São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2002

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Em "O Mundo de Homero" Pierre Vidal-Naquet evidencia o esquematismo de apropriações históricas e filosóficas das epopéias

Cartografias simbólicas


Retomando René Char, Vidal-Naquet pensa em "Homero" como "deus plural", o que equivale ao reconhecimento de "que não há um só Homero e que, pelo menos, o poeta da "Ilíada" é distinto do da "Odisséia'"


Alcir Pécora
especial para a Folha

Pierre Vidal-Naquet, historiador conhecido pelos seus estudos em mitologia grega, por suas memórias e artigos contra o revisionismo do Holocausto, tem mais um título traduzido para o português. Trata-se de um livro de divulgação, na forma de uma amena conversa com não-especialistas a respeito dos poemas homéricos. Ainda assim, é um livro com uma tese. Poder-se-ia discuti-la a partir do seguinte passo: "O mundo homérico é um mundo poético. Os historiadores, os sociólogos, os filósofos se apropriaram dele, o que é normal e até legítimo, mas, com frequência, querendo ultrapassar as suas possibilidades. Sabemos que, desde a Antiguidade, os geógrafos se esforçam em vão por cartografar, de maneira segura, as viagens de Ulisses. É preciso, portanto, retornar à poesia". É o caminho de um retorno à poesia que o livro constrói, por meio da evidenciação do esquematismo de conhecidas apropriações filosóficas, históricas, sociológicas e geográficas das duas epopéias.
Para começar o desmonte, Naquet observa que, na sequência das escavações de Schliemann, cujos primeiros êxitos para localizar Tróia datam de 1873, já se descobriram 11 diferentes "Tróias", sobre a colina de Hissarlik, na atual Turquia. A "Tróia" que Schliemann escavou e na qual descobriu as peças a que deu o nome de "tesouro de Príamo" é a que, hoje, se conhece como "Tróia 2", que floresceu entre os anos de 2500 e 2200 a.C. Ou seja, pelo menos mil anos antes da suposta Tróia referida pela "Ilíada", que existiria, pelas datações dos antigos, por volta do século 13 a.C. Nas escavações, ela corresponderia à "Tróia 7 A", cujas ruínas e muralhas nada têm de espetacular e jamais poderiam ter resistido a um cerco de dez anos. Há uma "Tróia" de grandes muralhas, a "6", talvez adequada às ações do poema, mas esta foi destruída por um terremoto, não após um cerco bélico de grandes proporções. Ou seja, para resumir os argumentos, nas próprias palavras de Naquet: "É impossível fazer coincidir uma epopéia com uma escavação"; o que também significa dizer: "Se vocês querem fazer uma idéia da Tróia de Homero, não devem ir à colina de Hissarlik". Devem "ler a "Ilíada'".
Afora Tróia, muitos helenistas têm tentado localizar a civilização descrita por Homero. As tumbas reais monumentais, descobertas em Micenas, foram associadas à dinastia dos átridas, o que sustentou a identificação da civilização "micênica", desaparecida por volta de 1200 a.C., com o mundo antigo evocado nos poemas homéricos. Contudo, contrapondo-se as estruturas econômicas e sociais apresentadas nos textos com as vigentes no período micênico, a identificação fica inverossímil. Basta notar, com o autor, que, na Grécia micênica, o soberano era servido por escribas, tinha como centro de poder o seu palácio e exercia autoridade absoluta, o que incluía os domínios da produção, da guerra e da religião.
Está claro que Agamêmnon não conhece nenhum poder semelhante a esse. Embora seja nomeado "rei dos reis", não toma nenhuma decisão importante sem reunir a assembléia dos guerreiros e o conselho dos reis. Alcínoo, rei dos feácios, e Príamo, dos troianos, convocam os seus aliados nas grandes decisões. Ulisses não tem poder absoluto sobre Ítaca; quando Telêmaco se afirma como adulto e restabelece a pólis, em boa medida o faz pela convocação da assembléia e do conselho.
Assim, para Naquet, "o fato de Homero ter desejado evocar a Grécia micênica não significa que ele a tenha efetivamente descrito". É mais provável que a sua invenção de certo período micênico esteja associada a um gosto exótico do antigo, vigente no seu próprio tempo, em geral datado entre o final do século 9 e início do 8 a.C.
Desse modo, o Exército recoberto de cobre; o muro de proteção dos barcos aqueus; os carros de guerra que não entram em combate, mas apenas transportam os guerreiros, como táxis, até o campo de batalha; os objetos admiráveis, como o capacete que o cretense Meríones põe na cabeça de Ulisses, recortado no couro de boi e sustentando presas de javali, ou o escudo de Aquiles construído por Hefesto, tudo deve ser creditado mais ao engenho homérico do que ao seu conhecimento da Grécia micênica.
No caso da "Odisséia", a questão se põe de maneira ainda mais surpreendente. Especialistas de vários domínios tentaram reconhecer "realisticamente" os locais das várias etapas da viagem de Ulisses, desde Tróia até a ilha dos feácios, que, por exemplo, julgaram ser a atual ilha de Corfu. A propósito, Vidal-Naquet conta um episódio bem ilustrativo do sucesso a que chegou esse tipo de procedimento. Quando Napoleão se apossou da ilha, em 1797, ele mesmo declarou que aquela, "segundo Homero", era a "pátria da princesa Nausícaa" e o bispo do lugar, ao saudar o novo soberano, não deixou por menos: presenteou-o com um exemplar da "Odisséia". Quer dizer, a despeito de toda a viagem ter sido considerada lendária nos tempos antigos, a interpretação verista de suas etapas fez corresponder, a cada uma, certa localidade assinalável no mapa. O resultado desse tipo de pesquisa, como diz o autor, "foi uma coleção de fotos que nos dão a conhecer numerosos sítios do Mediterrâneo dignos de serem admirados, mas que nem Ulisses, nem Homero, o poeta da "Odisséia", jamais visitaram".
A ausência de descrição verossímil de lugares e sociedades "reais" não significa que não haja indicações, na obra, de critérios distintos quanto à descrição do mundo "real" dos homens e a do "maravilhoso" de deuses e monstros. Vidal-Naquet mostra que a cultura do trigo é decisiva na caracterização dos homens, "comedores de pães" por excelência. A divisão é relevante porque um dos eixos significativos do poema é a opção pelo mundo dos homens, que está nítida, por exemplo, no episódio de Calipso. Quando a deusa oferece a Ulisses a possibilidade de tornar-se imortal e divino, o dom é recusado pelo herói, que prefere continuar humano e retomar seu caminho dificultoso de volta a Ítaca.
Esse tipo de reflexão, que afasta as simplificações externas à invenção dos poemas, conduz o autor a um exame das diferenças textuais mais notáveis entre eles. Retomando René Char, pensa em "Homero" como "deus plural", o que equivale ao reconhecimento cabal de "que não há um só Homero e que, pelo menos, o poeta da "Ilíada" é distinto do da "Odisséia'". Os argumentos que considera, a esse respeito, são retirados da composição dos poemas. Concentra-se, por exemplo, no emprego do "monólogo interior" pelo autor da "Ilíada", relacionando-o à estrutura do debate na assembléia, prática conhecida do próprio tempo de Homero.
Tal procedimento monológico reforça hipóteses, como a de James Redfield, que aproximam a "Ilíada" do posterior gênero trágico, lendo-a mesmo como "a tragédia de Heitor". Para Naquet, se Heitor não chegou a se tornar herói de tragédias foi apenas porque, no intervalo entre Homero e os trágicos, o troiano havia se tornado "bárbaro", personagem de um povo despojado de educação ou "paidéia". Em Homero, não é assim: gregos e troianos falam a mesma língua. Heitor é, sem dúvida, "melhor do que nós" e apto para um destino trágico, no cerne de uma epopéia da origem.
Com a "Odisséia", é a poesia que começa, ao menos nos termos em que supõe a "mímesis". Se Simone Weil já havia observado que a "Odisséia" era uma imitação da "Ilíada", Naquet acrescenta se tratar de imitação "irônica", pois põe em dúvida o máximo valor exemplar da "Ilíada", o da "morte heróica", conquistada por Aquiles e também por Heitor, após a restituição do seu corpo a Príamo e a realização das honras fúnebres. Na "Odisséia", ao contrário, quando Ulisses desce ao Hades e encontra Aquiles, o "belo morto", por excelência, este lhe diz que preferia estar a serviço de um camponês vivo a ser rei entre os mortos. Assim, já não é a "bela morte" que a imitação poética nos propõe, mas "a arte da sobrevivência".
Interessante é que o imitativo irônico se associa, entre outros procedimentos, à novidade da integração do tempo na narrativa da "Odisséia". Enquanto, na "Ilíada", ninguém nasce ou envelhece nos dez anos de cerco, na "Odisséia" duas personagens marcam com eloquência a medida do tempo: Telêmaco, que era uma criança de berço à partida do pai e já tem barba ao seu retorno; e Argo, que nem sequer saía à caça quando o herói deixa o lar e, à sua volta, já é um velho cão, cheio de carrapatos, a viver perto do lixo. A hipótese do autor, nesse caso, é a de que, se vale dizer que a tragédia ática é uma espécie de desdobramento da epopéia inaugural que é a "Ilíada", também é plausível afirmar que o gênero que explora as possibilidades dramáticas da "Odisséia" é a comédia ou o drama satírico.
Por ora, contudo, não é preciso ir além; essa é apenas uma das hipóteses interpretativas instigantes levantadas por Vidal-Naquet. O que importa notar é que são constituídas ao longo de uma investigação inalienável da poesia. Espero ter deixado claro que, nesse caminho, "o mundo de Homero" é uma referência sem referente. Não significa o que existe historicamente fora dele: reconta a história ineludível de sua própria ficção.

O Mundo de Homero
168 págs., R$ 25,50.
de Pierre Vidal-Naquet. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801).


Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).



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