São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

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O eixo da inquietude

A previsão era de que os dois fóruns, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre e o Fórum Econômico Mundial de Nova York, fossem o contrário um do outro, defendendo propostas absolutamente opostas e até mesmo lançando ataques um contra o outro. Mas o resultado desse confronto contrariou todas as expectativas. Em primeiro lugar, tudo levava a crer que o Fórum de Nova York, ex-Davos, seria um esforço difícil e desajeitado para responder ao grande movimento que resultaria na realização do 2º Fórum de Porto Alegre. De fato, o encontro de Nova York foi constantemente -mas sobretudo no início- colocado na sombra dos movimentos reunidos de Porto Alegre. Entretanto, a cada dia e até mesmo a cada hora que se passava, a situação foi se modificando. Talvez porque o Fórum de Porto Alegre, por sua própria natureza, tenha sido mais um lugar de protesto do que de apresentação de propostas, mas também -embora isso seja um aspecto secundário- porque tenha sido utilizado por políticos ou políticas de diversos países.

Vulnerabilidade
Sobretudo, porém, o Fórum de Nova York, que reuniu figuras importantes dos mundos dos negócios, da política, da imprensa e da vida intelectual, se definiu e evoluiu num sentido que seus organizadores provavelmente desejavam e tinham previsto, mas que surpreendeu grande parte de seus participantes. O tema dominante em Nova York foi a vulnerabilidade, a fragilidade da ordem da qual os Estados Unidos são o poder central, e essa consciência levou os participantes a reconhecerem rapidamente a necessidade absoluta de que a ordem mundial seja repensada e transformada. Consequentemente, as críticas contra o que foi chamado de o unilateralismo dos EUA se multiplicaram. É evidente que não se ouviram milionários ou governantes apresentando propostas semelhantes às que eram feitas em Porto Alegre. Mas a distância que separava os participantes do fórum do governo americano não demorou a ser concretamente percebida. É verdade que, nesses mesmos dias, o presidente Bush e vários membros importantes de seu governo, em especial Colin Powell, anunciaram posições brutais, diante dos membros do fórum ou dirigindo-se diretamente à opinião pública.

Auto-satisfação
O presidente falou de um "eixo do mal", dando a entender que os Estados Unidos vão atacar os países que fazem parte dele. E, num caso muito preciso -o da Argentina-, um ministro americano foi ouvido falando em termos extremamente impiedosos. Essas declarações não correspondiam ao estado de ânimo de pessoas em sua grande maioria ligadas ao sistema econômico atual e aos destinos de suas empresas, mas que, em primeiro lugar, desconfiam de aventuras cada vez mais perigosas e sem final previsível e, em segundo, confrontadas com as evidências, admitem que o aumento da miséria, a destruição das culturas e o enfraquecimento dos governos estão apenas agravando um caos que só pode resultar em catástrofe.
Seria exagero afirmar que, de agora em diante, o Fórum de Porto Alegre, o de Nova York e o governo americano representam três pontas de um triângulo. A distância entre o Fórum de Nova York e o governo americano é bem menor, evidentemente, do que a que existe entre o Fórum de Porto Alegre e os dois outros centros de decisão e influência. Mas seria perigoso nos contentarmos com condenações globais, agora que o próprio Fórum de Nova York mostrou, não a rejeição do sistema atual, mas uma inquietude quanto a suas consequências prováveis e uma vontade de conscientizar os dirigentes americanos dos problemas que afligem o mundo como um todo.
Não devemos esquecer que o Fórum de Nova York é organizado por um grupo pequeno de pessoas, muitas delas jovens, que vivem em Genebra e vêm de diferentes países europeus. Esse grupo não procura impor uma filosofia política aos participantes, sobretudo não aos americanos, mas está claro que o programa do fórum, desde o início, manifestou a disposição de levar em conta preocupações graves.
Assim sendo, e sem deixar de apoiar a população de Nova York, chocada pelos atentados, queria abrir a reflexão e fazer os EUA emergirem de um estado de auto-satisfação que pode ter consequências desastrosas. É nesse sentido que, em lugar de ampliar a distância que o separa do Fórum de Porto Alegre, o de Nova York reduziu essa distância e procurou alertar o governo americano quanto à sua incompreensão profunda dos problemas do mundo.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Clara Allain.


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