São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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Fla-flu crítico

Arquiteto viveu no ostracismo dos anos 1980 a meados dos 90, quando o Guggenheim de Bilbao, de Frank Gehry, resgatou seu valor

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

E u não vou. Se ele quiser, que venha aqui.
É Oscar Niemeyer quem fala.
Sua filha Anna tenta demovê-lo, explica que não é um compromisso qualquer.
É o presidente, papai. Você precisa ir.
Niemeyer segue com a mesma opinião. Não vê razões para deixar a rotina do seu escritório para receber uma medalha. Quem conhece Niemeyer sabe que ele odeia esse tipo de bajulação. "Uma babaquice" é o seu xingamento predileto a esse tipo de coisa.
Se ele acha importante, que venha ao meu escritório, responde o arquiteto.
Niemeyer está pouco se lixando para o simbolismo da cerimônia. Ele receberia a Ordem do Mérito Cultural no Palácio Capanema, um dos marcos da arquitetura moderna brasileira, que ele projetou com Lucio Costa, Affonso Reidy, Carlos Leão e Le Corbusier, entre outros, nos anos 1930.
Não tem jeito. Niemeyer não vai. O presidente Lula tem de ir ao seu escritório. A cerimônia ocorreu no dia 29 de novembro e durou 20 minutos.
Niemeyer gosta de Lula. Comunista histórico, viu com entusiasmo a chegada de um operário à Presidência. A aproximação de Lula com Hugo Chávez só fez aumentar a simpatia do arquiteto pelo presidente.
Há pelos menos três hipóteses para a recusa de Niemeyer a aparecer no Palácio Capanema para receber uma medalha do presidente. A mais óbvia é a licença que um senhor de 99 anos adquire para recusar esse tipo de chatice. Kadu Niemeyer, neto do arquiteto, explica a recusa por aí: "Dr. Oscar não tem bronca nenhuma do Lula. Ele não foi por cansaço, por preguiça de sair".

Cansaço e protesto
Há amigos do arquiteto que vêem na recusa um misto de cansaço com um protesto discreto. Niemeyer, segundo esses amigos, não perdoa um discurso que Lula fez há um ano, no qual diz que ser de esquerda é um pecadilho da juventude.
"Eu acho que é a evolução da espécie humana: quem é mais de direita vai ficando mais de esquerda, quem é mais de esquerda vai ficando social-democrata. Não tem outro jeito. Se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela está com problema. Se você conhecer uma pessoa muito nova de direita, é porque também está com problema."
Niemeyer está às vésperas dos cem anos, continua comunista e não tem problema nenhum, salvo os naturais da idade. Ele não foi à entrega da medalha porque não quer perder tempo com "babaquices".
Niemeyer parece ter olhos só para o seu trabalho, os amigos e a mulher. Esse foco preciso talvez explique um dos maiores paradoxos do arquiteto: ele fez alguns dos seus melhores trabalhos depois dos 80 anos, quando os artistas ou se afundam na redundância ou se tornam estéreis.
"Que arquiteto brasileiro fez nos últimos 20 anos trabalhos com a qualidade e a invenção do museu de Niterói [MAC] e do auditório do Ibirapuera?", pergunta o diplomata e crítico de arquitetura André Corrêa do Lago, autor do livro "Oscar Niemeyer - Uma Arquitetura da Sedução" (ed. Bei).
O próprio crítico dá a resposta: nenhum.
"O auditório do Ibirapuera vai ficar como uma das grandes obras do minimalismo", diz Corrêa do Lago. "É um edifício contemporâneo, de 2003. O que é chocante é que o auditório foi feito quando o Niemeyer tinha 97 anos".

A guinada
Niemeyer tem uma trajetória mais ou menos constante desde que começou como estagiário no escritório de Lucio Costa, no início dos anos 30. Sua obra segue uma lógica própria, centrada na liberdade do concreto preconizada pelo modernismo, desde a Pampulha. A percepção sobre seu trabalho é que sofreu mudanças, segundo Corrêa do Lago.
Por uma "feliz coincidência" da história, seus trabalhos dos últimos 15, 20 anos encontraram um cenário propício para a arquitetura moderna, de acordo com o crítico.
Dos anos 80 aos 90 do século passado, Niemeyer passou por um período em que sua obra tinha quase nenhuma repercussão internacional -foram os anos da voga pós-moderna, do apelo decorativo, do culto a Las Vegas, quando os modernistas eram tratados como uma aberração histórica.
A inauguração, em 1997, da filial do museu Guggenheim, em Bilbao, projetada pelo norte-americano Frank Gehry, é o principal marco da retomada da arquitetura moderna, segundo o crítico.
Para quem não acompanha a crítica de arquitetura internacional, Corrêa do Lago dá um exemplo simples para perceber essa mudança da crítica internacional. O Memorial da América Latina, projeto de Niemeyer de 1987, foi ignorado por praticamente todas as revistas internacionais de arquitetura. Já com o MAC de Niterói, inaugurado nove anos depois, o arquiteto foi tratado como um gênio modernista que atingira seu ápice.
"Se Niemeyer tivesse morrido com 80 anos, ele teria, na visão da crítica internacional, um papel menor na arquitetura mundial. Ninguém falava sobre ele nos anos 80. A crítica o tratava com uma profunda indiferença. O interessante é que nunca deu bola para as críticas. Ele continuou a fazer o mesmo tipo de arquitetura mesmo debaixo das críticas mais pesadas ou, o que é pior, diante da indiferença mais pesada", afirma Corrêa do Lago.
No Brasil, a avaliação da obra do arquiteto é ainda mais periclitante, segundo o crítico, porque vigora um espírito de Fla-Flu, de ame-ou-odeie. "Não há uma visão crítica da obra de Niemeyer porque os comentadores se dividem entre os deslumbrados, que adoram tudo, e os detratores, que odeiam tudo. É tudo muito emocional."


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