São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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O construtor de enigmas

Único brasileiro além de Niemeyer a ganhar o Prêmio Pritzker, o Nobel da arquitetura, Paulo Mendes da Rocha diz ser ele um dos grandes artistas do século 20, que dialoga com a Antigüidade e a Renascença

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

O scar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha são os maiores arquitetos brasileiros vivos. Significativamente, foram os únicos a receber, até hoje, o Prêmio Pritzker (em 1988 e 2006, respectivamente), considerado a condecoração máxima da profissão. Entrevistado em seu escritório, no edifício do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), no centro de São Paulo, Mendes da Rocha falou sobre a importância do colega, 21 anos mais velho, para a sua geração. Admirador da inteligência construtiva de Niemeyer, nunca levou em conta o suposto antagonismo entre São Paulo e Rio de Janeiro no campo da arquitetura. Comentando projetos importantes, como o Museu de Caracas (1954), a Catedral de Brasília (1958) e o Memorial da América Latina (1987), Mendes da Rocha destaca a relação fundamental entre invenção e experiência histórica na obra de Niemeyer.

 

FOLHA - Qual é a importância da obra de Niemeyer para o sr.?
PAULO MENDES DA ROCHA -
Eu pensei que, para homenagear o nosso querido Oscar Niemeyer, seria importante falar primeiro da importância que ele teve na formação de uma pessoa da minha geração, que cursou a Faculdade de Arquitetura entre 1949 e 1954, mais de meio século atrás, mas numa época em que a sua obra já aparecia com muita clareza.
E se destacava, sobretudo, quanto à capacidade de estabelecer uma reflexão de caráter arquitetônico sobre o que se quer fazer e sobre o grau de liberdade envolvido nisso. Para mim, comemorar os cem anos de Niemeyer é quase dizer o seguinte: "Mas seria impossível não haver Niemeyer", porque ele amparou a nossa existência. Todo o prestígio da arquitetura brasileira se deve a ele. E é um prestígio advindo da idéia de imaginação, que, para o país, sempre representou uma esperança.
Portanto, é difícil imaginar uma comemoração formal, já que nós sempre tivemos Niemeyer como uma comemoração constante: da inteligência, da coragem, da capacidade técnica etc.
Por outro lado, é preciso comemorar o fato de que Niemeyer é, seguramente, um dos grandes artistas do século 20, porque fez com que a arquitetura revelasse sempre soluções que, além de serem brilhantes, são expressões de uma suprema liberdade.

FOLHA - Como o sr. vê a questão do tão falado antagonismo entre São Paulo e Rio de Janeiro no campo da arquitetura?
MENDES DA ROCHA -
Pois é, costuma-se criar essa oposição entre as "escolas" paulista e carioca, filiando a arquitetura de lá às belas-artes e, a daqui, à politécnica. O que, aliás, procuro sempre corrigir, incluindo a importância da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no caso da USP. Acho que essa é a chave que marca a FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP], pela cabeça de Vilanova Artigas.
Mas, diante da questão de uma oposição entre São Paulo e Rio, acho que tive uma felicidade muito grande, que me impediu de ver as coisas assim. É que, entre os 14 e os 17 anos de idade, saí daqui e fui morar na casa do meu avô, no Rio de Janeiro, para me enfiar num curso preparatório para a Escola Naval, dado pelo comandante Barata, na rua da Carioca. Ou seja, eu freqüentei sem querer, àquela altura, a colunata do Ministério da Educação, por exemplo.
E, principalmente, morando onde o meu avô morava -no Alto da Tijuca-, eu tinha que tomar o bonde Águas Férreas e descer no largo da Carioca. Portanto, acabei freqüentando a cidade do Rio de Janeiro, já adolescente, vivendo a sua densidade, porque aqui em São Paulo nós estudávamos em colégios ainda de bairro.
Logo, acho que desenvolvi uma visão um tanto "carioca" da vida urbana, que era diferente daquela que os meus colegas aqui de São Paulo tinham na época. O que fez com que eu nunca conseguisse dividir a questão da arquitetura entre arte e técnica, como se houvesse uma arquitetura das belas-artes e outra da politécnica, como se diz. E Niemeyer atravessa isso tudo, não só pelo Ministério da Educação, que freqüentei naquela época, mas também pelo Ibirapuera, construído um pouco depois aqui mesmo.


Comemorar os cem anos de Niemeyer é quase dizer o seguinte: "Seria impossível não haver Niemeyer", porque ele amparou a nossa existência; todo o prestígio da arquitetura brasileira se deve a ele


São Paulo, aliás, é muito feliz, porque é a cidade do mundo que possui mais obras de Niemeyer (depois de Brasília, naturalmente).

FOLHA - Diferentemente do que se diz sobre a gratuidade da forma na obra do Niemeyer, o sr. sempre valorizou o gênio construtivo que ela contém, não é?
MENDES DA ROCHA -
Pois é, Niemeyer tem uma sabedoria enorme em não ficar exibindo isso. A curva do Copan, por exemplo, é uma resolução técnica exemplar quanto à questão do esforço de vento, num prédio que se quis esbelto por razão da qualidade das plantas dos apartamentos.
O Copan também é um modelo quanto à relação entre habitação e cidade, situado em plena praça da República. É, por excelência, o símbolo da habitação popular de uma metrópole.

FOLHA - E em que outros projetos dele essa inteligência construtiva aparece com nitidez?
MENDES DA ROCHA -
O Museu de Caracas, por exemplo, é um projeto extraordinário. Se pensarmos na história da pirâmide, veremos que ela tem três capítulos: as pirâmides do Cairo, a pirâmide invertida do Museu de Caracas e a pirâmide de cristal do Louvre.
Sim, pois a pirâmide de Quéops tem uma fresta muito precisa pela qual se pode ver, de dentro da cripta do faraó, em certo momento, a estrela de Sírio, da constelação do Cão Maior. Ou seja, aquela pirâmide de pedra já sonhava em ser cristalina, como a de Pei [arquiteto chinês].
E o raciocínio de Niemeyer em Caracas, ao inverter a pirâmide e concentrar as cargas, é uma coisa extraordinária, porque é algo que a mecânica dos solos hoje permite. E também por usar as paredes, que nesse caso tendem a cair, como um recurso de autoprotensão das lajes horizontais.
Tudo isso faz com que o Museu de Caracas transmita uma visão construtiva fantástica, porque tem uma estrutura belíssima e totalmente factível, que praticamente se faz por si mesma. Nesse sentido, é como as pirâmides antigas, que eram máquinas da sua própria construção: o plano inclinado. Esse museu é uma nova expressão da mesma coisa. Não como mesmice, é claro, mas como uma reflexão que se prolonga.

FOLHA - O sr. acha, então, que o sentido de "invenção" em sua obra tem uma relação com a história da construção?
MENDES DA ROCHA -
Se você tomar a catedral de Brasília, por exemplo, pode considerar que é uma inversão da cúpula da igreja em Florença, de Brunelleschi [1377-1446]. Principalmente porque o princípio estrutural de que partem ambas é a indeformabilidade do círculo, uma vez submetido à ação de forças homogêneas.
A base da cúpula de Florença é um círculo que recebe os esforços de tração, sobre o qual se apóiam aquelas nervuras feitas com pedra, que se juntam lá em cima num outro círculo menor, que trabalha a compressão.
Mas, se você inverter o desenho, vai ver que a Catedral de Brasília tem no chão (ainda que falso, porque há um subsolo escavado), um grande cilindro: um anel também submetido a tração de modo uniforme.
Mas, hoje, aquelas pedras que antes eram arcos podem ganhar, com o concreto armado, uma forma invertida, tendo outro anel em cima que vai receber o conjunto do feixe desses arcos convexos, trabalhando fortemente a compressão.
Como se vê, Brunelleschi e Niemeyer fizeram uma catedral só. Quer dizer, se divertiram. Essa é uma grande lição de Niemeyer: sua reflexão está centrada na experiência. Portanto, ele é um fabricante, um construtor, assim como se diz que Mies van der Rohe [1886-1969] era um carpinteiro.
Mesmo a idéia do grande espaço coberto com o homem dentro, que Niemeyer desenvolve, pode ser vista assim.
Porque, se você tomar uma cúpula romana toda de pedra e já com os seus anexos laterais, como o Panteão de Agrippa, vai perceber que é formada por um anel contínuo e uma sucessão de arcos. O que nos dá a percepção, para quem está numa dessas capelas laterais, de uma pequena abóbada seguida por uma grande cúpula, com outra abóbada no fundo.
Agora, se você pegar esse anel com os pequenos arcos e o retificar, terá uma grande viga com inúmeros apoios.
E, se ainda puder fazer essa viga protendida e resolver tudo em apenas dois apoios extremos, com cascas de concreto armado repousando nela, terá os protótipos dos pavilhões que Niemeyer criou no Memorial da América Latina.
O Memorial, portanto, é um exercício de construção, como se juntasse uma pedrinha aqui, outra ali, e pegasse os templos astecas e incas para dizer que agora nós vamos arrumar as pedras de outro modo.
Sim, porque o concreto é pedra líquida. Assim, não vem ao caso se aquele prédio é um auditório ou uma biblioteca. O que Niemeyer está fazendo ali é um protótipo construtivo. O projeto do Memorial da América Latina é uma reflexão sobre a história da construção, sem a qual não haveria cidades nem haveria nós.
Então, a motivação do projeto é procurar, na história da técnica, o maior elogio possível para construir aquilo. A FAU [projeto de Vilanova Artigas] também é um prédio assim, com essa força histórica. A construção é uma espécie de enigma que impõe uma reflexão sobre como e por que aquilo foi feito daquele modo.
Não como um mistério insondável, mas algo a ser decifrado com um teor educativo fundamental.


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