São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sobre santos e demônios

O PROFESSOR DE HARVARD INVESTIGA POR QUE AS REPUTAÇÕES MORAIS DE PERSONALIDADES COMO MADRE TERESA DE CALCUTÁ E BILL GATES ESTÃO TÃO EM DESACORDO COM O BEM QUE PRATICARAM

Albert Gea - 5.ago.2003/Reuters
Meninas se abraçam em fonte de Barcelona, na Espanha


STEVEN PINKER

Qual das seguintes pessoas é a mais admirável? Madre Teresa, Bill Gates ou Norman Borlaug? E qual é a menos admirável? Para a maioria das pessoas é uma pergunta fácil. Madre Teresa, famosa por socorrer os pobres em Calcutá, foi beatificada pelo Vaticano, recebeu o Prêmio Nobel da Paz e se classificou em uma pesquisa americana como a pessoa mais admirada do século 20.
Bill Gates, infame por nos dar o clipe de papel dançante da Microsoft e a tela azul da morte, foi decapitado simbolicamente em websites "Eu Odeio Gates" e atingido com uma torta no rosto. Quanto a Norman Borlaug... quem é ele?
Mas um exame mais profundo poderá levá-lo a reavaliar suas respostas. Borlaug, pai da "Revolução Verde", que usou a ciência agrícola para reduzir a fome mundial, recebeu o crédito por salvar 1 bilhão de vidas, mais que qualquer outra pessoa na história.
Gates, ao decidir o que fazer com sua fortuna, calculou bem e decidiu que podia aliviar mais sofrimento combatendo pragas comuns no mundo em desenvolvimento, como malária, diarréia e parasitas.
Madre Teresa, por sua vez, enalteceu a virtude do sofrimento e dirigiu suas bem financiadas missões apropriadamente: seus doentes recebiam muitas orações, mas condições exíguas, poucos analgésicos e tratamentos médicos perigosamente primitivos.

Lei íntima
Não é difícil entender por que as reputações morais desses três estão tão em desacordo com o bem que praticaram.
Madre Teresa foi a própria personificação da santidade: vestida de branco, olhar triste, ascética e freqüentemente fotografada com os miseráveis da Terra. Gates é o mais nerd dos nerds e o homem mais rico do mundo, com a mesma probabilidade de entrar no paraíso quanto o proverbial camelo espremido no buraco da agulha.
E Borlaug, aos 93 anos, é um agrônomo que passou a vida em laboratórios e instituições sem fins lucrativos, raramente aparecendo no palco da mídia e, logo, em nossa consciência.
Duvido que esses exemplos convençam alguém a preferir Bill Gates a Madre Teresa para santificação.
Mas eles mostram que nossas cabeças podem ser atraídas por uma aura de santidade, distraindo-nos de uma identificação mais objetiva dos atos que fazem as pessoas sofrerem ou florescerem.
Parece que talvez sejamos todos vulneráveis a ilusões morais. Hoje, um novo campo está usando as ilusões para desmascarar um sexto sentido, o senso moral. As intuições morais estão sendo extraídas das pessoas em laboratórios, em websites e em escaneadores cerebrais e estão sendo explicadas com ferramentas da teoria dos jogos, da neurociência e da biologia evolucionária.
"Duas coisas enchem a mente de admiração e respeito sempre renovados e crescentes, quanto mais freqüente e constantemente refletimos sobre elas", escreveu o filósofo alemão Immanuel Kant. "Os céus estrelados no alto e a lei moral no íntimo." Hoje em dia, a lei moral íntima está sendo vista com crescente respeito, embora nem sempre com admiração.
Se a moral é um mero truque do cérebro, como temem alguns, nossas próprias bases para sermos morais poderiam ser erodidas. Mas, como veremos adiante, a ciência do senso moral pode ser vista como uma maneira de reforçar essas bases, esclarecendo o que é a moral e como ela deve conduzir nossas ações.

A tecla da moralização
É a atitude mental que nos faz considerar certos atos imorais, e não meramente desagradáveis, fora de moda ("calças boca-de-sino já eram") ou imprudentes ("não coce picadas de mosquito").
A primeira característica da moralização é que as regras que ela invoca são consideradas universais. As proibições ao estupro e ao assassinato, por exemplo, não são consideradas questões de costume local, mas algo universal e objetivamente sancionado.
A outra característica é que as pessoas sentem que quem comete atos imorais merece ser punido.
Todos sabemos como é quando o "botão" da moralização é acionado dentro de nós -o fulgor virtuoso, a ira flamejante, o ímpeto de recrutar outros para a causa. O psicólogo Paul Rozin estudou esse botão comparando dois tipos de pessoas que têm o mesmo comportamento, mas com regulagens diferentes do botão.
Certos vegetarianos evitam comer carne por razões práticas, como reduzir o colesterol e evitar toxinas. Os vegetarianos morais evitam a carne por razões éticas, para não serem cúmplices com o sofrimento dos animais.
Mesmo quando as pessoas concordam que um resultado é desejável, podem discordar sobre se ele deve ser tratado como uma questão de preferência e prudência ou como uma questão de pecado e virtude.
Rozin nota, por exemplo, que o hábito de fumar foi moralizado ultimamente. Até pouco tempo atrás, compreendia-se que algumas pessoas não gostavam de fumar ou o evitavam porque era prejudicial à saúde. Mas, com a descoberta dos efeitos nocivos do tabagismo passivo, hoje fumar é tratado como algo imoral.
Muitas dessas moralizações, como o ataque ao tabagismo, podem ser entendidas como táticas práticas para reduzir um mal recém-identificado. Mas, se uma atividade liga nossos botões mentais no modo "moral", não é só uma questão do mal que ela provoca. Comer um Big Mac é falta de escrúpulos, mas não queijo importado ou crème brûlée.
O motivo desses critérios duplos é óbvio: as pessoas tendem a alinhar sua moralização com seus próprios estilos de vida.

Razão e racionalização
Não é apenas o conteúdo de nossos julgamentos morais que muitas vezes é questionável, mas o modo como chegamos a eles. Gostamos de pensar que há boas razões que nos levam a adotar nossas convicções.
É por isso que uma abordagem mais antiga da psicologia moral, conduzida por Jean Piaget e Lawrence Kohlberg, tentou documentar as linhas de raciocínio que levavam as pessoas a conclusões morais. Mas considere estas situações abaixo, originalmente imaginadas pelo psicólogo Jonathan Haidt.
Julie está viajando pela França, durante as férias de verão da faculdade, com seu irmão Mark. Certa noite eles decidem que seria interessante e divertido se experimentassem fazer amor. Julie já tomava pílulas anticoncepcionais, mas, para ter mais segurança, Mark também usa uma camisinha. Ambos apreciam o sexo, mas decidem não repetir.

As pessoas, em geral, não se dedicam a um raciocínio moral, mas à raciona-lização moral: começam pela conclusão, gerada por uma emoção inconsciente, e, então, recuam até uma justificativa plausível

Fazem daquela noite um segredo especial, o que os torna ainda mais próximos. O que você acha disso -foi certo eles fazerem amor?
Uma mulher está limpando o armário e encontra sua velha bandeira dos EUA. Ela não quer mais a bandeira, então a corta em pedaços e usa os trapos para limpar o banheiro.
O cachorro de uma família é morto por um carro na frente da casa. Eles ouviram dizer que carne de cachorro é deliciosa, então cortam o animal em pedaços, o cozinham e o comem no jantar.
A maioria das pessoas imediatamente declara esses atos errados e depois tenta justificar por que são errados. Não é tão fácil. No caso de Julie e Mark, as pessoas levantam a possibilidade de filhos com defeitos de nascença, mas elas se lembram de que o casal foi cauteloso sobre a contracepção.
Elas sugerem que os irmãos ficarão emocionalmente magoados, mas a história deixa claro que não ficaram. Elas alegam que o ato ofenderia a comunidade, mas então lembram-se de que foi mantido em segredo. Afinal as pessoas admitem: "Não sei, não consigo explicar, só sei que é errado".
As pessoas, em geral, não se dedicam a um raciocínio moral, afirma Haidt, mas à racionalização moral: começam pela conclusão, gerada por uma emoção inconsciente, e, então, recuam até uma justificativa plausível.
A lacuna entre as convicções das pessoas e suas justificativas também é visível no novo playground favorito dos psicólogos morais, uma experiência com o pensamento criada pelas filósofas Philippa Foot e Judith Jarvis Thomson, chamada o Problema do Bonde.
Em sua caminhada matinal, você vê um bonde correndo nos trilhos, com o condutor caído sobre os controles. No caminho do bonde, há cinco homens trabalhando nos trilhos, alheios ao perigo. Você está parado numa bifurcação dos trilhos e pode puxar uma alavanca que desviará o bonde para um ramal, salvando os cinco homens.
Nesse caso, infelizmente, o bonde atropelaria um único homem que está trabalhando no ramal. É permissível acionar a alavanca, matando um homem para salvar cinco?
Quase todo mundo diz "sim".
Agora imagine uma cena diferente. Você está numa ponte olhando para os trilhos e avistou o bonde desgovernado aproximando-se dos cinco trabalhadores. Agora, o único modo de deter o bonde é atirar um objeto pesado em seu caminho. E o único objeto pesado próximo é um homem gordo parado ao seu lado. Você deve atirar o homem da ponte?

Cinco vidas por uma
Ambos os dilemas apresentam a opção de sacrificar uma vida para salvar cinco e, portanto, pelo padrão utilitário de qual seria o melhor resultado para o maior número de pessoas, os dois dilemas se equivalem moralmente.
Mas a maioria das pessoas não vê a coisa assim: mesmo que puxassem a alavanca no primeiro dilema, não atirariam o homem gordo no segundo. Quando pressionadas a dar um motivo, elas não encontram nenhum coerente, mas filósofos morais também não encontraram com facilidade uma diferença relevante.
Joshua Greene, um filósofo e neurocientista da cognição, sugere que a evolução dotou as pessoas de uma repulsa a manipular uma pessoa inocente.
Por si só, essa seria apenas uma história plausível, mas Greene uniu-se ao neurocientista da cognição Jonathan Cohen e vários colegas de Princeton para examinar os cérebros de pessoas usando ressonância magnética funcional.
Eles buscaram sinais de conflito entre áreas do cérebro associadas à emoção (as que se recusam a ferir alguém) e áreas dedicadas à análise racional (as que calculam vidas perdidas e salvas).
Quando as pessoas avaliavam dilemas que exigiam matar alguém com suas próprias mãos, várias redes em seus cérebros se acendiam.
Uma delas está envolvida nas emoções sobre outras pessoas. Uma segunda foi relacionada à atividade de computação mental (incluindo raciocínio não-moral, como decidir viajar de avião ou de trem). E uma terceira região registra um conflito entre o impulso que vem de uma parte do cérebro e a avaliação que vem de outra parte.
Mas, quando as pessoas analisavam um dilema sem intervir, como desviar o bonde para o ramal com um único trabalhador, o cérebro reagia de modo diferente: apenas a área envolvida no cálculo racional se destacava.
Outros estudos mostraram que pacientes neurológicos que têm as emoções embotadas devido a danos aos lobos frontais se tornam utilitaristas: acham totalmente sensato atirar o homem gordo da ponte. Juntas, as descobertas corroboram a teoria de Greene, segundo a qual nossas intuições não-utilitárias vêm da vitória de um impulso emocional sobre uma análise de custo-benefício.
As conclusões da "bondeologia" -intuições morais complexas, instintivas e mundiais- levaram Hauser e John Mikhail (um acadêmico de direito) a reavivar uma analogia do filósofo John Rawls entre o senso moral e a linguagem.
Segundo Noam Chomsky, nascemos com uma "gramática universal" que nos força a analisar o discurso em termos de sua estrutura gramatical, sem termos uma consciência real das regras do jogo. Por analogia, nascemos com uma gramática moral universal que nos força a analisar a ação humana em termos de sua estrutura moral, igualmente sem uma real consciência disso.
O senso moral, portanto, pode estar enraizado no projeto do cérebro humano normal.
Mas, apesar de toda a admiração que pode invadir nossas mentes quando refletimos sobre uma lei moral inata, a idéia é no mínimo incompleta.
Considere este dilema moral: um bonde desgovernado está prestes a matar uma professora. Você pode desviar o bonde para um ramal secundário, mas o bonde acionaria um botão que mandaria um sinal para uma classe de crianças de seis anos autorizando-as a dar o nome de Maomé a um ursinho de pelúcia.
Isso não é uma piada.
Em novembro, uma mulher britânica que era professora em uma escola particular no Sudão permitiu que sua classe batizasse um ursinho de brinquedo com o nome do menino mais popular da classe, que era homônimo do fundador do islamismo. Ela foi presa por blasfêmia e ameaçada de açoitamento em público, enquanto uma multidão diante da prisão exigia sua morte.
Para os manifestantes, a vida da mulher claramente tinha menos valor do que enfatizar a dignidade de sua religião, e o julgamento deles sobre o acerto de desviar o bonde seria diferente do nosso.
Qualquer que seja a gramática que conduz os julgamentos morais das pessoas, não pode ser tão universal.

Senso universal
Quando antropólogos como Richard Shweder e Alan Fiske estudam preocupações morais ao redor do mundo, descobrem que alguns temas freqüentemente se destacam em meio à diversidade. Pessoas de todos os lugares, pelo menos em certas circunstâncias e tendo em mente certas pessoas, acham que é errado ferir os outros e certo ajudá-los.
Elas têm um senso de justiça; valorizam a lealdade a um grupo, o intercâmbio e a solidariedade entre seus membros e a conformidade a suas normas. Acreditam que é certo obedecer às autoridades legítimas e respeitar as pessoas em posição elevada. E exaltam a pureza, a limpeza e a santidade, enquanto desprezam a degradação, a contaminação e a carnalidade.
O número exato de temas depende de você ser um agregador ou um divisor, mas Haidt conta cinco -agressão, justiça, comunidade (ou lealdade ao grupo), autoridade e pureza- e sugere que essas são as cores primárias de nosso senso moral. Não apenas reaparecem em pesquisas entre diversas culturas, como cada uma se liga às intuições morais das pessoas de nossa própria cultura.

Pureza e violação
Assim, a violação da comunidade fez pessoas rejeitarem a idéia de usar uma velha bandeira para limpar um banheiro. A violação da pureza repeliu as pessoas que julgaram a moralidade do incesto consensual e impediu que os vegetarianos e os não-fumantes tolerassem o menor vestígio de um elemento contaminador.
No outro extremo da escala, demonstrações de extrema pureza levam as pessoas a venerar líderes religiosos que se vestem de branco e adotam uma aura de castidade e ascetismo.
As cinco esferas são boas candidatas a uma tabela periódica do senso moral, não só por serem ubíquas, mas também porque parecem ter profundas raízes evolucionárias.
O impulso de não fazer mal, que faz os avaliadores do bonde recuarem quando pensam em atirar o homem da ponte, também pode ser encontrado em macacos resos, que preferem passar fome a puxar uma corrente que lhes proporciona comida, mas também causa um choque em outro macaco.
O respeito à autoridade está claramente relacionado à hierarquia de dominação e aceitação generalizada no reino animal. O contraste pureza-devassidão está ligado à emoção de repulsa provocada por potenciais vetores de doenças, como eflúvios corporais, carne em decomposição e formas não convencionais de carne e por práticas sexuais arriscadas, como o incesto.
As duas outras esferas moralizadas se equiparam aos exemplos clássicos de como o altruísmo pode evoluir, trabalhados pelos sociólogos nos anos 1960 e 70 e que se tornaram famosos com o livro de Richard Dawkins "O Gene Egoísta" (Cia. das Letras).
A justiça é muito próxima do que os cientistas chamam de altruísmo recíproco, em que a disposição a ser bom para os outros pode evoluir desde que o favor ajude o receptor mais do que custa ao doador e o receptor retribua o favor quando as fortunas se inverterem.
A análise faz parecer que o altruísmo recíproco sai de um cálculo robótico, mas na verdade o biólogo Robert Trivers, que criou a teoria, afirmou que ele é implementado no cérebro como um conjunto de emoções morais. A simpatia leva uma pessoa a oferecer o primeiro favor, especialmente para alguém necessitado para o qual seria mais útil.
A raiva protege uma pessoa de trapaceiros que aceitam favores sem retribuir, levando-a a punir o ingrato ou a interromper o relacionamento. A gratidão impele o beneficiário a recompensar os que o ajudaram no passado. A culpa leva o trapaceiro sob risco de ser descoberto a reparar o relacionamento compensando sua má ação e avisando que se comportará melhor no futuro.

Manipulando as esferas
Tudo isso nos leva a uma teoria de como o senso moral pode ser universal e variável ao mesmo tempo. As cinco esferas morais são universais, um legado da evolução. Mas como elas se classificam em importância, e qual é acionada para moralizar cada área da vida social -sexo, governo, comércio, religião, dieta e assim por diante-, depende da cultura.
Não é fácil reatribuir uma atividade a uma esfera diferente ou retirá-la totalmente das esferas morais. As pessoas acham que um comportamento pertence a sua esfera do mesmo modo que uma necessidade sagrada e que o próprio fato de questionar uma atribuição é um ultraje moral.

Corrosão
O psicólogo Philip Tetlock mostrou que a mentalidade do tabu -a convicção de que alguns pensamentos são pecaminosos- não é apenas uma superstição dos polinésios, mas uma mentalidade que pode ser facilmente despertada em americanos de nível educacional superior.
Basta lhes pedir para pensar em aplicar a esfera da reciprocidade a relacionamentos habitualmente regidos pela comunidade ou a autoridade.
Quando Tetlock pediu aos entrevistados sua opinião sobre se as agências de adoção deveriam dar as crianças para os casais que se dispusessem a pagar mais, se as pessoas deveriam ter o direito de vender seus órgãos e se elas deveriam poder pagar para não servir como juradas, os pesquisados não apenas discordaram como se sentiram pessoalmente insultados e indignados por alguém fazer essas perguntas.
As instituições da modernidade muitas vezes questionam e experimentam o modo como as atividades são atribuídas às esferas morais.
As economias de mercado tendem a colocar tudo à venda. A ciência amoraliza o mundo ao buscar entender os fenômenos, em vez de julgá-los. A filosofia secular está perscrutando todas as idéias adquiridas, incluindo as entrincheiradas na autoridade e na tradição.
Não é de surpreender que essas instituições muitas vezes sejam consideradas moralmente corrosivas.
E "moralmente corrosiva" é exatamente o termo que alguns críticos aplicariam à nova ciência do senso moral. A tentativa de dissecar nossas intuições morais pode parecer uma tentativa de desacreditá-las.
A explicação de como as diferentes culturas apelam para as diferentes esferas poderia levar a um relativismo sem espinha dorsal, em que nunca teríamos bases para criticar a prática de outra cultura, por mais bárbara que fosse, porque "nós temos nosso tipo de moral e eles têm o deles".
E toda a empreitada parece estar nos arrastando para um niilismo amoral, em que a própria moralidade seria reduzida de um princípio transcendental a uma invenção de nosso circuito neural.
Na realidade, nenhum desses temores se justifica, e é importante entender por quê. A primeira incompreensão envolve a lógica das explicações evolucionistas. Os biólogos evolucionistas às vezes antropomorfizam o DNA pelo mesmo motivo que os professores de ciência acham útil fazer seus alunos imaginarem o mundo do ponto de vista de uma molécula ou de um raio de luz.
Um atalho para compreender a teoria da seleção sem usar a matemática é imaginar que os genes são pequenos agentes que tentam fazer cópias de si mesmos.
Infelizmente, o "meme" do gene egoísta escapou dos livros de biologia popular e se transformou na idéia de que os organismos (incluindo as pessoas) agem impiedosamente por interesse próprio. E isso não tem sentido. Os genes não são um reservatório de nossos desejos obscuros e inconscientes.
Tampouco o altruísmo recíproco -a razão evolucionária por trás da justiça- implica que as pessoas fazem boas ações na expectativa cínica de uma recompensa futura.
Todos sabemos de boas ações sem retribuição, como dar gorjeta para uma garçonete em uma cidade à qual você nunca voltará ou se jogar sobre uma granada para salvar os companheiros de pelotão. Essas irrupções de bondade não são tão anômalas para um biólogo quanto poderiam parecer.
Uma compreensão biológica do senso moral não significa que as pessoas sejam calculistas, tentando maximizar seus genes ou seu interesse próprio. Mas onde ela deixa o próprio conceito de moralidade?

Deus como solução rápida
A visão científica nos ensinou que algumas partes de nossa experiência subjetiva são produto de nossa constituição biológica e não têm contrapartida objetiva no mundo. Mas, se a distinção entre certo e errado também é um produto da programação do cérebro, por que deveríamos acreditar que é mais real que a distinção entre vermelho e verde?
E, se é apenas uma alucinação coletiva, como podemos afirmar que males como o genocídio e a escravidão são errados para todos nós, e não apenas repulsivos para nós?
Colocar Deus a cargo da moral é uma maneira de solucionar o problema, é claro, mas Platão resolveu isso rapidamente há 2.400 anos. Deus teria um bom motivo para designar certos atos como morais e outros como imorais? Se não -se seus mandamentos são caprichos divinos-, por que devemos levá-los a sério?
Talvez nasçamos com um senso moral rudimentar, e, assim que o elaboramos com o raciocínio moral, a natureza da realidade moral nos force a algumas conclusões, mas não a outras. O realismo moral, como essa idéia é chamada, é rico demais para muitos filósofos. Mas uma versão diluída da idéia -se não uma lista de mandamentos cosmicamente inscritos, pelo menos algumas inferências- não é loucura.
Duas características da realidade levam qualquer agente social racional e autopreservante a uma direção moral. E elas poderiam fornecer um parâmetro para determinar quando os julgamentos de nosso senso moral estão de acordo com a própria moralidade.
Uma é a prevalência dos jogos que não são de perder ou ganhar. Em muitas áreas da vida, duas partes se saem objetivamente melhor se ambas agirem de maneira não-egoísta do que se cada uma agir egoisticamente. Você e eu ficaremos melhor se dividirmos nossos excedentes, salvarmos os filhos do outro em perigo e não atirarmos um no outro.
Essas projeções contábeis não são minúcias da programação cerebral nem são ditadas por um poder sobrenatural -estão na natureza das coisas.
O outro suporte externo da moral é uma característica da própria racionalidade: ela não pode depender do ponto de vantagem egocêntrico do raciocinador. Não posso agir como se meus interesses fossem especiais só porque eu sou eu e você não é, assim como não posso convencê-lo de que o lugar em que estou é um lugar especial no universo só porque eu estou nele.
Não por coincidência, o centro dessa idéia -a intercambialidade de perspectivas- aparece constantemente nas filosofias morais mais bem pensadas da história, incluindo a "regra de ouro" (ela mesma várias vezes descoberta); o "ponto de vista da eternidade" de Espinosa; o "contrato social" de Hobbes, Rousseau e Locke; o "imperativo categórico" de Kant; e o "véu da ignorância" de Rawls.
Também é subjacente à teoria de Peter Singer do círculo em expansão -a proposta otimista de que nosso senso moral, embora moldado pela evolução para supervalorizar a si mesmo, aos parentes e ao clã, pode nos levar a um caminho de progresso moral, pois nosso raciocínio nos obriga a generalizá-lo para círculos cada vez maiores de seres sencientes.

Autoconhecimento
A moral, portanto, ainda é algo maior do que nosso senso moral herdado, e a nova ciência do senso moral não torna obsoletos o raciocínio e a convicção morais. Ao mesmo tempo, suas implicações para nosso universo moral são profundas.
No mínimo, a ciência nos diz que, mesmo quando a agenda de nossos adversários é mais surpreendente, eles podem não ser psicopatas amorais, mas estar sujeitos a uma mentalidade moral que lhes parece tão obrigatória e universal quanto a nossa é para nós.
É claro que alguns adversários são de fato psicopatas; outros estão tão intoxicados por uma moralização punitiva que estão além do limite da razão. E em lugar nenhum a moralização é mais perigosa do que em nosso maior desafio global.
A ameaça da mudança climática provocada pelos seres humanos se tornou motivo para uma reunião da revivescência moralista. Em muitas discussões, a causa da mudança climática são o excesso de indulgência (caminhonetes demais) e a degradação (sujar a atmosfera), e as soluções são a temperança (conservação) e a expiação (comprar cupons de crédito de carbono).
Mas os especialistas concordam que esses números não se somam: mesmo que todos os americanos se tornassem conscienciosos sobre os efeitos de suas emissões de carbono sobre a mudança climática, seriam irrisórios, no mínimo, porque 2 bilhões de indianos e chineses provavelmente não imitariam nossa abstemia renascida.
Embora a conservação voluntária possa ser uma fatia de uma torta de redução de carbono efetiva, as outras fatias terão de ser moralmente entediantes, como um imposto de carbono e novas tecnologias energéticas, ou mesmo tabus, como a energia nuclear e a manipulação deliberada do oceano e da atmosfera.
Nosso hábito de moralizar os problemas, misturando-os com intuições de pureza e contaminação, e descansar satisfeitos quando temos os sentimentos certos, pode nos impedir de agir acertadamente.
Longe de desmistificar a moral, portanto, a ciência do senso moral pode fazê-la avançar, permitindo-nos enxergar através das ilusões que a evolução e a cultura nos impuseram e nos concentrar em objetivos que podemos compartilhar e defender. Como escreveu Anton Tchékhov: "O homem se tornará melhor quando você lhe mostrar como ele é".


STEVEN PINKER é professor de psicologia na Universidade Harvard (EUA) e autor de "O Instinto da Linguagem" (ed. Martins Fontes) e "Tábula Rasa" (Cia. das Letras). A íntegra deste texto foi publicada no "New York Times".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: + literatura: Ironia de mão única
Próximo Texto: Iluminismo 2.0
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.