São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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+ Sociedade

Andando na linha

"As Esquerdas no Brasil" traça um ambicioso painel das variantes de socialismo praticadas no Brasil desde o início do século 20

Reprodução
A atriz carioca Leila Diniz (1945-72)


OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que pode haver em comum entre personagens tão distintos como Leila Diniz, Carlos Marighella e Lula? O fato de a atriz, o guerrilheiro e o presidente serem de esquerda. Essa seria uma resposta destinada à polêmica não estivesse fundada na noção do pensador italiano Norberto Bobbio, para quem ser de esquerda é ser guiado pela perspectiva da igualdade social e de direitos.
É sob esse amplo guarda-chuva ideológico que estão abrigados partidos, correntes, facções, dissidências e personalidades abordados nos três volumes de "As Esquerdas no Brasil" [org. Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis, ed. Civilização Brasileira, R$ 70 e 574 págs. (vol. 1), R$ 72 e 630 págs. (vol. 2) e R$ 75 e 700 págs. (vol. 3)], o mais ambicioso e abrangente painel de todas as variações do socialismo praticadas no Brasil desde o início do século passado.
A mais antiga delas, registrada a partir dos primórdios da República Velha, é o anarquismo sindical dos imigrantes italianos. Mais tarde, em 1922, funda-se o Partido Comunista, o tronco de onde sairiam quase todos os galhos socialistas. Os grandes desdobramentos correspondem a mudanças no movimento comunista internacional. As denúncias dos crimes de Stálin, em 1956, fragmentam o PCB obediente a Moscou; pouco depois, o êxito da revolução cubana estimula o surgimento de grupos armados. E assim por diante, até a queda do Muro de Berlim, em 1989, acabar com os parâmetros do socialismo.
Os volumes, organizados por temas e por ordem cronológica, cumprem função de contar essa história com uma preocupação que é também didática, o que não deixa de ser útil, dada a floresta de siglas partidárias, mais densa à medida que as agremiações se distanciam do stalinismo e se aproximam do trotskismo.

Volumes irregulares
Obra de 68 autores, os três volumes são necessariamente irregulares. Há também muita sobreposição de informação, e esse é um problema que talvez pudesse ter sido evitado pela edição.
O saldo, porém, é positivo: entre sínteses, análises e perfis, a história das esquerdas emerge como num caleidoscópio. O que se perde em linearidade ganha-se em pluralidade. Embora os autores participem do projeto como acadêmicos -e não como militantes que alguns foram ou são-, as eventuais simpatias de um são anuladas pelas do outro.
Se a obra é pouco ortodoxa ao estabelecer hierarquias, isso acaba por enriquecer o resultado. Lamarca e Marighela, por exemplo, os dois grandes líderes da luta armada, são tratados em um único verbete, ao passo que Leila Diniz e o Barão de Itararé são tratados em separado. Embora tenha sido um grande humorista, como militante comunista o barão teve um papel apenas discreto.
Ainda assim, Leandro Konder, que esboça seu perfil, faz valer a inclusão do personagem ao concluir que, antes de ser elemento de desagregação, ele pode ter influído na política cultural do PCB, obrigando seus companheiros a conviver com a diversidade. "Ainda não era o pluralismo, mas talvez fosse um passo -pequeno, precioso- na direção dele."
Quanto a Leila Diniz, apesar de sua conduta não ter sido pautada por bandeiras políticas, influenciou o feminismo pelo exemplo de mulher livre e, ao ser censurada, contou com a admiração dos que combatiam a ditadura militar, como anota Miriam Goldenberg.
"As Esquerdas no Brasil" enfoca a questão da luta armada em vários textos, mas deixa de fora um assunto delicado: as circunstâncias da morte de Marighella, em 1969. O militante teria caído devido a informações obtidas, sob tortura, de dominicanos (versão de Jacob Gorender em "Combate nas Trevas") ou fornecidas por agentes infiltrados em sua organização (versão de Frei Betto em "Batismo de Sangue").
Uma obra de caráter quase enciclopédico poderia ter tentado esclarecer o ponto. Os textos são mais polêmicos quando tratam de personagens que estão no poder. Sendo o PT e parte da base aliada egressos dos movimentos de esquerda, é natural que a biografia de seus dirigentes tenha sido objeto de análise em vários textos.
O historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis, um dos organizadores da coletânea, morde e assopra o PT. Critica o "socialismo autoritário" do partido, que em 1998 expulsou o militante Paulo de Tarso Venceslau, em vez de apurar suas denúncias.

"Denuncismo"
Mas, ao comentar o mensalão, centra fogo no que chama de "denuncismo moralista" e o compara, com algum exagero, à campanha udenista que levou Getúlio Vargas ao suicídio.
Lula é personagem obrigatório. Mas, tendo dado a guinada à direita que o viabilizou nas urnas, sua presença na galeria dos heróis da esquerda precisa ser justificada. É o que faz o historiador Francisco Carlos Palomanes Martinho, que convoca o conceito bobbiano para incluí-lo no "universo da esquerda". Ainda assim, só para criticá-lo pelo "darwinismo ideológico" de quem entende que é um problema ser de direita na juventude ou de esquerda na maturidade.
Hoje, maduro, ele é apenas carismático. "Lula procura cada vez mais transformar-se em um político que prescinde não só dos partidos como também da própria política", afirma Martinho, numa das poucas linhas da coletânea que arriscam uma perspectiva.


OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha).


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