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+(s)ociedade
Cidade viva
Devastada pelas chuvas, São Luiz do Paraitinga tem sido capaz de renascer das cinzas periodicamente
JAIME DE ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1931, no primeiro
romance do jovem escritor comunista Jorge Amado, o Brasil começou a chamar-se
"O País do Carnaval". O regime
autoritário e corporativista do
Estado Novo confirmou o nome, invertendo-lhe o sentido
contestatário, e cristalizou a
imagem festiva do país em que nascemos.
Somos vistos -e nos mostramos- como um povo singularmente capaz de transformar as
alegrias e tristezas da vida em
muitas e magníficas festas, entre as quais se destacam a comemoração do Ano-Novo e o Carnaval.
Essas duas festas ocorrem na
época chuvosa do ano; e nossa
representação de povo festeiro
e feliz precisa enfrentar a crueza das tragédias que se abatem
a cada Réveillon, em cada Carnaval, sobre alguns de nós.
Estamos habituados a uma alternância que parece normal
nesta época: pessoas traumatizadas procurando mortos sob
escombros, e pessoas empolgadas vivendo a festa.
Mais uma vez, as mortes
anunciadas comparecem, explicitando a costura de morte e
de vida, de alegrias e tristezas,
sem a qual nossa existência perderia o sentido.
Não somos feitos apenas de
morte ou de vida, e sem a experiência da dor não haveria lugar para a felicidade. É na intensidade e contiguidade dos
nossos extremos aparentemente tão opostos que podemos reconhecer-nos melhor.
A dupla tragédia de Angra
dos Reis inflacionou as tenebrosas estatísticas deste ano,
obrigando-nos a lembrar que já
houve outras ainda mais terríveis e que outras virão. Especialistas explicam as circunstâncias atmosféricas e climáticas, as razões da precariedade
das casas, os porquês da irregularidade na vazão dos rios, mas
nada disso responde ao que
queríamos, e vamos querer
sempre: aquelas pessoas não
deviam ter morrido desta forma. Os seus parentes e amigos
não deviam sofrer justamente agora, como estão.
Mesmo para quem já está
quase acostumado a ver as metrópoles e suas imensas periferias constantemente atingidas
pelo transbordamento dos rios
que as recortam, a visão da pequena São Luiz tomada quase
por inteiro pelas águas barrentas do Paraitinga surpreendeu.
Não havia tragédias individuais a lamentar, e não havia
mais festa alguma insistindo
em fazer-se ver em toda a redondeza. As águas do rio interromperam o fluxo usual do
tempo e dissolveram as coordenadas sociais do espaço.
As ondas provocadas pela
queda da igreja matriz agravaram a sensação de perda irreversível. Suspensas todas as rotinas, a população de São Luiz
do Paraitinga concentrou-se
nos valores e práticas elementares da sobrevivência e da solidariedade.
Nas cidades vizinhas surgiram iniciativas imediatas de
apoio. Quando catástrofes naturais suprimem a impressão
coletiva de segurança e normalidade, os sobreviventes adotam comportamentos altamente expressivos no resgate e na solidariedade às vítimas.
A resposta da sociedade ao
espetáculo natural é igualmente espetacular. Os sentimentos
e crenças se manifestam com o
máximo de espontaneidade e,
ao mesmo tempo, de teatralidade consciente, pois sobreviver implica reconstruir a teia
de significados e valores rasgada pelas forças da natureza.
As águas baixaram e veio a
estranha sensação de voltar à
normalidade no caos, como se
a cidade tivesse sofrido um bombardeio.
Tanta coisa por reconstruir,
e nota-se a grande inquietude
acerca do que foi perdido: não
só as marcas visíveis da paisagem urbana, mas até as fotos e
os papéis de arquivo onde se
ancoravam as memórias mais
íntimas das famílias e dos indivíduos -o que será disso tudo?
São Luiz do Paraitinga tem
um rico patrimônio histórico e
cultural, porque tem sido capaz
de renascer periodicamente
das cinzas sem perder sua identidade.
A imagem dos jovens das
equipes de rafting cuidando de
salvar pessoas, e preocupando-se com a preservação da memória do compositor Elpídio
dos Santos (1909-70), se contrapõe àquela de "cidades mortas" de Monteiro Lobato.
JAIME DE ALMEIDA é historiador e professor
na Universidade de Brasília. Em sua sua tese de
doutorado, estudou as festas populares em São
Luiz do Paraitinga (SP).
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