São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008

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O PARAÍSO É LOGO ALI

Sucesso de público desde o século 14, "Viagens de Jean de Mandeville" embaralha mito e verdade ao tratar do Oriente

Um editor disse que a viagem mais longínqua que Mandeville fez foi até a livraria mais próxima (para adquirir os livros em que basearia sua narrativa)

SHEILA MOURA HUE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre 1356 e 1366, começaram a circular na Europa cópias manuscritas de um livro que teria uma imensa e impressionante difusão.
No século 15 já podia ser lido em todas as principais línguas européias e, no 16, encontravam-se aos milhares tanto as cópias manuscritas quanto as edições impressas, traduzido mesmo para o tcheco e o dinamarquês (mas nunca para o português).
As "Viagens de Jean de Mandeville" foram durante muito tempo, como dizemos hoje, um best-seller.
Clássico da literatura de viagem, essa singular narrativa medieval deve sua longevidade tanto a suas características, únicas em seu gênero, quanto às diferentes interpretações que despertou em seus leitores ao longo do tempo. Esta primeira tradução salda uma dívida de alguns séculos entre a língua portuguesa e o velho Jean de Mandeville.
Na época do auge das peregrinações à Terra Santa, este livro narrava não só a pia jornada como ainda avançava em direção ao Oriente distante, até atingir a China do grande Khan. No caminho, entre as incríveis peripécias de um viajante pelo espaço mental da Idade Média, detalha itinerários, dados geográficos, descreve os estranhos povos, conta histórias e maravilhas e advoga a teoria da esfericidade da Terra.

Tradição
Mandeville, percorrendo o Oriente, encontra a fonte da juventude e bebe da sua água, chega a se avizinhar do Paraíso ("sobre o Paraíso não posso falar com propriedade, pois não estive lá") e conhece o reino do preste João.
Ao longo desse percurso narrativo, seu autor, de acordo com os códigos culturais de sua época, se baseou em uma série de fontes, orais e escritas. A composição literária, tanto na Idade Média como no Renascimento, pautava-se na imitação, ou seja, na cópia de modelos autorizados, e não no moderno parâmetro da originalidade.
Seu livro, como o de muitos de seu século, é uma compilação de outros, não só de escritores antigos, como Plínio e Heródoto, mas também de manuais de peregrinos, novelas de cavalaria, relatos de viagem, tratados geográficos e outras fontes disponíveis. Mas tudo narrado de tal forma a parecer produto de sua própria experiência como viajante.
Os homens com rosto de cachorro e a fonte da juventude não provocaram nenhum sentimento de desconfiança ao leitor medieval, como causaram a leitores de outras épocas. Durante pelos menos 200 anos, Mandeville foi tomado como uma das maiores autoridades em Oriente.
Tanto Cristóvão Colombo quanto o infante dom Henrique eram seus admiradores e nele se basearam para suas viagens em direção ao Oriente. Mas, já na segunda metade do século 16, o conhecimento construído pela experiência européia nas rotas dos descobrimentos, que pôs em xeque os autores clássicos, fez com que Mandeville passasse a ser visto sob a luz da descrença.

Descrença
Eram os primeiros passos para a sua total e completa desmoralização. As maravilhas de Mandeville não resistiram à razão iluminista e chegaram ao século 19 como mentiras forjadas por um mentiroso profissional. Já no final do século 19, a descrença atingiu o próprio autor. Mandeville não seria mais que uma persona, uma ficção, uma fraude.
Mas nem isso fez com que a popularidade do livro esmorecesse entre seus sempre renovados leitores.
Forjaram-se várias teorias a respeito da autoria e da narrativa. Houve quem afirmasse que o verdadeiro autor era Jean d'Outremeuse, cujo pseudônimo seria Jean de Mandeville. E houve quem afirmasse o contrário: que d'Outremeuse era o pseudônimo de Mandeville.
Seu editor vitoriano, sir George Warner, acusou-o de ter deliberadamente escondido suas fontes.
Outros constataram que lendas e mitos contados por outros autores se transformavam em fatos presenciados pelo autor em pessoa. Um editor disse que a viagem mais longínqua que Mandeville fez foi até a livraria mais próxima (de forma a adquirir os livros nos quais basearia sua narrativa).
Como demonstra Susani Silveira Lemos França na introdução desta esmerada edição das "Viagens de Jean de Mandeville", talvez seja em nossa contemporaneidade, quando as categorias de autor e de originalidade se mostram inadequadas para a análise e a leitura das obras da Idade Média, que esse intrigante e ainda atraente livro de viagens -reais ou imaginárias- possa ser fruído na beleza e no vigor de suas contradições.


SHEILA MOURA HUE é pesquisadora do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, e organizadora de "Antologia de Poesia Portuguesa - Século 16" (7 Letras).

VIAGENS DE JEAN DE MANDEVILLE
Autor:
Jean de Mandeville
Tradução: Susani Silveira L. França
Editora: Edusc (tel. 0/xx/14/ 3235-7111).
Quanto: R$ 29,90 (266 págs.)


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