pautada por bandeiras políticas, influenciou o feminismo
pelo exemplo de mulher livre e,
ao ser censurada, contou com a
admiração dos que combatiam
a ditadura militar, como anota
Miriam Goldenberg.
"As Esquerdas no Brasil" enfoca a questão da luta armada
em vários textos, mas deixa de
fora um assunto delicado: as
circunstâncias da morte de Marighella, em 1969. O militante
teria caído devido a informações obtidas, sob tortura, de dominicanos (versão de Jacob
Gorender em "Combate nas
Trevas") ou fornecidas por
agentes infiltrados em sua organização (versão de Frei Betto
em "Batismo de Sangue").
Uma obra de caráter quase
enciclopédico poderia ter tentado esclarecer o ponto.
Os textos são mais polêmicos
quando tratam de personagens
que estão no poder. Sendo o PT
e parte da base aliada egressos
dos movimentos de esquerda, é
natural que a biografia de seus
dirigentes tenha sido objeto de
análise em vários textos.
O historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis, um
dos organizadores da coletânea, morde e assopra o PT. Critica o "socialismo autoritário"
do partido, que em 1998 expulsou o militante Paulo de Tarso
Venceslau, em vez de apurar
suas denúncias.
"Denuncismo"
Mas, ao comentar o mensalão, centra fogo no que chama
de "denuncismo moralista" e o
compara, com algum exagero, à
campanha udenista que levou
Getúlio Vargas ao suicídio.
Lula é personagem obrigatório. Mas, tendo dado a guinada
à direita que o viabilizou nas
urnas, sua presença na galeria
dos heróis da esquerda precisa
ser justificada. É o que faz o historiador Francisco Carlos Palomanes Martinho, que convoca
o conceito bobbiano para incluí-lo no "universo da esquerda". Ainda assim, só para criticá-lo pelo "darwinismo ideológico" de quem entende que é
um problema ser de direita na
juventude ou de esquerda na
maturidade.
Hoje, maduro, ele é apenas
carismático. "Lula procura cada vez mais transformar-se em
um político que prescinde não
só dos partidos como também
da própria política", afirma
Martinho, numa das poucas linhas da coletânea que arriscam
uma perspectiva.
OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "A
História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha).
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