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As formas de um país
A Catedral de Brasília e o MAC-Niterói são deslumbrantes,
mas fracassam ao não interagir com o meio em que estão
TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
V
iver tanto tempo,
durante tanto
tempo gerar e implantar a forma.
Produzir durante
tanto tempo, quer dizer. É a
condição para deixar marca.
Não condição suficiente,
nem necessária. Apenas, não
raro, decisiva. Nenhuma outra idéia cultural no Brasil
moderno e contemporâneo
teve tanta presença imaginária e real como Niemeyer. E
isso criou a circunstância em
que pôde se tornar uma figura mitopoética.
De fato e de direito -ainda
que seu meio tenha sido freqüentemente a força. A força
do Estado por trás dele. A vida de duas gerações confortavelmente instaladas no tempo -e de três gerações nele
apertadas- se passou sob o
império da forma de Niemeyer. Conteúdos precisam de
formas para existir. Niemeyer proveu essa forma.
Sozinho, transformou-se
em alegoria de uma cultura.
Apegadamente ligado a uma
idéia do século 19, o comunismo, produziu para o liberalismo (supondo que JK tenha
sido um liberal) e o fascismo
do século 20 e continua servindo de continente para a
geléia ideológica que se esparrama pelo 21.
Moldou Pampulha e Brasília na pele de um arquiteto de
esquerda -da esquerda clássica, de manifestos- e continuou produzindo para a ditadura de direita instalada no
país e em sua cidade em 1964.
Conteúdos análogos aceitam ou requerem uma mesma forma. Uma mesma forma canaliza conteúdos supostamente opostos e revela
a igualdade real entre eles. A
forma de Niemeyer não fez a
dialética entre conteúdos
opostos, esse conflito do qual
um terceiro emerge: apenas
revelou a proximidade entre
simétricos de sinais opostos,
porém de leito comum.
Não é irrelevante que seu
cliente usual tenha sido o Estado. Um Estado cuja carreira é aqui ininterruptamente
autoritária e que só de vez em
quando se entregou a soluços
liberais, libertários ou, simplesmente, indicativos de liberdade.
Um Estado fraco e, no entanto, terrivelmente forte.
Labirinto
O mitopoema Niemeyer
não teria existido sem o Estado. Sua arquitetura foi largamente de Estado assim como
Brasília é uma cidade do Estado, uma cidade-Estado.
Brasília, em seus traços
centrais, fracassou: os semáforos que não deveriam existir agora estão lá, aquilo que
deveria fluir se vê represado
nos bolsões de estacionamento, a cidade que deveria ser
planejada escapa sem controle por toda parte e tudo vira
um armadilha para o indivíduo, o ser humano. Esse labirinto estava embutido no
projeto, era sistêmico. Poderia ter sido previsto.
A arquitetura de Niemeyer
fracassou com isso?
Não, ela é, como ele, mitopoética: é um mito que se
construiu ("poiesis") e que
mantém sua função poética
quando se olha para a peça
isolada e se esquece o sistema
a que pertence. Nisso ela é essencialmente mitopoética,
nisso é uma analogia perfeita
da cultura do país.
O Palácio dos Arcos é um
deslumbramento, a catedral
de Brasília é um espetáculo, o
MAC de Niterói é uma obra
de arte, o Teatro do Ibirapuera é um monumento. Se funcionam é outra questão, irrelevante para a função poética.
Contradições
Numa cerimônia pública
em sua homenagem há mais
de dez anos, quando se imaginava que estivesse no fim da
vida, Niemeyer declarou-se
"deprimido frente a esses trabalhos que vocês vão examinar". Reconheceu ter construído para o Estado, trabalhado para os ricos e poderosos e nunca ter feito nada "para este mundo de pobres que
constitui a maior parte de
meus irmãos".
Arquitetura da contradição, portanto. Outra vez.
Contradição ideológica, contradição social, contradição
pessoal.
Outra vez, uma analogia da
cultura do país. Contradição
estilística, também: se foi banalmente modernista em
muitos blocos-padrão, como
o edifício da Bienal de SP (pelo menos por fora), foi sensivelmente pós-moderno em
tanta outra coisa.
Fazendo essa autocrítica,
em que se diz frustrado, Niemeyer quase repete Horowitz
perguntando a todo mundo,
no final da vida, se havia tocado bem. "Toquei bem, toquei
bem?", perguntava. Todo
mundo dizia que sim. Perguntando a mesma coisa para
sua mulher, ela, olhando para
o lado, respondeu: "Não faz
diferença".
Não faz diferença, Niemeyer. Niemeyer fez o que fez,
mas fez mais do que fez: fez
um romance nacional, fez
uma novela nacional. Niemeyer é um borgesiano personagem de Glauber, é a vindicação da estética em transe do
cineasta baiano. Isso é mitopoiesis.
Há algumas mitopoéticas
que se revelam inescapáveis,
instituintes. A arquitetura de
Niemeyer foi instituinte de
todo um vasto imaginário,
com tudo que os imaginários
têm de obsessão, perdição e
salvação. Mesmo quando se
tornam inconscientes e adormecem no sono das gerações
mais jovens.
TEIXEIRA COELHO é curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e autor de
"Niemeyer - Um Romance" (Iluminuras).
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