São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+(d)ebate

Mães coragem

Disputa sobre dupla maternidade coloca em questão os limites da reprodução assistida

EUCLIDES SANTOS MENDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O pedido de dupla maternidade encaminhado à Justiça de SP pelo casal homossexual Adriana Tito Maciel, 26, e Munira Kalil El Ourra, 27, há pouco mais de um mês, pode abrir precedente inédito no Brasil.
Para a professora de sociologia na Universidade Estadual Paulista, em Araraquara, Lucila Scavone, as duas mulheres "podem ser consideradas mães do ponto de vista psíquico-biológico-social".
Autora de "Dar a Vida e Cuidar da Vida" e organizadora de "Tecnologias Reprodutivas" (Unesp), Scavone diz a seguir que as tecnologias conceptivas permitem uma nova configuração da maternidade e "abrem possibilidades para a filiação com características biológicas entre casais homossexuais".

 

FOLHA - Neste caso, é possível considerar, do ponto de vista biológico, a dupla maternidade?
LUCILA SCAVONE
- Sim, se pensarmos que a mãe portadora estabelece não só uma relação afetiva com a criança que cresce em seu ventre, mas também a alimenta com seu sangue. As duas podem ser consideradas mães do ponto de vista psíquico-biológico-social: uma doou os óvulos, a outra carregou e alimentou em seu ventre essas crianças. Nesse ponto, os limites entre o social e o biológico são tênues.

FOLHA - E quais as implicações?
SCAVONE
- Poderíamos dizer que não há mais uma identidade da maternidade ligada a uma só mãe biológica. Assim como a ciência e a tecnologia oferecem essa possibilidade, a reivindicação de dupla maternidade é válida, embora possamos discutir o outro lado da questão.

FOLHA - Que escolhas e conflitos marcam o desenvolvimento das tecnologias reprodutivas?
SCAVONE
- Comecemos com os conflitos, onde aparece este outro lado a que me referi antes: há uma valorização do(a) filho(a) do próprio sangue, e isso pode fortalecer atitudes e comportamentos sociais eugênicos. Há, também, uma revalorização da maternidade e da paternidade, com todas as consequências sociais desse fato.
Por outro lado, há sempre um risco maior para a saúde das mulheres e um sofrimento maior, já que todo o processo de reprodução assistida se passa em seu corpo.
No caso de duas mulheres, haverá também uma diferença para aquela que carrega a criança no processo. Há, também, a possibilidade de que a educação da criança seja partilhada com mais igualdade.
Se a escolha de procriar já é, na sociedade contemporânea, uma escolha planejada e com muitos conflitos, com as novas tecnologias essa escolha se torna ainda mais conflituosa.

FOLHA - A legislação tem acompanhado este processo?
SCAVONE
- Sim, principalmente nos países do Norte. No Brasil, há casos de jurisprudência, mas não há uma legislação que regulamente.

FOLHA - Quais as consequências da popularização de técnicas de reprodução humana?
SCAVONE
- A banalização de um procedimento que foi planejado para a esterilidade pode tornar-se regra em um futuro talvez não tão distante. Uma das consequências é a mercantilização da vida

FOLHA - Como vê o caso do menino de oito anos que tem a sua guarda disputada pelo pai norte-americano e pelo padrasto brasileiro e cuja mãe morreu em agosto de 2008?
SCAVONE
- Neste caso, a criança foi trazida para o Brasil sem a autorização do pai.
Acho que é legítimo que ela viva com seu pai biológico, pois está ligada a ele por um laço afetivo e histórico mais longo do que com o pai adotivo.
O problema é que não há, para essa criança, a possibilidade de escolha.


Texto Anterior: +(s)ociedade: O chique na berlinda
Próximo Texto: Doador de espermatozóide é anônimo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.