São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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LIVROS
O escritor americano Philip Roth, que tem seu livro "Pastoral Americana" publicado agora no Brasil, escreve sobre como a política atuou em sua obra
Minha vida como americano

Reprodução
O escritor americano Philip Roth, autor de "Pastoral Americana"


PHILIP ROTH
especial para a Folha

Com meus três últimos livros, eu tentei retratar um pouco do impacto, sobre o americano comum, dos três acontecimentos históricos que marcaram mais profundamente minha própria vida americana. O primeiro coincidiu com o coração de minha infância. Eu tinha oito anos quando os japoneses bombardearam Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, e 12 quando os alemães se renderam, em 8 de maio de 1945, e os japoneses, em 14 de agosto de 1945; eu era um colegial altamente susceptível, numa época em que um país normal transformava-se, quase da noite para o dia, na mais poderosa das máquinas de guerra e o patriotismo tornava-se a religião de Estado a que se convertera toda a sociedade. A monstruosa provação infligida em praticamente todo o planeta pelas invasões e conquistas dos dois poderosos inimigos fez subitamente de nossa familiar terra natal a melhor esperança do mundo.
Entre 1942 e 1945, uma criança americana não apenas vivia em casa, na vizinhança e na escola; se fosse minimamente atenta e curiosa, ela vivia também dentro do etos de um drama trágico, que era global. O símbolo aterrador de sua natureza trágica era, para mim, a pequena bandeira sem enfeites, com uma estrela dourada, pendurada na janela da frente da casa em que um pai, um filho ou um marido tinha sido morto em ação. Havia várias dessas bandeiras nas janelas dos apartamentos ao longo de nossa rua em Newark, e não era nada fácil para a maioria das crianças passar diante dessas janelas a caminho da escola, em sua habitual leveza de espírito ginasial.
Em silêncio, eu imaginava como seria ter de entrar, na condição de membro da família atingida pelo luto, numa daquelas casas, como seria jantar entre lágrimas, ir deitar-se de maneira taciturna, acordar inacreditavelmente atrás da bandeira com a estrela dourada -e, quando escrevi "O Teatro de Sabbath", surpreendi-me a imaginar os Sabbath de Bradley Beach, Nova Jersey, a morte em ação, no Pacífico, de seu filho Morty, 20 anos de idade, e suas consequências devastadoras para a mãe, para o pai e, sobretudo, para quem idolatrava Morty Sabbath, seu irmão Mickey, que cresce e se torna a fonte dinâmica de muita turbulência.
Eu tinha 30 anos quando a Guerra do Vietnã começou a tomar forma no governo Kennedy e 40 quando ela finalmente terminou em fracasso no governo Nixon. Durante a maior parte desse período maluco eu vivi em Nova York e, assim, perdi pouco do ultraje e da selvageria, do assalto incansável à autoridade e à civilidade que a guerra fomentou entre muitos de seus oponentes.
Amigos que eu costumava visitar em Greenwich Village moravam em frente à residência inadvertidamente explodida por uma equipe de meteorologistas que, em segredo, montava bombas no porão. Eu conhecia a mãe e o pai de um dos sobreviventes da explosão, uma jovem responsável pelas munições que abandonou a casa em chamas e seus companheiros mortos e buscou esconderijo; alguns anos depois, ela acabou amargando longos anos na prisão por um assalto a mão armada, no qual seu bando de pretensos revolucionários, ao encenar um roubo, matou duas pessoas. A mulher com quem vivia era uma advogada que, junto com um grupo de quakers, aconselhava jovens a livrarem-se do recrutamento. Nos momentos em que ela deixava o grupo, eu sempre a acompanhava em manifestações públicas contra a guerra.
Em 1972, eu cheguei mesmo a começar um romance sobre uma família de Nova Jersey cuja filha adolescente explode a biblioteca da cidade para protestar contra a guerra. Mas não passei da página 70, pois, ao assistir todas as noites ao noticiário sobre a guerra, senti vontade de eu mesmo explodir alguma coisa. Gostasse ou não, eu estava aprendendo como funcionava a mente de um terrorista, mas, exatamente por causa disso, ainda não era capaz de imaginar o que se passava pela cabeça dos pais de um terrorista. Foi isso que tentei retratar, uns 20 anos depois, quando logrei distanciar-me o bastante para reiniciar meu romance -"Pastoral Americana"- sobre as baixas domésticas da Guerra do Vietnã.
Durante meus primeiros três anos de universidade, de 1950 a 1953, o Joe McCarthy Show fez sua carreira fulgurante no Senado dos Estados Unidos. Eu cresci numa família de democratas partidários do New Deal, socialistas à Norman Thomas, trotskistas e stalinistas, uma vasta gama de primos e tios envolvidos em perpétuas rusgas sobre política, sempre divergentes, mas que concordavam em uníssono sobre as implicações sinistras do macarthismo. Eu escrevi um longo poema "em verso livre" opondo-me ao macarthismo e o publiquei numa revista universitária da qual era o editor.
Um dos jovens assistentes de inglês tinha um aparelho de televisão e, durante os interrogatórios de McCarthy no Exército, nós dois corríamos a sua casa quando não tínhamos aulas para tentar pescar algo daquela lengalenga arrastada, como de um bêbado, do patriótico senador. Durante meu curso de pós-graduação no Oriente Médio, meus pais enviaram-me um envelope cheio de recortes dos jornais de Newark sobre três professores da cidade que haviam sido demitidos pelo Conselho de Educação por não responderem a perguntas sobre suas filiações políticas que lhes foram formuladas pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas. Um dos três réus estampados na capa do Newark News era meu professor do primeiro ano de colégio.
Quarenta e poucos anos depois, eu comecei a torcer e retorcer essa recordações da era macarthista, mesclando-as, trabalhando-as e unindo-as com as experiências mais vastas de minha vida, até chegar a "I Married a Communist" (Casei com um Comunista), um livro povoado, tal como a vida, de tolos, velhacos e almas boas, transfixados pelo momento político americano, mutilados tanto pelas armadilhas armadas pelo seu tempo quanto pela eterna tendência humana para a traição e a vingança.


Tradução de José Marcos Macedo.



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