|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+(s)ociedade
Civilização do risco
Brasil precisa abrir mão da tradição elitista de construir espaços sociais sem respeitar a natureza
JOSÉ AUGUSTO PÁDUA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ao ver as imagens recentes de encostas
desabando, pontes
caindo e águas invadindo o interior de
tantas casas e vidas, não pude
deixar de pensar, até por ranço
de historiador, que cenas semelhantes vêm se repetindo
desde os primórdios do longo e
difícil processo de construção
do que hoje chamamos de território brasileiro.
Basta lembrar que São Vicente [no litoral paulista], a
primeira povoação oficialmente criada na América portuguesa, teve seu núcleo urbano destruído por uma combinação de
tempestades e ressacas em
1541. O mar tragou a Casa do
Conselho, a fortaleza e a igreja
matriz, edificadas sobre solos arenosos.
Antes disso, o porto da ilha
de São Vicente já sofria com o
assoreamento provocado pelas
enxurradas que desciam as encostas parcialmente desmatadas pelas primeiras plantações.
Em uma carta de 1560, escrita naquela região, o padre José
de Anchieta descreveu uma
tempestade que "abalou as casas, arrebatou os telhados e derribou as matas".
Paradoxo da modernidade
É claro que não se pode estabelecer uma sequência simples
entre esse passado longínquo e
as tragédias que ocorrem diante dos nossos olhos. Mas a história é sempre um jogo de continuidades e descontinuidades.
O contexto atual é muito diferente em termos de tamanho
dos assentamentos e de complexidade dos meios tecnológicos. O litoral brasileiro está hoje inserido, mesmo que de forma desigual, no que Patrick Lagadec [diretor de pesquisas na
Escola Politécnica de Paris, na
França] chamou de "civilização do risco". Um paradoxo da modernidade.
Em certos aspectos, o mundo
urbano-industrial fornece mais
segurança do que no passado.
Em outros, ele é incomparavelmente mais arriscado.
Sua densidade, suas escalas e
sua alta dependência de energia são também as causas da
sua fragilidade. Foi significativo o temor de que os desabamentos inviabilizassem o plano
de evacuação da usina nuclear de Angra [dos Reis]...
No século 16, no entanto, alguns elementos já estavam aqui
presentes: as encostas, as matas e os aguaceiros tropicais.
E também a dificuldade humana em reconhecer que nossa
vida é, de fato, um jogo permanente com forças naturais que
não criamos, e cujos movimentos não dependem do nosso arbítrio. Hoje, sabemos que a
Terra é um planeta antigo, poderoso e muito diversificado.
Sua existência se funda em
ciclos biogeoquímicos que movimentam fluxos de matéria e
energia muito superiores aos
que nossa tecnologia é capaz de produzir.
Medidas urgentes
Em cada região existem realidades específicas com as quais
interagir. Daí o tema fundamental da "localização" (que
ganha mais importância no mundo da "globalização").
É preciso superar a tradição
arrogante de construir espaços
sociais sem atenção à realidade
natural através da qual existimos. A sustentabilidade consciente requer que as sociedades
se territorializem de maneira ecologicamente inteligente.
Algo que, por certo, não é nada fácil, ainda mais no contexto
de sociedades abertas e dinâmicas, que conseguem burlar
cotidianamente as leis estabelecidas para ordenar o uso dos solos.
A desocupação das áreas de
risco, porém, não pode mais ser adiada.
As florestas representam a
melhor proteção das encostas,
e sem elas o desastre seria incomensurável. É preciso que a sociedade defenda o Código Florestal das forças políticas retrógradas que o atacam no Congresso Nacional.
As áreas de preservação permanente e de reserva legal, determinadas pelo código, são essenciais para estimular um modelo de desenvolvimento cuidadoso e tecnologicamente intensivo (superando a velha tradição de crescimento horizontal e devastador).
Em regiões de forte densidade urbana, especialmente, as
áreas de preservação permanente (vegetação que protege
os recursos hídricos, a estabilidade geológica etc.) devem ser
consideradas um pressuposto da segurança coletiva.
Aqui é preciso levar em conta
um problema que também se
observa na Amazônia. As florestas parcialmente exploradas, mesmo por um número limitado de atividades, perdem
grande parte da sua capacidade
sistêmica de estabilizar solos e
reter umidade. As áreas de preservação permanente, portanto, necessitam ser respeitadas
na sua totalidade.
As intervenções de engenharia geotécnica, por outro lado,
precisam ser democráticas, suplantando a prática elitista de
concentrá-las nas áreas habitadas pelos mais ricos.
A existência de "zonas de sacrifício", onde se considere
normal que populações pobres
convivam com espaços degradados e de grande risco, dotados de baixíssimo investimento
público, constitui uma injustiça ambiental inaceitável no
contexto de uma ordem verdadeiramente republicana.
A adoção de boas políticas e
práticas, diante dos problemas
específicos que estão sendo tratados aqui, pode ser vista como
um aprendizado coletivo para o
futuro. A tendência geral é que
nossa vida no planeta se torne
cada vez mais difícil nas próximas décadas, com o avanço das
mudanças climáticas.
É bom começar a tratar do assunto com a maior seriedade.
Se não aprendermos a enfrentar problemas climáticos com
os quais convivemos há séculos, como agiremos diante dos
riscos bem maiores que se delineiam no horizonte?
JOSÉ AUGUSTO PÁDUA é professor de história
na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Um Sopro de Destruição - Pensamento
Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista" (ed. Zahar), entre outros livros.
Texto Anterior: Filmoteca Básica: Berlin Alexanderplatz Próximo Texto: Cidade viva Índice
|