São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008

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+ sociedade

Ruas da amargura

ANTES SÍMBOLOS DO "AMERICAN WAY OF LIFE", SUBÚRBIOS DOS EUA ATRAEM CADA VEZ MAIS POBRES E IMIGRANTES E PASSAM A SE PARECER COM OS CENTROS DEGRADADOS DAS METRÓPOLES

EYAL PRESS

O condado de Rockingham, na Carolina do Norte (Sudeste dos EUA), nunca foi conhecido por sua opulência, mas até pouco tempo atrás a maioria dos moradores não hesitaria em descrevê-lo como confortavelmente classe-média.
Durante décadas, ele deveu sua prosperidade à indústria têxtil e de tabaco, que pagava o suficiente para criar uma família e comprar uma boa casa.
Entre os que fizeram isso está Johnny Price, um afro-americano de 44 anos que mora numa casa térrea com janelas verdes na rua Rouxinol, uma área arborizada nas proximidades da cidade de Eden.
Na entrada da casa há uma grande perua. Pelos padrões de alguns subúrbios, é um quadro modesto. Mas, para Price, o mais novo de dez irmãos, cujo pai morreu quando ele tinha seis anos e cuja mãe trabalhava como empregada doméstica, é um testemunho das recompensas do trabalho duro.
Mas Price perdeu o emprego que teve por 19 anos, numa onda de demissões na fábrica têxtil Unified. Agora se esforça para viver com o seguro-desemprego e se pergunta como conseguirá continuar pagando sua hipoteca.

Estereótipo
Comunidades fechadas e condomínios com casas de sonho, mansões cercadas por lagos artificiais e centros empresariais envidraçados: essas são as imagens geralmente evocadas pelos subúrbios dos EUA.
Mas basta deixar os limites urbanos de qualquer grande área metropolitana para encontrar empregos mal remunerados, hipotecas executadas e famílias que não conseguem pagar alimentação e saúde.
Nos três condados ao redor de Greensboro, Carolina do Norte, o índice de pobreza aumentou. E Greensboro não é a única. Em dezembro de 2006, o Instituto Brookings publicou um relatório mostrando que, em todo o país, a pobreza suburbana vem crescendo nos últimos anos. O resultado é um marco histórico que passou estranhamente ignorado: pela primeira vez há mais americanos pobres vivendo em subúrbios do que
em todas as cidades somadas. Desde que os subúrbios existem, os norte-americanos tendem a considerá-los santuários imaculados aonde as pessoas vão para evitar a proximidade com os pobres. O exemplo histórico mais conhecido é o êxodo maciço da classe média branca das cidades centrais do país, que se acelerou no rastro dos tumultos e da insegurança social na década de 60.
Na verdade, porém, a restauração de muitos bairros urbanos, em cidades como Nova York, San Francisco e Washington, forçou a saída de moradores da classe trabalhadora, em uma inversão da clássica história da migração.
Muitos dos empregos nos subúrbios cabem aos imigrantes. Você vê pessoas como os trabalhadores diaristas que se reúnem todas as manhãs no estacionamento da loja Home Depot, no condado de Nassau, em Long Island, onde a renda familiar média é de US$ 87.558 [cerca de R$ 154 mil] e o índice de pobreza geral é razoavelmente baixo, mas onde a demanda por cupons alimentares aumentou 40% desde 2003.
Embora os diaristas em trabalhos de telhado e construção ganhem em média US$ 10 por hora, muitos não vêem um centavo disso. Um estudo feito por pesquisadores da Universidade da Califórnia em Los Angeles descobriu que quase a metade deles sofre furto de salários.
Um trabalhador mexicano com quem conversei disse que lhe deviam US$ 400 por um serviço de encanamento que havia feito. Ele usava um abrigo de malha com capuz, em vez de casaco, e colocava os dedos diante da boca para aquecer as mãos nuas -roupas adequadas para o frio seriam um luxo.

Pela primeira vez há mais americanos pobres vivendo em subúrbios do que em todas as cidades somadas


Fila da comida
Johnny Price costumava ganhar US$ 15 por hora, com seguro-saúde e férias. Estudando contabilidade, espera evitar o destino de Jodi Wilmouth, que conheci no dispensário de comida da Cruz Vermelha de Rockingham, em Eden.
Wilmouth ganha US$ 6,25 por hora como caixa em uma loja de departamentos chamada Belk, o que, segundo ela, não basta para suas despesas básicas. "O que temos aqui são pobres trabalhadores", disse Ada Wells, que trabalha no dispensário, também ex-empregada da indústria têxtil.
Há certas vantagens em ser pobre em um lugar que não seja o centro urbano de Cleveland ou Detroit. Price não precisa se preocupar com seus filhos crescendo numa rua cheia de crack e gangues. Mas os subúrbios também têm suas desvantagens. Não há sistema de transporte público na maioria das áreas suburbanas.
As pessoas que aparecem no dispensário da Cruz Vermelha em Rockingham chegam amontoadas num só veículo, uma de cada família, para economizar gasolina.
E a nova pobreza suburbana também fez com que em muitas cidades surgissem diversos órgãos de serviços sociais para oferecer ajuda. Quase 7.000 pessoas procuraram o dispensário alimentar em 2006, um aumento de sete vezes em relação a 2000.

Moradia
Um desafio ainda mais premente é encontrar um lugar acessível para morar, já que a maioria das moradias subsidiadas para pessoas de baixa renda nos EUA foi construída nas cidades. Na Carolina do Norte, entre as opções estão lugares como o trailer de Barbara Hall, 62, que morava numa casa de quatro quartos com seu marido e filhos antes de se divorciar e perder o emprego.
Comparada com Barbara Hall, que vive do auxílio-doença, Rosa Melara, que vive em Montgomery, em Maryland, está se saindo bem. Trabalha em um salão de manicure e ganhou US$ 28 mil em 2006.
Melara mora em um condado com mais moradias de baixo custo que a maioria dos subúrbios, graças a políticas de zoneamento inclusivas. Mas aluga uma garagem reformada sem aquecimento, porque a maioria dos apartamentos e casas em Montgomery ainda está muito acima de suas posses.
Uma força-tarefa sobre habitação acessível no condado advertiu que existia "uma lacuna inegável" entre a necessidade de habitação de baixo custo e sua disponibilidade na área, e não somente para os pobres: 70% dos empregos no condado, incluindo os professores iniciantes em seu elogiado sistema escolar público, policiais e bombeiros, ganham menos de US$ 50 mil por ano. Enquanto isso, a casa unifamiliar média é vendida por US$ 486 mil.
É muito pior, é claro, para os verdadeiros indigentes, no mínimo porque muitos suburbanos que poderiam contratá-los como babás ou ser atendidos por eles em restaurantes não os querem como vizinhos.

Exclusão
Em junho de 2005, as autoridades de Brookhaven, em Long Island, deram batidas para fechar casas superlotadas. Outros condados adotaram leis para afastar os trabalhadores diaristas, outro sinal de que ser pobre nos subúrbios tem o peso adicional de os fazerem sentir que não são bem-vindos.
Vários trabalhadores que conheci me disseram que foram chamados de "parasitas". Alguns foram alvo de pedradas. Esses incidentes podem ser considerados um produto de racismo ou outra coisa: uma sensação de ansiedade em relação ao futuro que vai muito além das fileiras dos pobres.
Nos últimos anos, o emprego inicial típico na região pagou US$ 24 mil, muito menos que os US$ 60.780 que o Instituto de Políticas Econômicas estima que uma família de quatro pessoas precisaria para cobrir as despesas básicas da vida.

Política
Começa a se desfazer a história contada pelos republicanos de que as pessoas dos subúrbios são seus eleitores naturais. Nas eleições de 2006, a vantagem dos republicanos nos exúrbios diminuiu consideravelmente.
Os democratas conseguiram 60% dos votos nos subúrbios interiores, 55% no anel seguinte e a maioria dos votos suburbanos em geral.
A suposta vantagem republicana se baseava na suposição de que os novos centros suburbanos estavam se enchendo de prósperos profissionais de classe média. Muitos subúrbios parecem estar se enchendo de um tipo social diferente: pais estressados, preocupados com o seguro-saúde, as mensalidades da faculdade e as hipotecas.
Certamente os ricos engenheiros de software que procuram os subúrbios emergentes ainda se interessarão mais por impostos baixos. Mas mais da metade das pessoas nos subúrbios emergentes não tem diploma universitário. A população afro-americana nesses lugares aumentou 50% na década de 90. "Se você examinar os subúrbios emergentes, eles estão se tornando rapidamente mais diversificados", disse o pesquisador democrata Ruy Teixeira. "Estão cheios de pessoas que ganham pouco."
Se as cidades e os subúrbios enfrentam cada vez mais os mesmos problemas, não seria sensato trabalharem juntos?
David Rusk, ex-prefeito de Albuquerque, é um antigo defensor de um desenvolvimento regional mais eqüitativo. Cita o caso do sul de Nova Jersey.
"Nas dez municipalidades de maior crescimento, em termos de criação de empregos, com 24 mil novas vagas, foram construídas 1.200 unidades habitacionais de baixo custo. Enquanto isso, as dez áreas que tiveram maior perda de empregos viram 25 mil empregos desaparecerem, mas tiveram 16 mil unidades habitacionais de preços controlados construídas."
Os reformadores de Nova Jersey defendem rejeitar o Acordo de Contribuição Regional, que permite que um município -geralmente um subúrbio afluente- contorne a obrigatoriedade de construir moradias de baixo custo em seus limites pagando para outro município.
Talvez seja ingênuo imaginar que essas práticas vão cessar totalmente: afinal, os subúrbios foram criados exatamente para erguer barreiras espaciais entre ricos e pobres.
Jonathan Lange, um organizador da Fundação de Áreas Industriais, trabalha em duas das áreas mais ricas do país: os condados de Howard e Montgomery, em Maryland. A pobreza nos dois lugares é "dispersa, difícil de localizar e extremamente difícil de organizar", ele diz. No entanto ela está lá. Há pouco tempo, um pastor conhecido de Lange descobriu que há dezenas de crianças sem-teto em Oakland Mills, um colégio do condado de Howard.
Algumas delas dormem em carros, outras em motéis baratos, uma experiência inimaginável para muitos de seus colegas de classe, talvez, mas cada vez mais emblemática da população suburbana atual.


A íntegra deste texto saiu em 2007 na "Nation".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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