São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 2010

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+(s)ociedade

Cidade viva

Devastada pelas chuvas, São Luiz do Paraitinga tem sido capaz de renascer das cinzas periodicamente

JAIME DE ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1931, no primeiro romance do jovem escritor comunista Jorge Amado, o Brasil começou a chamar-se "O País do Carnaval". O regime autoritário e corporativista do Estado Novo confirmou o nome, invertendo-lhe o sentido contestatário, e cristalizou a imagem festiva do país em que nascemos.
Somos vistos -e nos mostramos- como um povo singularmente capaz de transformar as alegrias e tristezas da vida em muitas e magníficas festas, entre as quais se destacam a comemoração do Ano-Novo e o Carnaval.
Essas duas festas ocorrem na época chuvosa do ano; e nossa representação de povo festeiro e feliz precisa enfrentar a crueza das tragédias que se abatem a cada Réveillon, em cada Carnaval, sobre alguns de nós.
Estamos habituados a uma alternância que parece normal nesta época: pessoas traumatizadas procurando mortos sob escombros, e pessoas empolgadas vivendo a festa.
Mais uma vez, as mortes anunciadas comparecem, explicitando a costura de morte e de vida, de alegrias e tristezas, sem a qual nossa existência perderia o sentido.
Não somos feitos apenas de morte ou de vida, e sem a experiência da dor não haveria lugar para a felicidade. É na intensidade e contiguidade dos nossos extremos aparentemente tão opostos que podemos reconhecer-nos melhor.
A dupla tragédia de Angra dos Reis inflacionou as tenebrosas estatísticas deste ano, obrigando-nos a lembrar que já houve outras ainda mais terríveis e que outras virão. Especialistas explicam as circunstâncias atmosféricas e climáticas, as razões da precariedade das casas, os porquês da irregularidade na vazão dos rios, mas nada disso responde ao que queríamos, e vamos querer sempre: aquelas pessoas não deviam ter morrido desta forma. Os seus parentes e amigos não deviam sofrer justamente agora, como estão.
Mesmo para quem já está quase acostumado a ver as metrópoles e suas imensas periferias constantemente atingidas pelo transbordamento dos rios que as recortam, a visão da pequena São Luiz tomada quase por inteiro pelas águas barrentas do Paraitinga surpreendeu.
Não havia tragédias individuais a lamentar, e não havia mais festa alguma insistindo em fazer-se ver em toda a redondeza. As águas do rio interromperam o fluxo usual do tempo e dissolveram as coordenadas sociais do espaço.
As ondas provocadas pela queda da igreja matriz agravaram a sensação de perda irreversível. Suspensas todas as rotinas, a população de São Luiz do Paraitinga concentrou-se nos valores e práticas elementares da sobrevivência e da solidariedade.
Nas cidades vizinhas surgiram iniciativas imediatas de apoio. Quando catástrofes naturais suprimem a impressão coletiva de segurança e normalidade, os sobreviventes adotam comportamentos altamente expressivos no resgate e na solidariedade às vítimas.
A resposta da sociedade ao espetáculo natural é igualmente espetacular. Os sentimentos e crenças se manifestam com o máximo de espontaneidade e, ao mesmo tempo, de teatralidade consciente, pois sobreviver implica reconstruir a teia de significados e valores rasgada pelas forças da natureza.
As águas baixaram e veio a estranha sensação de voltar à normalidade no caos, como se a cidade tivesse sofrido um bombardeio.
Tanta coisa por reconstruir, e nota-se a grande inquietude acerca do que foi perdido: não só as marcas visíveis da paisagem urbana, mas até as fotos e os papéis de arquivo onde se ancoravam as memórias mais íntimas das famílias e dos indivíduos -o que será disso tudo?
São Luiz do Paraitinga tem um rico patrimônio histórico e cultural, porque tem sido capaz de renascer periodicamente das cinzas sem perder sua identidade.
A imagem dos jovens das equipes de rafting cuidando de salvar pessoas, e preocupando-se com a preservação da memória do compositor Elpídio dos Santos (1909-70), se contrapõe àquela de "cidades mortas" de Monteiro Lobato.


JAIME DE ALMEIDA é historiador e professor na Universidade de Brasília. Em sua sua tese de doutorado, estudou as festas populares em São Luiz do Paraitinga (SP).


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