São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2002

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+ entrevistas históricas

Cortar o ferro
Dobrar o ferro


Amilcar de Castro conta como descobriu, com quase 50 anos, o seu processo artístico e comenta suas relações com os membros do grupo neoconcreto


do enviado especial a Nova Lima (MG)

O ateliê de Amilcar de Castro em Nova Lima, nas imediações de Belo Horizonte, é revestido de vidro negro. São três andares, cada um com pé-direito de uns três metros. A estrutura do edifício é de aço enferrujado. De aço enferrujado são as peças pousadas no gramado em volta da construção e na estradinha de pedra que circunda o prédio. O ateliê, que fica num condomínio fechado, se abre para um morro de um verde uniforme, violado apenas uma vez por uma espatódea solitária que, como é verão, está carregada de flores vermelhas.
Amilcar, o construtivista, o neoconcreto, o herdeiro da escola de Ulm, da Bauhaus, o minimalista, o econômico, o escultor de traço preciso e objetivo, o arqueiro zen que vai direto ao coração da matéria, contempla o morro e suspira: "Bem que eu gostaria de pintar essa paisagem".
Como ele é mineiro, não dá para entender direito se está brincando. Amilcar prossegue: "Mas aí teria de usar outro nome. Meu nome completo é Amilcar Augusto Pereira de Castro. Poderia assinar a minha paisagem com o nome de Augusto Pereira. Aí, para quem perguntasse "quem foi que pintou essa porcaria dessa paisagem", seria fácil responder: "O Augusto Pereira'".
Parece ser uma piada, pois Amilcar ri bastante. Mas será mesmo? Em 1949 ele desenhou com lápis de cera uma paisagem chamada "Vista de Ouro Preto". A sobreposição de triângulos, retângulos e círculos da paisagem é bastante parecida com um papel que jaz sobre uma das mesas do estúdio: uma folha de papel com as formas geométricas de um esboço de Amilcar para uma escultura.
Os mais de 50 anos que separam "Vista de Ouro Preto" da mais recente escultura de Amilcar de Castro parecem descrever a trajetória de uma flecha: uma suave curva certeira rumo ao alvo distante. A trajetória existencial, no entanto, foi acidentada e dramática: o artista teve de descer aos infernos de si mesmo para descobrir quem era (advogado, diagramador, escultor, desenhista?) e qual a forma artística que melhor expressava a si mesmo e ao mundo.
Amilcar encontrou essa forma. Ela é de uma simplicidade enganosa, de uma densidade rara nas artes plásticas brasileiras. É tão forte que teve duas decorrências que, por si mesmas, valem por obras inteiras.
A primeira é a pintura do escultor, que a prefere chamar de desenho. Seus quadros são feitos com vassouras, que ele mergulha na tinta acrílica grossa e percorre a tela em branco. Usa só cores primárias e varia pouco os procedimentos. Amilcar pinta todos os dias. Pinta telas enormes em branco e preto que, tem certeza, jamais serão vendidas.
A segunda decorrência da forma tridimensional desenvolvida por Amilcar é o seu ofício de diagramador, hoje alçado à pedante nomenclatura de "diretor de arte". A função designa o profissional de imprensa que desenvolve a feição gráfica de um jornal ou revista. Amilcar fez nos anos 50 a reforma gráfica do "Jornal do Brasil". Ele abriu espaços em branco, hierarquizou as notícias, aumentou o tamanho de fotos, renovou a largura das colunas. Arejado, o jornal ficou contemporâneo, moderno: assemelhava-se à Brasília de Lucio Costa, a um prédio de Vilanova Artigas, a um jardim de Burle Marx. Como se sabe, o sonho modernista se esvaneceu e o "Jornal do Brasil" morreu. E no entanto o diagramador Amilcar de Castro está na ativa. Não há na imprensa projeto gráfico mais moderno que o do "Jornal de Resenhas" (publicado mensalmente pela Folha), que Amilcar concebeu e executa. No momento, ele prepara a nova feição gráfica da revista mensal "Sr. e Sra.". (MARIO SERGIO CONTI)

Que imagens guarda da infância?
Poucas. Meu pai era juiz e vivia mudando de cidade, no interior de Minas Gerais. Passávamos no máximo dois anos numa cidade. Quando fazia amizade, já estava na hora de mudar. Não tenho lembranças nem saudades de nenhum lugar, de nenhuma cidade. Talvez por isso tenha a minha família como grande referencial. A morte de minha mãe, quando eu tinha 12 anos, foi muito pesada. Eu era escrutinador do júri para meu pai: eu o acompanhava e tirava as bolinhas que sorteavam os jurados.
Estávamos em viagem quando recebemos um telegrama dizendo que minha mãe estava passando muito mal. Ela estava grávida, tivera o nenê, mas estava passando mal. Meu pai suspendeu tudo e voltamos. O bebê foi tirado a fórceps, que furou o útero dela. Foi um choque. Tenho poucas recordações visuais dela. Mas lembro que ela tinha sensibilidade artística: gostava de pintura e fazia aquarelas.
Quando começou a desenhar?
Na escola. Fazia capas de convites e de trabalhos. Era bom aluno. Gostava de matemática, de ciências.
Gostando de ciências e artes, por que estudou direito?
Desde menininho, desde que me entendo por gente, houve advogados e juristas em casa, conversando com meu pai, que escreveu vários livros sobre leis. Eu achava que não havia coisa mais fabulosa no mundo do que o direito. Por isso fiz concurso e estudei direito. Fui bom aluno: tinha gosto pela parte teórica e filosófica, pelo direito processual, achava aquilo bonito. Também achava bonitos a pintura e o desenho. Gostava de ver livros de arte. Queria entender como eram feitos os desenhos e pinturas. Tinha curiosidade em saber como se chegava à beleza. Quando estava no terceiro ano de direito, fui estudar com o Guignard, na Escola de Artes que ele criou em Belo Horizonte. Lá também estudei escultura figurativa com Franz Weissmann.


EU ESTAVA NO RIO, TINHA UNS 30 ANOS, DOIS FILHOS E NÃO HAVIA ENCONTRADO O MEU CAMINHO. EU QUERIA SENTIR, PENSAR E FAZER UMA COISA MINHA, QUE NÃO SABIA QUAL ERA. EU BEBIA MUITO.


Guignard era bom professor?
Ele não era de falar muito. Falava: "Pintar é assim" e pintava. Não ensinava nada de técnica e teoria, o que era ótimo. Teoria é um perigo: ela pode matar a arte. O sujeito passa a pintar para ilustrar a teoria.
Mas se o sujeito sabe, digamos, perspectiva, ele não pode pintar uma montanha melhor?
Não sei. Aí é que está o perigo. Ele pode pintar uma montanha mais bem feita, mas talvez menos bela. Não há nenhuma teoria -nenhum raciocínio- que alcance o que o sensível alcança. Nesse sentido, o Guignard foi um bom professor. Além do mais, ele me ensinou a pintar com lápis duro, o 6H, que sulca o papel e não permite correções. Riscou, está riscado. Assim, aprendi a usar o máximo de precisão e de sensibilidade. Tinha de pintar o sensível, mas o sensível certo, correto: o melhor golpe de espada é no coração, e ele deve ser feito sem um cálculo prévio.
Como era o professor Franz Weissmann?
Ele ensinava a modelar. Fiz bustos, mãos, pés, torsos. Lentamente fui passando para a escultura abstrata: fazia obras com arames, com gesso, trabalhando com barbantes. Weissmann era um bom sujeito, mas muito fechado, de convívio não muito fácil.
Nessa época, de que artistas gostava?
Em pintura, de Cézanne desde sempre. Em escultura, tinha os gregos como inatingíveis. Admirava o Aleijadinho. Tem um Cristo dele em Congonhas do Campo que acho bonito até hoje. Mas nunca me senti tentado a fazer algo parecido. Queria algo que estivesse mais próximo de mim. Gostava de Maillol. Achava ele melhor do que Rodin. Gostava de Arp, das suas grandes superfícies. Ele estava próximo de mim: era mais meu parente.
O sr. estudou filosofia?
Estudei, mas não na faculdade. Tínhamos um grupo de estudo. O cônsul do Peru em Belo Horizonte, Wagner Reyna, um sujeito muito culto, que falava grego e latim, era o líder do grupo. Ele havia sido aluno de Heidegger durante sete anos. Como o cônsul estava estudando a "Física", de Aristóteles, estudávamos juntos. Em cada encontro alguém levava o resumo de um capítulo de Aristóteles, e o discutíamos. Li Aristóteles e Heidegger por causa do cônsul. Pena que ele foi promovido e teve de sair de Belo Horizonte. Nosso estudo durou uns dois anos.
Como foi sua convivência com Volpi?
Eu ia a São Paulo e ficava na casa de uma tia, no Cambuci. Volpi morava em frente. Gostava demais dele. Fazia coisas figurativas. Eram muito bonitas. Ele não falava muito. Que me lembre, nunca conversamos sobre arte, teoria, crítica, essas coisas.
Por que não fez carreira em direito?
Assim que me formei, comecei a advogar. Na Vara de Família. E achei chato. Havia prazos, adiamentos, era tudo primário e precário demais. Reconheci que não tinha talento para o direito, que iria sofrer demais se continuasse. Infelizmente, não dava para continuar. Meu pai ficou triste. Mas, por mais que eu quisesse agradá-lo, não dava para continuar advogando. Durante um período também fui chefe de polícia de Belo Horizonte.
Como?
Fui chefe de gabinete de um juiz que foi nomeado chefe de polícia. Mas o presidente Dutra fez um decreto proibindo os juízes de exercer quaisquer cargos fora da magistratura. No mesmo decreto, ele dizia que os juízes afastados de seus cargos em razão do decreto seriam substituídos pelos chefes de gabinete. Fui chefe de polícia de Belo Horizonte durante uns três meses.
Foi um bom chefe de polícia?
Eu tinha pena de deixar as pessoas presas. Houve uma briga de prostitutas e foram presas umas 15. Mandei soltar todas.
Quando deixou de advogar, o que fez para ganhar a vida?
Eu tinha sido colega do Otto Lara Resende durante sete anos. Éramos amigos. Ele havia ido para o Rio e era diretor da revista "Manchete". O Otto me arrumou emprego de diagramador. Eu também tinha emprego de tesoureiro do Tribunal de Justiça em Belo Horizonte. Arrumei uma transferência para o Departamento do Café de Minas Gerais, no Rio, onde fui ser ficharista. Deixei de ser advogado e tesoureiro em Minas para ser ficharista no Rio. Fui diagramador da "Cigarra" e da "Manchete" antes de ir para o "Jornal do Brasil", em que fiz a reforma gráfica.
Essa mudança de vida foi dramática?
Foi chata. E preocupante, porque demorou. Eu estava no Rio, tinha uns 30 anos, dois filhos e não havia encontrado o meu caminho: sabia que não era o direito nem trabalhar em jornal. Eu queria sentir, pensar e fazer uma coisa minha, que não sabia qual era. Eu bebia muito. Todos os dias.
Chegou a ser alcoólatra?
Não sei. Dizem que ninguém se cura do alcoolismo, apenas deixa de beber. E hoje eu bebo socialmente. Antes, bebia todos os dias. Bebia tudo, mas mais pinga. Estou tentando, mas não consigo lembrar se bebia desde de manhã. Uma vez, cheguei de manhã a um bar e encontrei o Guignard e o Goeldi, que também bebiam. Eu falei que estava numa ressaca brava. "Isso não é nada", disse o Goeldi. "Ô, português, traz aqui uma dose dupla de Underberger". Tomei aquilo para curar a ressaca. Desceu de um jeito. Melhorei um pouco e continuei tomando cachaça com os dois... Teve uma hora em que tive uma crise nervosa muito grande, acho que deflagrada pela bebida. Fui internado, talvez uns quatro ou cinco meses, numa clínica na Tijuca. Tomei choques de insulina. Foi um período danado de chato. Tomava choques até passar a agonia. Parecia que ia morrer.
Parou de beber com o internamento?
Fiquei meio desadaptado de tudo. Saí da clínica com 96 quilos. A insulina tira o açúcar do corpo. Quando sai do choque, se você vê areia branca, tenta comer, pensando que é açúcar. Eu tomava um copo cheio de açúcar com um pouco de água, formando uma pasta. Passei a beber menos. Hoje não tenho mais a ansiedade de beber.
Qual o papel de Max Bill na sua arte?
Um papel importante. Vi as conferências e a exposição dele em 1950. Discordei das posições artísticas que ele representava, as da Escola de Ulm. Vi depois uma escultura dele que me impressionou muito: uma esfera de latão com o centro vazado. Fiz uma escultura em chapa de cobre meio baseada na de Max Bill: dividida em três partes e dobrada pelas diagonais, fechada em triângulos. Ela foi selecionada para a Bienal de São Paulo de 1953. Foi quando comecei a achar o meu caminho. Comecei a achar que podia fazer alguma coisa em escultura. Mas só em 1968, quando ganhei as bolsas para o exterior, o prêmio Guggenheim, tive certeza de que era escultor. Tinha quase 50 anos.
Hoje, mais de 30 anos depois, sabe o que quer expressar?
Achei o meu caminho naqueles anos: descobri o processo. E dele não me afastei mais: corto e dobro o ferro. Vim mudando, mas dentro daquele processo. Há um progresso sutil. Agora, por exemplo, venho tentando sair um pouco das formas clássicas, o quadrado, o círculo e o retângulo. Quero deixar as minhas esculturas mais soltas: nem mentalmente elas se referem a alguma coisa. Mas continuo cortando e dobrando o ferro.
Seu estágio nos EUA foi no auge da arte pop: ela o influenciou?
Não. Expus com o Lichtenstein, conversamos muito e ele me convidou a visitar o seu ateliê. Mas não fui. Não sei se queria contato com os americanos. Estava mais interessado na minha arte, nas minhas descobertas.
Que artistas admirava naquela época.
Calder. O Calder dos móbiles. E Edward Hopper. Gosto dele até hoje: não há artista que retrate tão bem a solidão. Achei Jackson Pollock fabuloso. Ele tem alegria, tem cor. Mark Rothko eu também achava fabuloso, exemplar.
Participou da elaboração do Manifesto Neoconcreto?
Não. Quem escreveu foi o Ferreira Gullar. Aderi ao movimento porque acreditava nas suas idéias. Achava um absurdo a arte sem sensibilidade. A razão deve vir depois do sensível. Primeiro veio a escultura grega, e só depois a filosofia.
O movimento neoconcreto funcionava organicamente?
Não. Era cada um no seu canto, fazendo as suas coisas. Mas a gente se telefonava. E se encontrava, às vezes na casa do Mario Pedrosa, às vezes na de Lygia Clark. Ou num botequim. O neoconcretismo nunca influenciou as minhas esculturas. Elas continuaram o seu caminho, antes e depois do movimento.


NÃO EXISTE UMA HISTÓRIA DAS ARTES PLÁSTICAS BRASILEIRAS; A NÃO LEVA A B, QUE NÃO LEVA A C. ISSO VEM DE PORTUGAL. QUE ARTISTA OU DESENHISTA HOUVE EM PORTUGAL? NUNCA HOUVE


Com quem se dava melhor no grupo neoconcreto?
Com o Ferreira Gullar. Achava ele sério, um sujeito direito, bom. Gostava também do Mario Pedrosa. Mas ele era autoritário. Achava que as coisas tinham de ser do jeito dele. Gostava muito do Reynaldo Jardim, mas ele não tinha o talento e a competência do Gullar como poeta. A Lygia Clark também era meio levinha, no sentido intelectual.
Dava-se bem com Helio Oiticica?
Muitíssimo bem. Brigamos, mas nos dávamos bem. Brigamos por quê, mesmo? Ele tinha ido à praia, tomar banho de mar, e acho que tinha queimado as costas. Aí cheguei e, pá, dei um tapão das costas dele. E ele gritou: "Filho da...!". Enfim, brigamos por bobagem. Depois, quando mudei para os EUA, ele foi me visitar, fizemos as pazes. Eu gostava dele.
Oiticica o levou para a Mangueira ou vice-versa?
Foi assim: tinha um amigo meu que era diretor da Mangueira. Ele me procurou para dizer que a escola estava quebrada, sem dinheiro, e pediu para que eu ajudasse. O tema do desfile daquele ano era "Preto Velho". Fiz três painéis enormes, baseados em desenhos do Debret. Eles ficavam em cima de um carro. E dentro do carro ia um anão, empurrando a tralha toda. Um negócio incrível: Carnaval é Carnaval. Pensei em pintar um dos painéis de verde. E pensei: esse verde, só chamando o Oiticica. Ele veio e pintou o verde. E ficou encantado com a Mangueira, virou passista da escola.
O sr. gostava de Carnaval?
Nunca fui muito de Carnaval. Eu era mais de beber, mesmo. No Rio, ia ver os desfiles. Achava bonito. Mas gostei da Mangueira. Bebia lá no morro da Mangueira num lugar chamado "Só Para Quem Pode". Você chegava lá e tinha um cheiro estranhíssimo. Era maconha. Uma vez me deram um cigarro de maconha. Desse tamanhão. Fumei o trem, mas não senti coisa nenhuma. Falaram que eu estava fumando errado. Que tinha de fumar e parar. Aí senti alguma coisa. Mas nunca mais fumei. Eu era de beber.
Existe uma história das artes plásticas brasileiras?
Nunca existiu. A não leva a B, que não leva a C. Isso vem de Portugal. Que artista ou desenhista houve em Portugal? Nunca houve. Que poetas houve em Portugal? Camões, Fernando Pessoa e acabou. E nunca trouxeram nada para cá, para esse quintal que podiam jogar fora. Então não temos passado, não temos tradição. Quem for fazer a história da nossa arte fica louco: está cheio de pedaços em branco. Como juntar Frans Post com Eduardo Sued? É um pouco angustiante. É chato.
O sr. gosta de Portugal?
Fiz questão de passar por Lisboa quando fui fazer uma escultura em Berlim. Na volta, disse que viajei 14 horas para ir a Juiz de Fora e teria feito melhor se fosse de carro à verdadeira Juiz de Fora... Os portugueses não gostaram muito.
A crítica de artes no Brasil é boa?
Tem dois críticos muito bons: Rodrigo Naves e Ronaldo Brito. São rigorosos, não fazem favor. Mas não têm onde escrever. Os jornais não têm críticos de arte. Quem vai botar anúncio do lado de artigo sobre artes plásticas? Fabricantes de tinta? Mas só tem dois... Então, eles só escrevem livros. O governo também não faz nada pelas artes plásticas. Ninguém faz nada pelas artes no Brasil.
Das outras artes, quais gosta?
No tempo em que ia a cinema, gostava demais do Fellini. Achava ele um poeta. Depois que ele morreu, ficou chato ir ao cinema. Na literatura, gosto do Drummond, do João Cabral, do Guimarães Rosa. E acho Machado de Assis um gênio extraordinário. Dostoiévski assinaria com prazer "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
Acredita em inspiração?
Não acredito, não. Se me dão um monte de telas, vou pintando até elas acabarem. A qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer dia. Se tenho de pagar uma dívida de R$ 100 mil, e alguém quiser comprar meus quadros, pinto mais rápido ainda.
Com as esculturas é a mesma coisa?
É mais devagar. Demora dois dias, uma semana, até mais, para definir a forma de uma escultura. Tenho de fundamentar cada coisa. A escultura é mais severa, mais exigente, mais sedimentada, mais sentida, mais com amor. O desenho é mais um jogo: às vezes dá certo e às vezes não. Para mim, a pintura é mais lúdica.
Sua arte é política?
Acho que não. Eu sou político. Sempre fui muito preocupado com a pobreza no Brasil. Nunca me interessei por teoria política. Tentei entrar no Partido Comunista. Quando ia entrar, o Prestes saiu da prisão e elogiou o Getúlio: me deu uma tristeza e resolvi não entrar no PCB. Aí fiquei próximo do Partido Socialista. Fiz alguns cartazes para o PS, mostrando operários. Fazia os cartazes com estopa. Foi aberto um inquérito militar para investigar os cartazes e, ainda nos anos 70, estavam me enchendo com ele. Nos Estados Unidos, fiquei sabendo que o prêmio Guggenheim me havia sido dado dois anos antes, e o Itamaraty fez uma longa investigação para saber se eu poderia viajar para o exterior e não falar mal do Brasil. Hoje sou simpatizante do PT. Só voto no Lula. Mas não acho que a política apareça na minha obra.
Sua arte é brasileira?
É. Ao fazer a minha arte, não penso em nada que não seja daqui.
Mas a abstração não é uma gramática universal?
É. Mas a maneira como trabalho essa gramática, o corte e as dobras, é daqui. Um crítico pode discordar. Mas minha opinião superficial é essa.
Por que chama a sua pintura de desenho?
Porque não sou pintor. Pintor é Matisse, é Renoir. Mondrian era um pintor. Mas aí passou a fazer desenhos com amarelo, azul e vermelho, três cores primárias. Então, ele virou artista gráfico. É o que faço: desenho com cores primárias.
Quem seria o grande escultor do século 20?
Richard Serra.
Falando em Serra: qual o sentido da escultura como intervenção pública?
Não gosto da palavra "intervenção". Prefiro "participação". Faço esculturas para participar do espaço público. Vou visitar o lugar e faço a escultura pensando nele.


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