São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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OZ PARA OE

"A literatura não é profecia"

Arad, 27/7/1998
Prezado Kenzaburo Oe,
Nossa troca de cartas me dá a impressão de que o conheço -como se tivéssemos nos encontrado em algum lugar, conversado e agora nos correspondêssemos não como estranhos, mas como dois amigos capazes de suportar vários silêncios e mesmo trocar um sorriso ou uma risada aparentemente fora de contexto. Gosto muito disso. Em sua segunda carta o senhor cita o profeta Amós (cujo nome meus pais me deram). Amós disse: "Portanto os prudentes manterão (ou deveriam manter) silêncio nessa época, pois é uma época maligna". Mas ele não ficou em silêncio.
Talvez não se considerasse prudente. Levantou a voz com veemência contra seu próprio povo, contra os inimigos de seu povo e contra outras nações. Ele possuía uma estranha mistura de fúria e compaixão.
A literatura, contar histórias, não é profecia. Um conto ou um romance é uma jornada que tanto o escritor como o leitor efetuam pelas regiões proibidas da vergonha e do embaraço. Enquanto escrevemos e lemos, calçamos os sapatos de pessoas estranhas, vestimos suas peles. Seus sapatos são muitas vezes incômodos, e sua pele repulsiva, mas quando terminamos o livro os estranhos deixaram de ser estranhos. O bom leitor dorme com todos os personagens do romance. (...)
Como é ser o senhor, um japonês de sua geração? Por que sua maior preocupação sobre Israel é sua capacidade nuclear? Seus livros, e obras de outros autores, ajudaram-me a tentar imaginar o seu trauma e de sua geração. O monstro do autoritarismo, o monstro de Hiroshima e Nagasaki, o monstro da completa solidão interior. Seus pais, que viviam num planeta diferente, e seu filho, que nasceu numa galáxia diferente. A longa e solitária jornada pelos vastos espaços entre seus pais, o senhor, seu filho, seu tempo.
O senhor tenta imaginar minha existência? Nasci de pais perseguidos, refugiados, sobreviventes. Cresci numa Jerusalém sitiada, cercado de árabes decididos não a modificar ou reeducar os judeus, mas a matar todos nós. Depois os próprios árabes se tornaram vítimas: na guerra de 1948 muitos palestinos árabes foram expulsos pelos israelenses, todos foram traídos e condenados ao sofrimento e à degradação pelos regimes extremistas dos países árabes vizinhos e pela arrogância míope dos governos israelenses. (...)
Como eu poderia argumentar, caro Kenzaburo Oe, com o povo de Hiroshima e de Nagasaki, sobre a necessidade de eliminar as armas nucleares? Só posso dizer que o Oriente Médio necessita de um acordo abrangente, que dê aos árabes palestinos um Estado, lares e empregos, e ao mesmo tempo ofereça a Israel uma sensação de segurança e ponha fim ao tradicional medo de expulsão e segregação dos judeus.
Precisamos romper o ciclo árabe-israelense de violência e contraviolência, dispersar o ódio, a desconfiança, a opressão, a injustiça, a provocação, a idéia de rejeição e de agressão. As armas convencionais, químicas e biológicas e as armas nucleares devem ser reduzidas e erradicadas por meio de um amplo acordo. Banir somente as armas nucleares e ignorar todos os demais artefatos de morte no Oriente Médio significaria simplesmente que os menos de 5 milhões de judeus israelenses ficariam à mercê dos mais de 200 milhões de árabes, apoiados por cerca de 1 bilhão de muçulmanos, alguns dos quais estão armados com enormes arsenais convencionais e apocalípticos, dos quais o nuclear é apenas um. Em resumo, lutar pela abolição da pena de morte não é suficiente para banir e destruir todas as amarras. Precisamos de um desarmamento regional.
Em seu comovente romance "Uma Questão Pessoal", o protagonista, Bird, hesita em falar sobre sofrimento com outras pessoas. "Como poderia discutir sua infelicidade com os outros? Jamais poderia compartilhá-la com o resto da humanidade." Mas isso, caro Kenzaburo Oe, é precisamente o que o senhor e eu e muitos escritores tentamos fazer sempre: compartilhar o incompartilhável com o resto da humanidade, esperando que afinal todos nós, mais ou menos, sejamos igualmente solitários, vulneráveis, envergonhados e, sim, engraçados em nosso sofrimento. Foi Tchekov quem nos ensinou a todos que "trágico" e "cômico" são apenas duas janelas diferentes que dão para a mesma paisagem atormentada.
Ao descobrirmos que somos todos mais ou menos imperfeitos, mais ou menos tolos, mais ou menos engraçados, também seremos capazes de sentir uma compaixão tragicômica uns pelos outros. Em vez de corar quando nossos segredos são revelados, seremos capazes de retribuir o sorriso gentil dos estranhos que descobriram que também mancam, gaguejam ou são vesgos. Isso talvez seja verdade não apenas em relação aos indivíduos, mas também em relação às nações, culturas e religiões. Uma vez que revelem reciprocamente suas imperfeições, suas vergonhas, seus passados, esse pequeno sorriso relativista poderá substituir a rígida formalidade.
A estranha aritmética da solidão é que um mais um não fazem duas solidões, mas, talvez, apenas meia. A dor de uma pessoa somada à de outra às vezes resulta em uma dor quase curada. Seu embaraço e minha vergonha juntas deixam de ser desprezíveis e vergonhosos. Num romance chamado "Para Conhecer uma Mulher" ("To Know a Woman"), de 1989, um de meus personagens diz: "Todos os nossos segredos são iguais". Mais tarde ele percebe que na verdade jamais saberemos se nossos segredos são ou não iguais, porque, ao serem comparados, deixam de ser segredos. No entanto, quando nós, como indivíduos ou como membros de nossas culturas, trocamos alguns segredos, surge aquele sorriso gentil, que é minha resposta à pergunta em sua segunda carta, caro Kenzaburo Oe: "Poderia haver lugar para sorrisos de tolerância ou para humor no silêncio recíproco gerado por nosso diálogo epistolar?".
Sorrio. Em silêncio.
Minha avó costumava dizer: "Quando você não conseguir mais chorar, comece a rir". Ela também dizia às vezes: "Ora, não estou silenciosa, apenas não estou falando agora".
Sua idéia da conferência é muito boa. Que ela ocorra em Jerusalém, berço de tantas fés e ponto focal para muitos fanáticos. Ou que ocorra em Hiroshima. Que escritores, poetas, pensadores e comediantes de diferentes culturas tentem "comparar seus segredos" e criem, senão a paz universal, pelo menos aquela espécie de sorriso. Eu gostaria de continuar nossa conversa, aqui, aí ou em qualquer lugar, a qualquer hora.
O senhor acrescentou "oração" à minha lista de significados de "superar nossa loucura". Sim, eu concordo. Para um judeu não-praticante como eu, oração significa: orar em tal silêncio e concentração interior que, por um instante, seja possível escutar e receber sua própria oração.

Seu,
com amizade a afeição,

Amós Oz


Copyright Amós Oz e Kenzaburo Oe 1998. A correspondência entre os escritores foi publicada originalmente no jornal "Asahi Shimbun" Tradução do japonês para o inglês de Hissaki Yamanuchi e, para o português, de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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