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Fla-flu crítico
Arquiteto viveu no ostracismo dos anos 1980 a meados dos 90, quando o Guggenheim de Bilbao, de Frank Gehry, resgatou seu valor
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
E
u não vou. Se ele quiser, que venha aqui.
É Oscar Niemeyer
quem fala.
Sua filha Anna tenta
demovê-lo, explica que não é
um compromisso qualquer.
É o presidente, papai. Você
precisa ir.
Niemeyer segue com a mesma opinião. Não vê razões para
deixar a rotina do seu escritório para receber uma medalha.
Quem conhece Niemeyer sabe
que ele odeia esse tipo de bajulação. "Uma babaquice" é o seu
xingamento predileto a esse tipo de coisa.
Se ele acha importante, que
venha ao meu escritório, responde o arquiteto.
Niemeyer está pouco se lixando para o simbolismo da cerimônia. Ele receberia a Ordem
do Mérito Cultural no Palácio
Capanema, um dos marcos da
arquitetura moderna brasileira, que ele projetou com Lucio
Costa, Affonso Reidy, Carlos
Leão e Le Corbusier, entre outros, nos anos 1930.
Não tem jeito. Niemeyer não
vai. O presidente Lula tem de ir
ao seu escritório. A cerimônia
ocorreu no dia 29 de novembro
e durou 20 minutos.
Niemeyer gosta de Lula. Comunista histórico, viu com entusiasmo a chegada de um operário à Presidência. A aproximação de Lula com Hugo Chávez só fez aumentar a simpatia
do arquiteto pelo presidente.
Há pelos menos três hipóteses para a recusa de Niemeyer a
aparecer no Palácio Capanema
para receber uma medalha do
presidente. A mais óbvia é a licença que um senhor de 99
anos adquire para recusar esse
tipo de chatice. Kadu Niemeyer, neto do arquiteto, explica a
recusa por aí: "Dr. Oscar não
tem bronca nenhuma do Lula.
Ele não foi por cansaço, por
preguiça de sair".
Cansaço e protesto
Há amigos do arquiteto que
vêem na recusa um misto de
cansaço com um protesto discreto. Niemeyer, segundo esses
amigos, não perdoa um discurso que Lula fez há um ano, no
qual diz que ser de esquerda é
um pecadilho da juventude.
"Eu acho que é a evolução da
espécie humana: quem é mais
de direita vai ficando mais de
esquerda, quem é mais de esquerda vai ficando social-democrata. Não tem outro jeito.
Se você conhecer uma pessoa
muito idosa esquerdista, é porque ela está com problema. Se
você conhecer uma pessoa
muito nova de direita, é porque
também está com problema."
Niemeyer está às vésperas
dos cem anos, continua comunista e não tem problema nenhum, salvo os naturais da idade. Ele não foi à entrega da medalha porque não quer perder
tempo com "babaquices".
Niemeyer parece ter olhos só
para o seu trabalho, os amigos e
a mulher. Esse foco preciso talvez explique um dos maiores
paradoxos do arquiteto: ele fez
alguns dos seus melhores trabalhos depois dos 80 anos,
quando os artistas ou se afundam na redundância ou se tornam estéreis.
"Que arquiteto brasileiro fez
nos últimos 20 anos trabalhos
com a qualidade e a invenção
do museu de Niterói [MAC] e
do auditório do Ibirapuera?",
pergunta o diplomata e crítico
de arquitetura André Corrêa do
Lago, autor do livro "Oscar Niemeyer - Uma Arquitetura da
Sedução" (ed. Bei).
O próprio crítico dá a resposta: nenhum.
"O auditório do Ibirapuera
vai ficar como uma das grandes
obras do minimalismo", diz
Corrêa do Lago. "É um edifício
contemporâneo, de 2003. O
que é chocante é que o auditório foi feito quando o Niemeyer
tinha 97 anos".
A guinada
Niemeyer tem uma trajetória
mais ou menos constante desde que começou como estagiário no escritório de Lucio Costa, no início dos anos 30. Sua
obra segue uma lógica própria,
centrada na liberdade do concreto preconizada pelo modernismo, desde a Pampulha. A
percepção sobre seu trabalho é
que sofreu mudanças, segundo
Corrêa do Lago.
Por uma "feliz coincidência"
da história, seus trabalhos dos
últimos 15, 20 anos encontraram um cenário propício para a
arquitetura moderna, de acordo com o crítico.
Dos anos 80 aos 90 do século
passado, Niemeyer passou por
um período em que sua obra tinha quase nenhuma repercussão internacional -foram os
anos da voga pós-moderna, do
apelo decorativo, do culto a Las
Vegas, quando os modernistas
eram tratados como uma aberração histórica.
A inauguração, em 1997, da
filial do museu Guggenheim,
em Bilbao, projetada pelo norte-americano Frank Gehry, é o
principal marco da retomada
da arquitetura moderna, segundo o crítico.
Para quem não acompanha a
crítica de arquitetura internacional, Corrêa do Lago dá um
exemplo simples para perceber
essa mudança da crítica internacional. O Memorial da América Latina, projeto de Niemeyer de 1987, foi ignorado por
praticamente todas as revistas
internacionais de arquitetura.
Já com o MAC de Niterói, inaugurado nove anos depois, o arquiteto foi tratado como um gênio modernista que atingira
seu ápice.
"Se Niemeyer tivesse morrido com 80 anos, ele teria, na visão da crítica internacional, um
papel menor na arquitetura
mundial. Ninguém falava sobre
ele nos anos 80. A crítica o tratava com uma profunda indiferença. O interessante é que
nunca deu bola para as críticas.
Ele continuou a fazer o mesmo
tipo de arquitetura mesmo debaixo das críticas mais pesadas
ou, o que é pior, diante da indiferença mais pesada", afirma
Corrêa do Lago.
No Brasil, a avaliação da obra
do arquiteto é ainda mais periclitante, segundo o crítico, porque vigora um espírito de Fla-Flu, de ame-ou-odeie. "Não há
uma visão crítica da obra de
Niemeyer porque os comentadores se dividem entre os deslumbrados, que adoram tudo, e
os detratores, que odeiam tudo.
É tudo muito emocional."
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