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OZ PARA OE
"A literatura não é profecia"
Arad, 27/7/1998
Prezado Kenzaburo Oe,
Nossa troca de cartas me dá a impressão de que o conheço -como se
tivéssemos nos encontrado em algum
lugar, conversado e agora nos correspondêssemos não como estranhos,
mas como dois amigos capazes de suportar vários silêncios e mesmo trocar
um sorriso ou uma risada aparentemente fora de contexto. Gosto muito
disso. Em sua segunda carta o senhor
cita o profeta Amós (cujo nome meus
pais me deram). Amós disse: "Portanto os prudentes manterão (ou deveriam manter) silêncio nessa época,
pois é uma época maligna". Mas ele
não ficou em silêncio.
Talvez não se considerasse prudente.
Levantou a voz com veemência contra
seu próprio povo, contra os inimigos
de seu povo e contra outras nações.
Ele possuía uma estranha mistura de
fúria e compaixão.
A literatura, contar histórias, não é
profecia. Um conto ou um romance é
uma jornada que tanto o escritor como o leitor efetuam pelas regiões proibidas da vergonha e do embaraço. Enquanto escrevemos e lemos, calçamos
os sapatos de pessoas estranhas, vestimos suas peles. Seus sapatos são muitas vezes incômodos, e sua pele repulsiva, mas quando terminamos o livro
os estranhos deixaram de ser estranhos. O bom leitor dorme com todos
os personagens do romance. (...)
Como é ser o senhor, um japonês de
sua geração? Por que sua maior preocupação sobre Israel é sua capacidade
nuclear? Seus livros, e obras de outros
autores, ajudaram-me a tentar imaginar o seu trauma e de sua geração. O
monstro do autoritarismo, o monstro
de Hiroshima e Nagasaki, o monstro
da completa solidão interior. Seus
pais, que viviam num planeta diferente, e seu filho, que nasceu numa galáxia diferente. A longa e solitária jornada pelos vastos espaços entre seus
pais, o senhor, seu filho, seu tempo.
O senhor tenta imaginar minha existência? Nasci de pais perseguidos, refugiados, sobreviventes. Cresci numa
Jerusalém sitiada, cercado de árabes
decididos não a modificar ou reeducar
os judeus, mas a matar todos nós. Depois os próprios árabes se tornaram
vítimas: na guerra de 1948 muitos palestinos árabes foram expulsos pelos
israelenses, todos foram traídos e condenados ao sofrimento e à degradação
pelos regimes extremistas dos países
árabes vizinhos e pela arrogância míope dos governos israelenses. (...)
Como eu poderia argumentar, caro
Kenzaburo Oe, com o povo de Hiroshima e de Nagasaki, sobre a necessidade de eliminar as armas nucleares? Só
posso dizer que o Oriente Médio necessita de um acordo abrangente, que
dê aos árabes palestinos um Estado,
lares e empregos, e ao mesmo tempo
ofereça a Israel uma sensação de segurança e ponha fim ao tradicional medo
de expulsão e segregação dos judeus.
Precisamos romper o ciclo árabe-israelense de violência e contraviolência, dispersar o ódio, a desconfiança, a
opressão, a injustiça, a provocação, a
idéia de rejeição e de agressão. As armas convencionais, químicas e biológicas e as armas nucleares devem ser
reduzidas e erradicadas por meio de
um amplo acordo. Banir somente as
armas nucleares e ignorar todos os demais artefatos de morte no Oriente
Médio significaria simplesmente que
os menos de 5 milhões de judeus israelenses ficariam à mercê dos mais de
200 milhões de árabes, apoiados por
cerca de 1 bilhão de muçulmanos, alguns dos quais estão armados com
enormes arsenais convencionais e
apocalípticos, dos quais o nuclear é
apenas um. Em resumo, lutar pela
abolição da pena de morte não é suficiente para banir e destruir todas as
amarras. Precisamos de um desarmamento regional.
Em seu comovente romance "Uma
Questão Pessoal", o protagonista,
Bird, hesita em falar sobre sofrimento
com outras pessoas. "Como poderia
discutir sua infelicidade com os outros? Jamais poderia compartilhá-la
com o resto da humanidade." Mas isso, caro Kenzaburo Oe, é precisamente o que o senhor e eu e muitos escritores tentamos fazer sempre: compartilhar o incompartilhável com o resto da
humanidade, esperando que afinal todos nós, mais ou menos, sejamos
igualmente solitários, vulneráveis, envergonhados e, sim, engraçados em
nosso sofrimento. Foi Tchekov quem
nos ensinou a todos que "trágico" e
"cômico" são apenas duas janelas diferentes que dão para a mesma paisagem atormentada.
Ao descobrirmos que somos todos
mais ou menos imperfeitos, mais ou
menos tolos, mais ou menos engraçados, também seremos capazes de sentir uma compaixão tragicômica uns
pelos outros. Em vez de corar quando
nossos segredos são revelados, seremos capazes de retribuir o sorriso
gentil dos estranhos que descobriram
que também mancam, gaguejam ou
são vesgos. Isso talvez seja verdade
não apenas em relação aos indivíduos,
mas também em relação às nações,
culturas e religiões. Uma vez que revelem reciprocamente suas imperfeições, suas vergonhas, seus passados,
esse pequeno sorriso relativista poderá substituir a rígida formalidade.
A estranha aritmética da solidão é
que um mais um não fazem duas solidões, mas, talvez, apenas meia. A dor
de uma pessoa somada à de outra às
vezes resulta em uma dor quase curada. Seu embaraço e minha vergonha
juntas deixam de ser desprezíveis e
vergonhosos. Num romance chamado
"Para Conhecer uma Mulher" ("To
Know a Woman"), de 1989, um de
meus personagens diz: "Todos os
nossos segredos são iguais". Mais tarde ele percebe que na verdade jamais
saberemos se nossos segredos são ou
não iguais, porque, ao serem comparados, deixam de ser segredos. No entanto, quando nós, como indivíduos
ou como membros de nossas culturas,
trocamos alguns segredos, surge
aquele sorriso gentil, que é minha resposta à pergunta em sua segunda carta, caro Kenzaburo Oe: "Poderia haver lugar para sorrisos de tolerância
ou para humor no silêncio recíproco
gerado por nosso diálogo epistolar?".
Sorrio. Em silêncio.
Minha avó costumava dizer:
"Quando você não conseguir mais
chorar, comece a rir". Ela também dizia às vezes: "Ora, não estou silenciosa, apenas não estou falando agora".
Sua idéia da conferência é muito
boa. Que ela ocorra em Jerusalém,
berço de tantas fés e ponto focal para
muitos fanáticos. Ou que ocorra em
Hiroshima. Que escritores, poetas,
pensadores e comediantes de diferentes culturas tentem "comparar seus
segredos" e criem, senão a paz universal, pelo menos aquela espécie de
sorriso. Eu gostaria de continuar nossa conversa, aqui, aí ou em qualquer
lugar, a qualquer hora.
O senhor acrescentou "oração" à
minha lista de significados de "superar nossa loucura". Sim, eu concordo.
Para um judeu não-praticante como
eu, oração significa: orar em tal silêncio e concentração interior que, por
um instante, seja possível escutar e receber sua própria oração.
Seu,
com amizade a afeição,
Amós Oz
Copyright Amós Oz e Kenzaburo Oe 1998. A correspondência entre os escritores foi publicada originalmente
no jornal "Asahi Shimbun"
Tradução do japonês para o inglês de Hissaki Yamanuchi e, para o português, de Luiz Roberto Mendes
Gonçalves.
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