São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Simpatia problemática
Aí o ponto de enlace com a informalidade nacional, que relativiza tudo, as leis inclusive, ou com o jogo personalizado e permanente das acomodações em torno da força, igualmente aqui e agora, jogo que deixa na berlinda o formalismo das regras gerais e com ele -levado o sentimento ao limite- as garantias do estado de direito. A vertigem valorativa ligada a esses movimentos, em que o ilícito está desonerado e a superação crítica e a regressão se confundem, marca muitos dos momentos altos da literatura brasileira (27). Entre as situações de meia-vigência das categorias burguesas e o ímpeto desconvencionalizador da arte moderna há uma simpatia possível, problemática em todos os sentidos.
Observem-se nesse espírito os vários negócios feitos no livro, nenhum dentro da lei. "NEGÓCIO// Depois a gente acerta" (28). Pelo partido estético tomado, resumido no tom a que obedecem as falas, a legalidade burguesa fica sem cabida. A transação econômica, quando aparece, não toma a forma de contrato, ou seja, não cria a equivalência formal entre os sujeitos, nem a liberdade e as garantias correlatas, que não prescindem de apoios suplementares. Ou, ainda, a desigualdade de poder entre as partes não é suspensa pelas ficções igualadoras da lei. Nada, seja o que for, se faz por força do direito, sempre obrigado a levar em conta outras instâncias incidentes, que fazem de cada caso um caso e de cada momento um momento. A igualdade geral e a nota humana não são dadas pelo respeito à norma, embora esta se faça sentir, mas pela informalidade que a infringe e parece constituir o coletivo, inseparável de algum tipo de conivência. O poema adquire o seu alcance pleno quando é lido em constelação com os já mencionados "Então bota de lado essa cerimônia", "Soca ela/ soca", "Tem bola em que ele não vai", "Mas se todos fazem", além de outros, que deixam aflorar a malha comum, conferindo ao conjunto uma feição diferençada, em que sempre a lei da força tem algum papel. "SELAS// Experimentei/ Não reagiu" (29). Os termos são equestres, o auditório é a roda familiar ou quase, e a vítima provável é um serviçal ou parente em má situação.
O quadro dá o que pensar. Estamos diante da preferência temática de um poeta? Diante de um diagnóstico involuntário, decorrente de seu esforço de exatidão mimética e de fidelidade à língua viva? Digamos que a regra da irregularidade é um paradoxo que condensa a condição moral e intelectual do país periférico, onde as formas canônicas do presente, ou dos países centrais, não são praticáveis na íntegra, sem prejuízo de serem obrigatórias como espelho e de darem a pauta. É evidente o sinal negativo e de deficiência inerente a essa condição, a qual é complementar de outra, que se situa noutras bandas e tem sinal positivo. Está aí o país-problema, que a seu modo, vista a generalidade do desvio, configura um exotismo ou, nos aspectos graves, uma excrescência. Por outro lado, é também da lógica das coisas que haja, além do complexo de inferioridade, uma reciprocidade de desdéns, e que, olhado daqui, o império da lei é que faça figura questionável e extravagante, entendido como falta de naturalidade, lamentável impessoalidade, abstração irreal, presunção ridícula etc., sem falar na hipocrisia e na prepotência. A discrepância das avaliações, cada qual com a sua parte de razão, suficiente para desqualificar a outra, abre perspectivas à crítica.
"HOSPITALIDADE// Se seu país é assim/ tão bom/ por que não volta?" (30). Sublinhada pela ironia do título, bem à vista, presenciamos a grosseria ressentida dos anfitriões, cidadãos da nação rica, que não perdoam a saudade do imigrante e cobram, além de trabalho, alinhamento. Em plano omitido, embora principal, cabe ao leitor imaginar as maravilhas com que o pobre diabo terá gabado o Brasil da informalidade, de que fugiu e a que não quer voltar. O poema torna patente a complementaridade das insatisfações, ou das alienações, nos países da periferia e do centro, que formam sistema e dizem a verdade umas sobre as outras. É certo que não há por que recomendar a informalidade, cujo fundamento último é a fratura social, ou seja, a integração precária e a falta de direito dos pobres que no entanto também se utilizam dela e a desenvolvem no sentido de suas necessidades. Feita a ressalva, que é de base, não há por que desconhecer as liberdades próprias e o alcance polêmico desse quase estado de natureza, em especial a figura engessada que fazem a seu lado as regulamentações burguesas da vida. Atento aos dois aspectos e independente o bastante para não fechar os olhos para nenhum deles, o livro de Francisco Alvim ensina muito a respeito. O seu mundo desidealizado e inferiorizado, estruturalmente de segunda classe, respira não obstante uma poesia peculiar, ligada aos benefícios da naturalidade, aquela mesma que decorre da relativização da lei e da suspensão do sacrifício incluído nas superioridades desta.
Como admitir o alcance de matérias tão desprestigiadas e fora de tudo, para não dizer caipiras? "TE CONTAR// Dorzinha enjoada/ Ela começa perco a graça/ Dói aí e dói aqui/ Dorzinha chata" (31). O incômodo, que não tem nome científico e cujo remédio não é fabricado pela indústria farmacêutica, está aquém das equações peculiares ao mundo adiantado e das correspondentes intervenções objetivas. Não há como livrar-se do achaque, que não mata nem tem cura à vista, mas nem por isso deixa de existir. É claro que isso não o torna mais "natural" que uma pneumonia, curada com antibiótico e computada na estatística salvo pela linha direta com os lados inelutáveis da vida, aqueles que a ciência e os medicamentos até segunda ordem não alcançam, ao mesmo tempo em que os relegam a um segundo plano sem comentários, debaixo do tapete. Sob esse aspecto, de fato, a dorzinha arbitrária e caprichosa é uma presença radical, representando um lembrete incontornável e uma espécie de vitória, pela janela dos fundos, sobre a presunção moderna.
Dito isso, a naturalidade no caso tem aval ambíguo, ora da natureza ela mesma, ora da ordem social fora de esquadro, e tudo está nas transfusões entre os dois planos. O pé de intimidade com a dor, manifestado na sua personificação, através de diminutivos e adjetivos irritados, no formato anedótico, na queixa coloquial do título, bem como na sem-cerimônia com que ela entra e sai e troca de posição, é propriamente familiar. Assim, a dor e a sua vítima comportam-se conforme o padrão ideal da informalidade brasileira, pressionando e sendo pressionadas, à procura de uma acomodação "ad hoc", à margem dos progressos da medicina.
O padrão da informalidade domestica o enfrentamento intransferível entre a criatura e o sofrimento físico, o qual por seu lado lhe empresta o selo da naturalidade e, com ele, certa dignidade metafísica, a despeito do quase nada em questão. A conversinha é inconsequente, mas tem como horizonte o curso das coisas, a força inexorável do tempo e a terra incógnita à frente, verdades que são tabus da vida moderna e que sutilmente passam a funcionar como sabedorias próprias à vida brasileira. "E AGORA?// Ontem estivemos lá/ Está mais animado/ Teve muita dor" (32). Note-se que a perplexidade do título vem depois do alívio, o qual, contrariamente ao que seria de esperar, só agravou (prolongou?) o problema. A excelência de um poema tão sem ênfase, tão de vanguarda na busca da desconvencionalização, custa a se impor. A simplicidade como que espacial da disposição dos termos do impasse, que entretanto estão no tempo, é um alto momento de consciência materialista.
Ao assimilar-se ao mundo da informalidade, com o qual compartilha a nota diminuída, o achaque adquire cor nacional. Como indica o título "TE CONTAR", trata-se da paciência posta à prova. O sentimento da vida física reflete uma forma de sociabilidade: a dorzinha enjoada e chata, de que não há como livrar-se e que é preciso aguentar, tem figura de pessoa reconhecida, da parentela, no sentido ampliado e brasileiro do termo. Veja-se o assunto em versão social direta. "IRANI, MANDA GILSON EMBORA// Eu mando/ mas ele não vai" (33). O drama supõe a propriedade, mas na versão precária (antiquada? a única verdadeira?), que não independe do apoio da força. A moça de nome indígena e brasileirista, que pode ser filha, parente pobre, empregada ou agregada, manda em sinal de obediência. Quanto a Gilson, não há como determinar os seus motivos para desobedecer. Pode ser amor de primo, apego canino de empregado ou morador, desespero de quem não tem para onde ir. A insubordinação é muda, porém determinada e desarmante. Que fazer com o moço que não aceita ser mandado embora?
O mando que não se completa na obediência tem a sua graça, pois humaniza o mandante, que não dispõe livremente da propriedade e é obrigado a conviver com a relatividade dela e, naturalmente, com a teima do mandado.


Esta civilização extra-oficial e inframodelar, algo vexaminosa mas com potencial utópico por contraste, é a dimensão não-burguesa da reprodução da sociedade burguesa no Brasil


A dorzinha que é um zé-ninguém e que não dá para extirpar, embora não tenha direito de cidade, tem algo de um povo de casa, que não pode ser despedido e a que é preciso ceder um pouco. Salta aos olhos o inconveniente imobilista dessa limitação (em perspectiva burguesa), tanto quanto a sua lógica diferente, que impõe outro parâmetro à liberdade. Isso se a correlação de forças não for muito desigual -como entretanto sói ser- e se o paternalismo não trocar a sua face amável pela outra, do proprietário moderno, sem restrições. No corpo-a-corpo com o achaque, que não deixa de ser um toma-lá-dá-cá sem pauta fixa, e também um chora-menos-quem-pode-mais, a vítima empenha os seus recursos de vontade, paciência, adaptação, humor etc., tudo sob a pressão da natureza e a certa distância benfazeja do certo e do errado na sua acepção universalista. Algo paralelo ao que ocorre diante de Gilson, que não quer ir embora, ou com o negócio, que "depois a gente acerta", ou também na guerra doméstica: "Quanto mais você fala/ mais eu faço" (34). É como se abaixo da linha do direito, da ciência, da autonomia, da gramática, do progresso e dos demais imperativos modernos se abrisse outra civilização mais plástica e menos abstrata, comandada pelo relacionamento entre as pessoas, incluído aí o uso arbitrário de força e poder, cujas satisfações anacrônicas parecem fazer falta à vida dentro dos constrangimentos da norma civil reificada. Ora, esta civilização extra-oficial e inframodelar, algo vexaminosa mas com potencial utópico por contraste, é a dimensão não-burguesa da reprodução da sociedade burguesa no Brasil: uma dimensão inferior mas necessária, e portanto sábia, e, conforme o gosto, até superior. Os seus muitos lados, que vão do simpaticíssimo ao horrendo, são a substância e o problema do que a experiência histórica brasileira tem a oferecer. Segundo esteja a serviço de uma classe ou outra, a informalidade muda de feição. Quando ajuda a driblar as privações da pobreza pós-colonial, desprovida de direitos civis e de trabalho assalariado, mas sacramentada no formalismo despropositado da lei, ela tem conotação popular, civilizadora a seu modo. O seu olho para os estragos causados pelas abstrações burguesas é um elemento de humanidade e razão, a que se prende por momentos certa graça inconfundível na fala, nas condutas e letras brasileiras. Veja-se o caso de um português jeitoso, ex-feirante, que "criou uma sobrinha/ que lhe deu netos" (35). Mas ela costuma também funcionar como álibi ideológico para que os de cima fiquem à vontade para desconsiderar e atropelar os de baixo. Em sintonia com o tempo, a tônica do livro é esta segunda, sem que faltem os exemplos da primeira. "FACTÓTUM// Pior coisa/ é dever um favor a alguém/ Olha Virgílio/ a mim você não deve nada não/ Só a sua perna e" (36). A fala inicial sublinha a humilhação dos favores recebidos, suficiente para azedar a vida. Na resposta, para amenizar o caso, ou para espicaçar e agravar o débito, o patrão diz a seu agregado de nome romano que este não lhe deve nada, "Só a sua perna e". Imprimindo o clima ignóbil ao diálogo, a coisa não dita fica por conta da imaginação do leitor, que pode escolher entre as desgraças específicas desse universo, passíveis de serem evitadas pela intervenção de cima: cadeia, mutilação, morte, desonra da filha e o que mais for. A nota de paternalismo perverso entretanto está menos aí que na iniquidade contábil, de armazém de fazenda, que se impõe desde que reflitamos sobre o título. Depois de uma vida de serviços prestados, o faz-tudo continua em dívida, ao passo que seu protetor não lhe deve nada e muito menos sente obrigação ou humilhação. É uma versão de nosso "double bind" entre dependentes e proprietários, onde a dívida dos primeiros é da ordem da obrigação pessoal e infinita, e não do dinheiro, ao passo que a dos segundos é da ordem da conveniência e do cálculo, já que estes últimos circulam em dois mundos e podem ir e vir, à escolha, entre os papéis de fiel protetor e de indivíduo desobrigado e objetivo. Nos dois casos, a informalidade faculta aos de cima a estampa da civilidade amena, encobrindo o abismo social. A variante nova do assunto, que reflui sobre as demais, encontra-se nos poemas ligados a Brasília, ao poder, ao tempo da ditadura e ao medo. Aqui a dimensão burocrática e estatal faz que prospere o lado maléfico da informalidade, produzindo o paradoxo de um personalismo meio anônimo, que rebaixa o país a submundo. Ao despir o antigo invólucro patriarcal e rural, a informalidade passa a oprimir a todos, inclusive os seus beneficiários. "ARQUIVO// não pode ser de lembranças" (37). Por que não poderia? O pano de fundo da blague é a polícia política, que torna temível a noção de arquivo -e fútil a noção de lembrança. A frase pode ser humor negro de uma vítima potencial, ou também de um adepto da repressão. "CHIADO// Às vezes corre notícia/ dessas menos agradáveis/ e o ouvido chia" (38). Quais seriam essas notícias? Como em "FACTÓTUM", ou em "MAS", também aqui a parte silenciada é a principal. O observador escaldado não se arrisca a entrar em matéria, usa do eufemismo e limita o comentário político à comunicação de seus reflexos nervosos, aquém da responsabilidade pessoal, assimilados ao incômodo causado por um rádio mal ajustado. Em "SOMBRA", um "edifício negro/ na sombra amarela, imensa/ assombra toda a cidade// A ti não" (39). Com deliberação tremenda, o poeta se exclui do rol dos assombrados, fazendo a si mesmo a grave acusação de estar entre os que sabem (mas sabem o quê?) e por isso mesmo devem (a quem?) -modalidade atualizada do envolvimento do dependente, sobretudo o esclarecido, com o poder. Uma vez mais, tudo está no silêncio com referente social terrível. Em suma, são figuras da constelação muito familiar e ainda assim mal conhecida em que estão associados, por dentro, meandros do paternalismo, porões do Estado, brigas de casal, negócios irregulares, hábitos da doença, liberdades com a lei, euforias da beleza, displicências gramaticais, culpas de classe etc.

Linhas do conjunto
Mais difíceis de apreender, essas linhas do conjunto têm tanta realidade quanto os poemas um a um. Em parte são construções intencionais, em parte, subprodutos extraprograma, igualmente sugestivos. Apesar do risco de interpretação excessiva, vale a pena fixá-las e comentá-las, se não quisermos passar ao largo de aspectos capitais. Note-se a propósito que o artista é mestre não só no desbastamento e na configuração sibilina, mas também na escolha, a que no caso cabe um papel estruturador, próximo da seleção de episódios num romance realista cujo tecido conjuntivo fosse virtual e ficasse por conta do leitor. Depois de garimpar trivialidades memoráveis e de reduzi-las ao núcleo ativo, o poeta vai preferir alguns desses nadas, fazer o vácuo à sua volta e deixá-los sozinhos na página, para que produzam o estranhamento, se relacionem entre si e se ponham a fazer revelações, além de significarem o país, com as oscilações de voltagem correspondentes a esses desempenhos. Arbitrário e contingente no ponto de partida, pois as falas aproveitadas podiam ser outras, o procedimento no entanto é disciplinado pela intenção sistemática de apanhar a nacionalidade pelo ouvido, que é quem sabe.
A sequência dos poemas é fruto de muito cálculo, tem o caráter propositado da montagem e obedece a maquinações de encenador, de panfletário, de artista viajado, de intérprete da idéia nacional etc. Trata-se de instalar um campo de experiência cujos elementos de realidade são os poemas, que funcionam como arte e como documento; ou, ainda, de organizar uma exposição pública (embora em formato limitado de livro) do caráter não-público do Brasil. A empresa tem riscos, pois o nosso país do jeitinho é uma dessas generalidades duvidosas, de espectro largo, que tanto comportam o clichê quanto a intuição aguçada, que animou a pesquisa de um batalhão de artistas, historiadores e sociólogos. O poeta, que é um inquiridor, vai procurá-lo na língua viva, em certo tom menor e familiar em discordância com o padrão consagrado ou oficial, e na correspondente impressão de naturalidade e desvio. A gama das instâncias achadas ou construídas em torno da idéia-mestra é de profundo interesse, escapando à circunscrição convencional e amena do assunto.
Sendo muito ilustrativas, as peças não são entretanto meras ilustrações, pois têm sempre chispa própria, que a leitura inteligente faz saltar. A dissonância distintiva encontra-se onde menos se espera, graças ao ouvido fino do artista, e graças também à história madrasta, que a veio renovando na prática. E por toda parte, em lugar de superá-la, a ponto de o mistério não estar mais na própria idéia, mas nas razões de sua ubiquidade. Assim, a simplificação de vanguarda está aí, no seu radicalismo, embora em versão de segundo tempo, sem perspectiva revolucionária, já não como projeção explosiva de um mundo mais transparente e aceitável. Ela agora é resultado da escuta, que a identifica de facto e reconhece nela, humildemente, o pouco a que acabamos reduzidos numa espécie de implosão de identidade que é sinal dos tempos.
Além de princípio de escolha, a informalidade funciona como um princípio de recusa, dotado de consequência estrutural. Sob pena de desafinação, ficam à margem ou são relativizadas as irradiações do dever, no discurso e nos atos. Observada com rigor, a determinação imprime ao todo a sua fisionomia histórico-social inconfundível. A nota do imperativo interior nem por isso desaparece: excluída como assunto, ela volta na objetividade severa do trabalho artístico e em suas descobertas, além de planar como uma assombração incômoda, de outros hemisférios onde se supõe que ela vigore. Dito isso, sendo embora consistente, a figura do conjunto não existe com corpo auto-suficiente, em espaço separado. A maior parte das coisas e das ações que a compõem -a parte modernizada, quer dizer, sem mancha colonial visível- não tem corte próprio, ou melhor, tem o corte do mundo de que discrepa, tudo dependendo apenas de diferenças de funcionamento, que ocasionam uma espécie de cor local abstrata.
Díspares e correlativos, os universos sociais de periferia e de centro se interpenetram. Ainda assim, qualquer tropeço aqui não seria menos perceptível e artisticamente fatal do que em prosas muito características e apartadas do uso dominante, como -suponhamos- "Macunaíma" ou "Grande Sertão: Veredas". É como se, a despeito de si mesmo, o país modernizado desenvolvesse um feitio fora de esquadro, à maneira do regionalismo, no presente do mundo presumidamente homogêneo. A disciplina literária requerida por essa diferenciação é da maior sutileza.
As ironias da composição querem estar à altura das decepções trazidas pelo curso real das coisas. A tarefa figurativa e as conclusões desabusadas do realismo oitocentista funcionam como patamar de lucidez, embora condensadas ao extremo, além de afastadas do dinamismo interno que noutro momento -em especial no pré-64, nos anos da radicalização do populismo desenvolvimentista- elas alimentaram.
Os miniepisódios aspiram a certa representatividade solta, com um tanto de capital e província, Brasil e Europa, casa-grande e senzala, família tradicional e anonimato urbano, decoro e barra-pesada etc., sobre fundo elíptico de questão social pendente. Respeitada essa ordem de proporções, os poemas poderiam ser outros, desde que o toque da informalidade entre em constelação com as variantes vizinhas, fazendo com que o todo tenha não apenas a tônica de um denominador comum, mas a envergadura material e o sem-número de dimensões de uma formação histórica e de um universo romanesco. A nota nova no caso não vem nos grandes contrastes, bem conhecidos, mas em certa modificação nos nexos, que a tensão transformadora e integradora -a dialética- parece ter desertado. O presente ampliou-se no espaço, no tempo e na ordem social, incluindo elementos a que ainda há pouco se opunha ou que imaginava superar. Algumas falas remontam ao fim da escravidão, outras, à República Velha, muitas enfim ao país modernizado, do qual fazem parte os nossos anos de chumbo e o posterior período de abertura política ("Na época das vacas magras/ redemocratizado o país", conforme explica um ex-governador) (40). Apesar da diversidade, fácil de ordenar segundo a sucessão dos períodos históricos, o acento está na constante, suscitando o sentimento contra-intuitivo -a constatação?- da mudança que não fez diferença. O passado não passou, embora já não ajude -como ainda outro dia- a inventar o futuro, que não está à vista. A sua persistência marca o presente como distinto, porém mais em falta do que original, ou atrasado, ou em via de recuperação. Ao passo que o presente faz ver no passado sobretudo o prenúncio do impasse atual, impugnando as evidências externas de progresso. Analogamente, o jogo entre informalidade e norma perdeu o vetor temporal, ligado às promessas da modernização. A informalidade não está vencida, a norma não está no futuro ou, ainda, a norma é que pode ser coisa do passado, enquanto a informalidade se instalou a perder de vista. À primeira leitura, por exemplo, induzida pelos poemas contíguos, o "Mas se todos fazem" parece um argumento exótico, de outro tempo, permitido pela redoma provinciana; basta entretanto repeti-lo com voz refletida, de sonegador de impostos, suponhamos, para que a proteção da distância e do riso se desfaça, reaproximando e despolarizando o passado e o presente, a província e a capital, a ex-bobinha e o esperto homem de bem. Uma vez afrouxada a tensão superadora, o contraste com as nações-modelo muda, mas não se atenua (isso enquanto o poeta não dá a palavra a estas últimas, que então se desqualificam por seu lado, complicando de vez o horizonte, pois mesmo assim não deixamos de estar a reboque). Observe-se ainda que o fundo estático dessa dinâmica é um parente silencioso dos achados escandalosos do tropicalismo de três décadas atrás. Estes fixavam consequências estéticas da contra-revolução de 1964 e da modernização conservadora subsequente. A imagem-tipo inventada naquela ocasião, sobretudo em cinema, teatro, canção e artes gráficas, alegorizava o absurdo brasileiro, entendido como a reprodução modernizada do atraso social ou como um amor incompreensível pela reincidência. A sua fórmula metodizava a vizinhança incongruente e despolarizada entre elementos do universo patriarcal-personalista -ultrapassado, derrisório e mais vivo que nunca- e padrões internacionais de modernidade -igualmente discutíveis (41). Um lado-a-lado pitoresco, inglório e verdadeiro, sem ponto de fuga pela frente, dizendo a seu modo que a hipótese de uma articulação histórica em plano superior saíra de cena. O paralelo das receitas artísticas e dos momentos respectivos merece reflexão.

Estatuto anfíbio
As operações formais com que Francisco Alvim trabalha são incisivas. Por depuração, isolamento na página, justaposição, recorte, desmembramento analítico etc., um repertório de cenas e falas marcadamente brasileiras é sujeitado a coordenadas imprevistas, de alcance e teor problemático alto, armadas a partir dele mesmo. O desnível interno causado pelo procedimento é a dificuldade dessa poesia fácil mas substanciosa. Em lugar de versos e estrofes, e da correspondente tradição de ofício, entra o tino para a língua viva e a sua apresentação escrita; ou, ainda, o ouvido para as ironias objetivas da fala cotidiana, apuradas até o osso -o que em fim de contas não é nada mais, e nada menos, que a consciência histórica esteticamente apurada. O que está em curso é a desconvencionalização da forma, o seu desconfinamento e a dispensa de sua componente esotérica, a bem de um estatuto aberto e anfíbio, em que o processo poético e ordem real estão em ligação ativa. O impulso não é de renúncia à forma e a sua eficácia nem a seu requinte, mas de atualização, como aliás indicam a nitidez dos procedimentos e o gume novo quanto a conteúdos e materiais.


A informalidade não está vencida, a norma não está no futuro ou, ainda, a norma é que pode ser coisa do passado, enquanto a informalidade se instalou a perder de vista


Assim, o artifício formal a) desencrava e tensiona as falas, transportando-as para um espaço de liberdade combinatória; b) traz à berlinda o seu tom nacional, metade reconhecimento de uma nota familiar, metade opção alegorizante e fabricação de identidade; c) descobre nelas uma complicação real inadvertida, a que a continuidade com o poema-piada modernista multiplica a irradiação literária e cultural; e d) alimenta o sentimento de estranheza a respeito, uma consciência diferencial cujo campo é propiciado pelo adensamento contemporâneo da experiência internacional. Arejadas pela alternância de prismas, com parada obrigatória nos perfis localista, nacional e cosmopolita, com sinal positivo ou negativo segundo o ângulo do momento, as falas de uso comum adquirem uma reverberação vertiginosa, que dispensa a metáfora e que é metáfora e poesia ela mesma. Com horizonte diverso, as marcas do ready-made e do pop são notórias. No caso, porém, os objetos quaisquer a contemplar não se referem à civilização industrial, mas ao funcionamento próprio à sociedade periférica, fixado enquanto tal, como foco moderno de perplexidade. "A poesia existe nos fatos" (42).
Nada mais social, como se sabe, que a naturalidade. Esta supõe o à-vontade com o próximo, com a linguagem e com a natureza, exterior e interior, que não cai do céu. Ela não significa o mesmo em esfera chegada e em âmbito nacional, onde envolve sempre questões de classe e hegemonia. Aqui, as superações a que deve o desembaraço e o valor dizem respeito à estrutura cindida da sociedade moderna, com as dissociações correspondentes no campo da cultura e no trato com a natureza. Assim, longe de ser um registro retórico entre outros, ela é um resultado substantivo, seja porque aparou arestas paralisantes -isto é, civilizou-, seja porque encobriu antagonismos sociais. No Brasil, as tentativas de obtê-la tiveram de se haver com as feridas deixadas pela exploração colonial, que a nação independente não foi capaz de regenerar, salvo numa ou outra prática, uma ou outra instituição, e em algumas obras de arte e construções intelectuais. Em versões várias, a idéia utópica (ou conservadora) de modernizar e estetizar a informalidade, para que ela faça frente, de um mesmo golpe, à desgraceira colonial e aos malfeitos de classe do capitalismo, ainda por vir, foi uma bandeira dos modernistas. Baste lembrar a obra de Gilberto Freyre, no que tem de invenção civilizadora e de ideologia regressiva. A seu modo, a poesia de Francisco Alvim repassa o mesmo universo, agora objetivado pela redução a minimodelos e ampliado pela inclusão inovadora e contra-ideológica de âmbitos negativos, ligados à contravenção, à ditadura e ao Estado. A reconfiguração do campo faz com que a naturalidade infalível do poeta encene o esgotamento, a incapacidade de regeneração desse mundo, que não obstante continua a crescer.
Numa resenha de primeira hora, escrita com propósito demolidor, um crítico apontou a ligação entre a poesia de Alvim e uma linha de reflexão sobre o Brasil, devedora do modernismo e retomada na elaboração estética e teórica de grupinhos universitários politizados (43). A observação é exata, mas a objeção surpreende.
Não convém à poesia pensar sobre o país? A intimidade do poeta com o debate social e político diminui o alcance do que escreve? A tentativa de dar consequência ao universo modernista em circunstâncias mudadas é em si mesma um defeito? É claro que seria possível considerar que o "sentimento íntimo de seu tempo e de seu país", recomendado por Machado de Assis e intensamente cultivado neste "Elefante", não passe de uma mitologia saudosista de poucos. Haveria aí uma certa verdade se a nação tivesse mesmo deixado de existir, o que não é evidente, nem tira valor ao desejo histórico de que ela existisse. Aliás, o enfraquecimento do pulso nacional não deixa de ser matéria poética e de reflexão por sua vez.
Dito isso, há outra vertente no livro, composta pelos poemas propriamente líricos, a que nada do que viemos dizendo se aplica, ao menos diretamente. Aqui a mitologia e a linguagem são pessoais, a intenção é expressiva, a potência transfiguradora da imaginação existe em alto grau e o assunto é a primeira natureza, e não a segunda. Ou seja, trata-se de luz e sombra, água, areia e vento, animais e paisagens, mais que do sistema de nossos constrangimentos sociais. São poemas difíceis, de grande beleza, que requerem uma segunda rodada de comentários. Por agora não iremos além de algumas indicações.
Tudo está em entender as razões que levaram o poeta a combinar formas de imaginação tão discrepantes. É como se ele dissesse que longe do chão comum e das anotações realistas o seu vôo lírico gira em falso, ou melhor, que o ambiente formado pela realidade corrente é necessário à integridade do seu lirismo, ou ainda, que este deve ser visto como personagem do outro universo, com o qual forma uma unidade. Se for assim, qual o nexo entre esses dois mundos, de tonalidade tão díspar? O que dizem um do outro? A título de sugestão, perguntemos pela relação que possa existir entre o universo social rebaixado e as visões do elefante, do rinoceronte ou do mar, gigantes cuja escuridão tem luz, cuja massa imponente e una faz bem e cuja arremetida parece mais destinada a fecundar e a reparar que a destruir. Também o sofrimento moral intenso que domina os poemas finais pode ser visto como parte do mesmo universo social, neste caso como a sua verdade. Assim, a vertente lírica do livro ocuparia no conjunto um lugar de revelação análogo ao que tem no romance realista populoso a aventura das personagens centrais, a qual corresponde aos constrangimentos das secundárias, mesmo quando umas e outras não sabem disso.
Para concluir, a poesia de Francisco Alvim é pouco posterior ao concretismo, com o qual tem alguns impulsos em comum, solucionados de modo diferente. Penso na busca de unidades mínimas e na sua utilização construtiva. Centrado na fala, e não na palavra, o seu minimalismo dá campo ao tempo específico de uma formação social, o mesmo que seus predecessores imediatos aboliram. Há pouco Flora Süssekind escreveu, com toda razão, sobre a grande presença do tempo na poesia espacializante de Augusto de Campos. Por exemplo, o jogo de variações gráficas sobre a página, que permite à palavra "pluvial" transformar-se na palavra "fluvial" e vice-versa, envolve uma certa experiência de tempo. O que Flora poderia acrescentar é que se trata de um tempo reversível, do qual está excluída a história, ou cujo conteúdo histórico é esta ausência (44).
Como os concretos e a geração posterior, Francisco Alvim foi à escola de João Cabral, com quem aprendeu a disciplina da brevidade, da variação e da construção límpida. O lugar ocupado pela estruturação entretanto não é o mesmo. Em João Cabral ela é o produto da aplicação concentrada e rigorosa da vontade construtiva. Na poesia de Chico, é o resultado da escuta, que decanta no real a ordem -de rigor cabralino- a que aspirava, na qual entretanto nos reconhecemos sem triunfo, pois trata-se de um problema. O despojamento despiu-se da ostentação.
Até onde sei, Francisco Alvim é o poeta de minha geração que mais profundamente assimilou a lição dos modernistas. A mudança de horizonte entretanto é completa. Basta pensar no deslumbramento com que estes descobriram, assumiram e quiseram transformar em saída histórica as nossas peculiaridades sociais e culturais, "tão Brasil" (45). Em "Elefante" elas existem, estão sistematizadas, têm uns poucos e finos momentos de encantamento lúdico, mas no essencial formam a nossa pesada herança político-moral. Como diz o próprio Chico, trata-se de Oswald revisto à luz de Drummond, ou do encontro com o problema que estava escondido no pitoresco.

Este artigo é uma versão desenvolvida de "Elefante Complexo", publicado no "Jornal de Resenhas", na Folha de 10/2/2001.



Texto Anterior: O país do elefante
Próximo Texto: Saiba quem é Roberto Schwarz
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.