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Em "O Mundo de Homero" Pierre Vidal-Naquet evidencia o
esquematismo de apropriações históricas e filosóficas das epopéias
Cartografias simbólicas
Retomando René Char, Vidal-Naquet pensa em "Homero" como "deus plural",
o que equivale
ao reconhecimento
de "que não há um só
Homero e que, pelo menos, o poeta da "Ilíada" é distinto do
da "Odisséia'"
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Alcir Pécora
especial para a Folha
Pierre Vidal-Naquet, historiador
conhecido pelos seus estudos em
mitologia grega, por suas memórias e artigos contra o revisionismo do Holocausto, tem mais um título
traduzido para o português. Trata-se de
um livro de divulgação, na forma de uma
amena conversa com não-especialistas a
respeito dos poemas homéricos. Ainda
assim, é um livro com uma tese. Poder-se-ia discuti-la a partir do seguinte passo:
"O mundo homérico é um mundo poético. Os historiadores, os sociólogos, os filósofos se apropriaram dele, o que é normal e até legítimo, mas, com frequência,
querendo ultrapassar as suas possibilidades. Sabemos que, desde a Antiguidade, os geógrafos se esforçam em vão por
cartografar, de maneira segura, as viagens de Ulisses. É preciso, portanto, retornar à poesia". É o caminho de um retorno à poesia que o livro constrói, por
meio da evidenciação do esquematismo
de conhecidas apropriações filosóficas,
históricas, sociológicas e geográficas das
duas epopéias.
Para começar o desmonte, Naquet observa que, na sequência das escavações
de Schliemann, cujos primeiros êxitos
para localizar Tróia datam de 1873, já se
descobriram 11 diferentes "Tróias", sobre a colina de Hissarlik, na atual Turquia. A "Tróia" que Schliemann escavou
e na qual descobriu as peças a que deu o
nome de "tesouro de Príamo" é a que,
hoje, se conhece como "Tróia 2", que floresceu entre os anos de 2500 e 2200 a.C.
Ou seja, pelo menos mil anos antes da
suposta Tróia referida pela "Ilíada", que
existiria, pelas datações dos antigos, por
volta do século 13 a.C. Nas escavações,
ela corresponderia à "Tróia 7 A", cujas
ruínas e muralhas nada têm de espetacular e jamais poderiam ter resistido a um
cerco de dez anos. Há uma "Tróia" de
grandes muralhas, a "6", talvez adequada às ações do poema, mas esta foi destruída por um terremoto, não após um
cerco bélico de grandes proporções. Ou
seja, para resumir os argumentos, nas
próprias palavras de Naquet: "É impossível fazer coincidir uma epopéia com
uma escavação"; o que também significa
dizer: "Se vocês querem fazer uma idéia
da Tróia de Homero, não devem ir à colina de Hissarlik". Devem "ler a "Ilíada'".
Afora Tróia, muitos helenistas têm tentado localizar a civilização descrita por
Homero. As tumbas reais monumentais,
descobertas em Micenas, foram associadas à dinastia dos átridas, o que sustentou a identificação da civilização "micênica", desaparecida por volta de 1200
a.C., com o mundo antigo evocado nos
poemas homéricos. Contudo, contrapondo-se as estruturas econômicas e sociais apresentadas nos textos com as vigentes no período micênico, a identificação fica inverossímil. Basta notar, com o
autor, que, na Grécia micênica, o soberano era servido por escribas, tinha como
centro de poder o seu palácio e exercia
autoridade absoluta, o que incluía os domínios da produção, da guerra e da religião.
Está claro que Agamêmnon não conhece nenhum poder semelhante a esse.
Embora seja nomeado "rei dos reis", não
toma nenhuma decisão importante sem
reunir a assembléia dos guerreiros e o
conselho dos reis. Alcínoo, rei dos feácios, e Príamo, dos troianos, convocam
os seus aliados nas grandes decisões.
Ulisses não tem poder absoluto sobre
Ítaca; quando Telêmaco se afirma como
adulto e restabelece a pólis, em boa medida o faz pela convocação da assembléia
e do conselho.
Assim, para Naquet, "o fato de Homero ter desejado evocar a Grécia micênica
não significa que ele a tenha efetivamente descrito". É mais provável que a sua
invenção de certo período micênico esteja associada a um gosto exótico do antigo, vigente no seu próprio tempo, em geral datado entre o final do século 9 e início do 8 a.C.
Desse modo, o Exército recoberto de
cobre; o muro de proteção dos barcos
aqueus; os carros de guerra que não entram em combate, mas apenas transportam os guerreiros, como táxis, até o campo de batalha; os objetos admiráveis, como o capacete que o cretense Meríones
põe na cabeça de Ulisses, recortado no
couro de boi e sustentando presas de javali, ou o
escudo de Aquiles construído por Hefesto, tudo
deve ser creditado mais ao
engenho homérico do
que ao seu conhecimento
da Grécia micênica.
No caso da "Odisséia", a
questão se põe de maneira
ainda mais surpreendente. Especialistas
de vários domínios tentaram reconhecer
"realisticamente" os locais das várias etapas da viagem de Ulisses, desde Tróia até
a ilha dos feácios, que, por exemplo, julgaram ser a atual ilha de Corfu. A propósito, Vidal-Naquet conta um episódio
bem ilustrativo do sucesso a que chegou
esse tipo de procedimento. Quando Napoleão se apossou da ilha, em 1797, ele
mesmo declarou que aquela, "segundo
Homero", era a "pátria da princesa Nausícaa" e o bispo do lugar, ao saudar o novo soberano, não deixou por menos: presenteou-o com um exemplar da "Odisséia". Quer dizer, a despeito de toda a
viagem ter sido considerada lendária nos
tempos antigos, a interpretação verista
de suas etapas fez corresponder, a cada
uma, certa localidade assinalável no mapa. O resultado desse tipo de pesquisa,
como diz o autor, "foi uma coleção de fotos que nos dão a conhecer numerosos
sítios do Mediterrâneo dignos de serem
admirados, mas que nem Ulisses, nem
Homero, o poeta da "Odisséia", jamais visitaram".
A ausência de descrição verossímil de
lugares e sociedades "reais" não significa
que não haja indicações, na obra, de critérios distintos quanto à descrição do
mundo "real" dos homens e a do "maravilhoso" de deuses e monstros. Vidal-Naquet mostra que a cultura do trigo é
decisiva na caracterização dos homens,
"comedores de pães" por excelência. A
divisão é relevante porque um dos eixos
significativos do poema é a opção pelo
mundo dos homens, que está nítida, por
exemplo, no episódio de Calipso. Quando a deusa oferece a Ulisses a possibilidade de tornar-se imortal e divino, o dom é
recusado pelo herói, que prefere continuar humano e retomar seu caminho dificultoso de volta a Ítaca.
Esse tipo de reflexão, que afasta as simplificações externas à invenção dos poemas, conduz o autor a um exame das diferenças textuais mais notáveis entre
eles. Retomando René
Char, pensa em "Homero" como "deus plural", o
que equivale ao reconhecimento cabal de "que
não há um só Homero e
que, pelo menos, o poeta
da "Ilíada" é distinto do da
"Odisséia'". Os argumentos que considera, a esse
respeito, são retirados da composição
dos poemas. Concentra-se, por exemplo,
no emprego do "monólogo interior" pelo autor da "Ilíada", relacionando-o à estrutura do debate na assembléia, prática
conhecida do próprio tempo de Homero.
Tal procedimento monológico reforça
hipóteses, como a de James Redfield, que
aproximam a "Ilíada" do posterior gênero trágico, lendo-a mesmo como "a tragédia de Heitor". Para Naquet, se Heitor
não chegou a se tornar herói de tragédias
foi apenas porque, no intervalo entre
Homero e os trágicos, o troiano havia se
tornado "bárbaro", personagem de um
povo despojado de educação ou "paidéia". Em Homero, não é assim: gregos e
troianos falam a mesma língua. Heitor é,
sem dúvida, "melhor do que nós" e apto
para um destino trágico, no cerne de
uma epopéia da origem.
Com a "Odisséia", é a poesia que começa, ao menos nos termos em que
supõe a "mímesis". Se Simone Weil já
havia observado que a "Odisséia" era
uma imitação da "Ilíada", Naquet
acrescenta se tratar de imitação "irônica", pois põe em dúvida o máximo
valor exemplar da "Ilíada", o da
"morte heróica", conquistada por
Aquiles e também por Heitor, após a
restituição do seu corpo a Príamo e a
realização das honras fúnebres. Na
"Odisséia", ao contrário, quando
Ulisses desce ao Hades e encontra
Aquiles, o "belo morto", por excelência, este lhe diz que preferia estar a
serviço de um camponês vivo a ser rei
entre os mortos. Assim, já não é a "bela morte" que a imitação poética nos
propõe, mas "a arte da sobrevivência".
Interessante é que o imitativo irônico se associa, entre outros procedimentos, à novidade da integração do
tempo na narrativa da "Odisséia". Enquanto, na "Ilíada", ninguém nasce
ou envelhece nos dez anos de cerco,
na "Odisséia" duas personagens marcam com eloquência a medida do
tempo: Telêmaco, que era uma criança de berço à partida do pai e já tem
barba ao seu retorno; e Argo, que nem
sequer saía à caça quando o herói deixa o lar e, à sua volta, já é um velho
cão, cheio de carrapatos, a viver perto
do lixo. A hipótese do autor, nesse caso, é a de que, se vale dizer que a tragédia ática é uma espécie de desdobramento da epopéia inaugural que é a
"Ilíada", também é plausível afirmar
que o gênero que explora as possibilidades dramáticas da "Odisséia" é a
comédia ou o drama satírico.
Por ora, contudo, não é preciso ir
além; essa é apenas uma das hipóteses
interpretativas instigantes levantadas
por Vidal-Naquet. O que importa notar é que são constituídas ao longo de
uma investigação inalienável da poesia. Espero ter deixado claro que, nesse caminho, "o mundo de Homero" é
uma referência sem referente. Não
significa o que existe historicamente
fora dele: reconta a história ineludível
de sua própria ficção.
O Mundo de Homero
168 págs., R$ 25,50.
de Pierre Vidal-Naquet. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/
3167-0801).
Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de
"Máquina de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do
Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).
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