São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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Copan mon amour

Entre curvas de concreto, aço e vidro, escritor recria o dia-a-dia agitado de um dos edifícios mais famosos do arquiteto

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

C hove sobre o Copan, chove muito. Agora faz sol. Calor. Agora chove outra vez. Faz frio. O sol volta, a chuva volta, o calor volta, o frio volta e esse vaivém é parte do plano secreto da natureza que pretende fazer nevar sobre o Copan. A natureza é ardilosa.
Nesse ritmo, logo, logo vai nevar sobre o Copan. Gaúchos, mineiros, cariocas, goianos, pernambucanos, paraenses. Faça chuva ou sol, o país inteiro cabe no Copan. Na quitinete do bloco B cabe o advogado mato-grossense que se separou da mulher e veio para São Paulo, deixando para trás também os dois filhos.
"Todo recomeço é difícil. Não tenho família aqui, mas não dava pra continuar em Cuiabá. As opções eram Rio ou São Paulo. O espaço? Dá pro gasto. É bom. Mas não quero morar aqui pra sempre. Por enquanto vale a pena, o aluguel é baixo. Mas a vizinhança é barra-pesada." A balconista de rosto amassado -mas bonito-, da lanchonete que fica perto da portaria do bloco D, mora longe.
Trem e metrô na ida e na volta, todo dia. O estudante de arquitetura para quem ela entregou o suco de laranja e o bauru conta que roubaram seu carro no estacionamento do edifício. "E as câmeras?", ela quer saber. "Não pegaram nada. A única apontada para o carro estava quebrada."
A movimentação vai ficando mais intensa no térreo. Os restaurantes estão mais animados. O porteiro do bloco B aponta: "Lá vai o senhor síndico". Saindo do elevador, alguém passa rapidinho e desaparece na multidão. Parecia o Plínio Marcos. Mas não era. Estava bem vestido demais pra ser. O porteiro gosta do síndico. "Ele é muito honesto e trabalhador. Sua administração melhorou muito as coisas por aqui."
A amiga do porteiro comenta qualquer coisa, e pelas primeiras palavras percebe-se que ela é baiana da gema. De Mangue Seco, no norte da Bahia. A multidão apressada que freqüenta o Copan não parece moderna nem pós-moderna. Parece sem tempo, eterna. Essa multidão quase sempre assusta. Já a curva de concreto, aço e vidro, essa curva assusta sempre. E comove. E encanta. Curva triste. Curva miserável. Curva sedutora.
Admirando São Paulo do terraço do edifício, o garotão segura a garotona pela cintura, os dois apoiados na grade. Ela pede: "Tira uma foto". Ele se desculpa: "Não dá, a memória tá cheia". A dois metros, mais garotões e garotonas de olho na cidade, de ouvido na batida que vaza dos fones. Vêm de longe, da periferia. Vêm para ver as pessoas do alto: as que estão no topo ou quase lá (logo ali dois garotões de terno comem sanduíche enquanto conversam) e as que podem ser vistas de cima pra baixo. Depois do sanduíche, o baseado básico antes de voltar ao escritório.
Os turistas mexicanos dão risada de qualquer coisa no céu. O casal argentino caminha para o elevador. As paredes não chegam a gritar, mas murmuram o tempo todo. Quando o elevador pára, a fala do edifício faz eco, monocórdia. Só as crianças, na cabine, tentam responder a essa fala que escorre pelo poço do elevador.
O médico de voz rouca, do apartamento do bloco A, enquanto espera seu café -"o melhor café da cidade é este aqui"-, conta o susto que levou semanas atrás no terraço do Copan. O médico também mexe com teatro, sua voz rouca é muito dramática. A atriz e o fotógrafo, amigos do médico, quiseram conhecer o terraço, admirar a cidade, tirar umas fotos, essas coisas. "Só que o cara começou a tirar foto da mulher, e a mulher foi se empolgando, se empolgando, e tirou também a roupa. O segurança do terraço ficou pasmado, sem jeito, abobalhado. Quase que ele cai lá de cima."

Briga
Dois sujeitos de comédia americana da década de 40, um alto e magro, o outro baixo e gordo, brigam em frente à agência de turismo. Gesticulam muito, possuídos pela fúria. O sotaque é carregado. Na verdade, os sotaques: alemão e italiano. Sem legenda. Então, o silêncio: o Copan está pensando.
Na calçada, o jornaleiro e o taxista tiram sarro da cara do porteiro que está indo para casa. Futebol. São adversários, sem ser inimigos. "O pai-de-santo, hein?", o jornaleiro debocha. "Nem com mandinga braba", o taxista ri. "Pelo menos a gente escapou do rebaixamento", o outro se defende. Na calçada, nas lojas, na recepção, nos elevadores, nos corredores, nos apartamentos, todo mundo conversa, comenta, tira sarro, cochicha. Mas o Copan não conversa com o edifício Itália. Nem com o Hilton.
Nem com os outros edifícios vizinhos. O Copan conversa silenciosamente apenas com as pessoas que o atravessam, que trabalham nele, que o habitam, que passam ao largo. Essas pessoas não sabem que são veículos das ruminações do Copan. Ele sussurra no ouvido delas, e elas vão em frente, conversando entre si, espalhando as palavras. Essas pessoas vão para a praça da República, encontram as pessoas que estão vindo do Itália, do Hilton e de outros edifícios, as palavras se misturam. Os edifícios conversam por meio dos homens.
Agora a garoa engrossa, amolecendo essa conversa. Chove sobre o Copan, chove muito. Agora faz sol. Calor. Agora chove outra vez. Faz frio.
Não há como impedir: um dia vai nevar sobre o Copan.


NELSON DE OLIVEIRA é escritor, autor de "O Filho do Crucificado" (Ateliê).


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