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O PARAÍSO É LOGO ALI
Sucesso de público desde o século 14, "Viagens de Jean de Mandeville" embaralha mito e verdade ao tratar do Oriente
Um editor disse que a viagem mais longínqua que Mandeville fez foi até a livraria mais próxima (para adquirir os livros em que basearia sua narrativa)
SHEILA MOURA HUE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Entre 1356 e 1366, começaram a circular na
Europa cópias manuscritas de um livro que
teria uma imensa e
impressionante difusão.
No século 15 já podia ser lido
em todas as principais línguas
européias e, no 16, encontravam-se aos milhares tanto as
cópias manuscritas quanto as
edições impressas, traduzido
mesmo para o tcheco e o dinamarquês (mas nunca para o
português).
As "Viagens de Jean de Mandeville" foram durante muito
tempo, como dizemos hoje, um
best-seller.
Clássico da literatura de viagem, essa singular narrativa
medieval deve sua longevidade
tanto a suas características,
únicas em seu gênero, quanto
às diferentes interpretações
que despertou em seus leitores
ao longo do tempo. Esta primeira tradução salda uma dívida de alguns séculos entre a língua portuguesa e o velho Jean
de Mandeville.
Na época do auge das peregrinações à Terra Santa, este livro narrava não só a pia jornada como ainda avançava em direção ao Oriente distante, até
atingir a China do grande
Khan. No caminho, entre as incríveis peripécias de um viajante pelo espaço mental da Idade
Média, detalha itinerários, dados geográficos, descreve os estranhos povos, conta histórias
e maravilhas e advoga a teoria
da esfericidade da Terra.
Tradição
Mandeville, percorrendo o
Oriente, encontra a fonte da juventude e bebe da sua água,
chega a se avizinhar do Paraíso
("sobre o Paraíso não posso falar com propriedade, pois não
estive lá") e conhece o reino do
preste João.
Ao longo desse percurso narrativo, seu autor, de acordo
com os códigos culturais de sua
época, se baseou em uma série
de fontes, orais e escritas. A
composição literária, tanto na
Idade Média como no Renascimento, pautava-se na imitação,
ou seja, na cópia de modelos
autorizados, e não no moderno
parâmetro da originalidade.
Seu livro, como o de muitos
de seu século, é uma compilação de outros, não só de escritores antigos, como Plínio e Heródoto, mas também de manuais de peregrinos, novelas de
cavalaria, relatos de viagem,
tratados geográficos e outras
fontes disponíveis. Mas tudo
narrado de tal forma a parecer
produto de sua própria experiência como viajante.
Os homens com rosto de cachorro e a fonte da juventude
não provocaram nenhum sentimento de desconfiança ao leitor medieval, como causaram a
leitores de outras épocas. Durante pelos menos 200 anos,
Mandeville foi tomado como
uma das maiores autoridades
em Oriente.
Tanto Cristóvão Colombo
quanto o infante dom Henrique eram seus admiradores e
nele se basearam para suas viagens em direção ao Oriente.
Mas, já na segunda metade do
século 16, o conhecimento
construído pela experiência
européia nas rotas dos descobrimentos, que pôs em xeque
os autores clássicos, fez com
que Mandeville passasse a ser
visto sob a luz da descrença.
Descrença
Eram os primeiros passos
para a sua total e completa desmoralização. As maravilhas de
Mandeville não resistiram à razão iluminista e chegaram ao
século 19 como mentiras forjadas por um mentiroso profissional. Já no final do século 19,
a descrença atingiu o próprio
autor. Mandeville não seria
mais que uma persona, uma ficção, uma fraude.
Mas nem isso fez com que a
popularidade do livro esmorecesse entre seus sempre renovados leitores.
Forjaram-se várias teorias a
respeito da autoria e da narrativa. Houve quem afirmasse que
o verdadeiro autor era Jean
d'Outremeuse, cujo pseudônimo seria Jean de Mandeville. E
houve quem afirmasse o contrário: que d'Outremeuse era o
pseudônimo de Mandeville.
Seu editor vitoriano, sir
George Warner, acusou-o de
ter deliberadamente escondido
suas fontes.
Outros constataram que lendas e mitos contados por outros autores se transformavam
em fatos presenciados pelo autor em pessoa. Um editor disse
que a viagem mais longínqua
que Mandeville fez foi até a livraria mais próxima (de forma
a adquirir os livros nos quais
basearia sua narrativa).
Como demonstra Susani Silveira Lemos França na introdução desta esmerada edição
das "Viagens de Jean de Mandeville", talvez seja em nossa
contemporaneidade, quando
as categorias de autor e de originalidade se mostram inadequadas para a análise e a leitura
das obras da Idade Média, que
esse intrigante e ainda atraente
livro de viagens -reais ou imaginárias- possa ser fruído na
beleza e no vigor de suas contradições.
SHEILA MOURA HUE é pesquisadora do Real
Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, e organizadora de "Antologia de Poesia Portuguesa - Século 16" (7 Letras).
VIAGENS DE JEAN DE MANDEVILLE
Autor: Jean de Mandeville
Tradução: Susani Silveira L. França
Editora: Edusc (tel. 0/xx/14/ 3235-7111).
Quanto: R$ 29,90 (266 págs.)
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