São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007

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A ética da fome

A professora Sharman Apt Russell diz que 33 milhões de pessoas sofrem de "insegurança alimentar" nos EUA e também fala do sentido político da privação de alimentos

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Apesar da tecnologia e da pujante indústria mundial de alimentos, apesar da pandemia de obesidade, a fome ainda é uma ameaça -até no país mais rico do mundo.
Sharman Apt Russell, 52, que leciona na Universidade do Oeste do Novo México, nos EUA, diz em entrevista à Folha que custou a acreditar que, em seu Estado, 20% das crianças sofrem de insegurança alimentar.
Formada em conservação e recursos naturais, a autora mescla abordagens científica, histórica e literária em livros sobre rosas, borboletas e, agora, fome.
"Hunger - An Unnatural History" [Fome - Uma História Não-Natural, Basic Books, 262 págs., US$ 23,95, R$ 47] passa por preocupações contemporâneas, como obesidade e anorexia, e pré-históricas -como a mente humana é "programada" para a gula, para garantir um estoque de nutrientes- para chegar a um assunto fora de moda: como é possível que ainda existam pessoas que passam fome sem ter optado por ela.

 

FOLHA - Uma parte de "Fome" é sobre os cortadores de cana no Brasil. Que podemos aprender com essas populações?
SHARMAN APT RUSSELL -
É a parte da antropologia da fome. Descrevo a pesquisa da antropóloga Nancy Scheper-Hughes [em "Death without Weeping", Morte sem Pranto, University of California Press], que trabalhou no Brasil a partir dos anos 1960 e lançou seu livro em 1992.
Analisando os efeitos da fome sobre o corpo, ela descreve uma cultura da fome e questiona se a cultura muda quando muitas pessoas passam fome.

FOLHA - Como a sra. responde a essa questão?
RUSSELL -
A cultura muda, mas o fato de muitas pessoas mudarem não implica você também mudar. Há tendências gerais. Scheper-Hughes descreve bem a situação em que muitas crianças são subnutridas e têm baixa expectativa de vida: o laço natural entre mãe e filho pode ficar bloqueado.
Nesse caso, a mãe contém seu corpo e seu afeto enquanto aguarda para ver se a criança irá vingar.
O que se vê são funerais em que as famílias estão distantes; há morte, mas não há pranto. Infelizmente, essa cultura acaba reforçando o problema, pois uma criança em risco, sem cuidado ou nutrição, só fica ainda mais em risco.
A fome é tão forte que afeta o relacionamento com o filho, um dos mais básicos.

FOLHA - E como chegamos a essa situação no século 21?
RUSSELL -
Fome é uma questão de pobreza, desigualdade e distribuição de riquezas; o capitalismo e as estruturas político-econômicas encorajam a pobreza, em certa medida, e ignoram, assim, a fome das pessoas.
As pessoas precisam pensar mais na fome; quem não tem fome e pensa que não está cercado de gente com fome -mas está- acaba não pensando nela.

FOLHA - Qual é a tese de seu livro?
RUSSELL -
A premissa é que a fome involuntária é moralmente condenável. Trato da responsabilidade de criar um mundo em que todos tenham comida.
Depois de escrever esse livro, passei a observar a situação de minha cidade, Silver City. Das crianças do Novo México, 20% perdem alguma refeição por conta da pobreza. Mesmo depois de escrever o livro, custei a acreditar que nos EUA houvesse crianças com fome.
Não chega a ser desnutrição, mas os adultos não provêm todas as necessidades.
Nos EUA, 33 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar. Não é caso para um programa Fome Zero, como no Brasil, mas algumas famílias têm dificuldades no fim do mês.
Onde quer que seja, em Paris, nos EUA ou no Brasil, é só olhar em volta, há fome.

FOLHA - Por que os primeiros capítulos de "Fome" têm nomes como "18 horas" e "36 horas", chegando a "30 dias"?
RUSSELL -
A estrutura do livro segue a experiência de um corpo comum ao longo do tempo em jejum. É uma forma diferente de chegar aos temas da desnutrição e da morte.
Trato da fome voluntária (para perder peso, em experimentos científicos, para se aproximar de Deus, por razões políticas) para chegar àqueles que não escolheram sentir fome.
Quando se perde uma refeição, quando se passa um ou dois dias sem comer, o corpo reage indignado. As pessoas ficam irritadas, sentem tonturas, têm reações fortes.
Quando acabam as reservas do corpo, inicia-se uma "segunda marcha", autofágica, absorvendo a glucose e os ácidos graxos do próprio corpo; os sistemas não-vitais se fecham, de modo que os hormônios param de avisar que é preciso comer.
Mas o metabolismo da desnutrição crônica é diferente: há a "neurose da desnutrição", personalidades mudam. Depende também das condições. Jejuar descansando é uma coisa; outra coisa é ver seu filho sofrer com você, o que produz um efeito psicológico. E há os artistas da fome, que exibem seus jejuns.

FOLHA - Qual é o seu propósito ao comparar "artistas da fome" às pessoas comuns?
RUSSELL -
Há quem jejue para emagrecer e ficar em forma. A anorexia é uma forma de a pessoa controlar seu corpo, é uma maneira pela qual uma jovem pode se sentir no comando.
Comer demais seria outra. Interessam-me as diversas formas de usar a fome. Outro exemplo é como pessoas são mortas pela fome. E [o líder indiano] Mahatma Gandhi [1869-1948] mudou a vida de milhões de pessoas por meio de suas greves de fome.

FOLHA - Há hoje mais greves de fome do que nunca?
RUSSELL -
Sim. Houve durante a Idade Média, como na Irlanda. Mas também na Índia. Isso fazia parte do tecido social, pois se lutava contra as injustiças.
As "sufragettes" [defensoras do direito ao voto feminino], no final do século 19, retomaram essa tradição.
Com a maior atenção da imprensa, o poder da greve de fome aumentou. O século 20 foi o "Renascimento" das greves de fome. E hoje há delas em todo lugar, é uma maneira forte de se manifestar. Em prisões de todos os lugares há greves de fome.
Quando não se tem nenhum poder, resta-lhe seu próprio corpo e sua disposição a morrer. É uma maneira de se fazer ouvir.

FOLHA - Por que há uma pandemia de obesidade sem precedentes?
RUSSELL -
Somos programados para comer pela sobrevivência. E ainda não estamos bem adaptados ao modo moderno de comer, com essa variedade disponível de comida engordativa.

FOLHA - E quanto à anorexia?
RUSSELL -
Ninguém sabe. Há estudos que relatam casos de anorexia em lugares onde não havia histórico de sua ocorrência, como nas ilhas da Polinésia.
Outros acham que a anorexia sempre esteve presente, e a cultura apenas a encorajou.

FOLHA - As pesquisas sobre metabolismo terão novo impacto na diminuição do sobrepeso?
RUSSELL -
Não creio. Não são pílulas que resolverão. Precisaremos voltar ao básico: exercício contra o sedentarismo e moderação na alimentação.
É básico, mas são grandes mudanças culturais: mexer o corpo, sair de casa.

FOLHA - As mães, ao invés de dizer aos filhos "não desperdicem comida", terão de dizer "não comam tudo"?
RUSSELL -
Ou não servir comida demais, só para começar. Cresce muito a responsabilidade dos pais em relação a nutrição e saúde -e a dar o exemplo. Isso não será ensinado pela TV.

FOLHA - Os filmes vão ter de restringir as cenas de comilança da mesma maneira que se restringem as cenas com cigarro? RUSSELL - Não. Se comêssemos mais vagarosamente, apreciando a preparação... A comida não é o problema. Prefiro ver cenas de boa comida a ver cenas com garotas magricelas demais.

FOLHA - Que acha das normas espanholas de só permitir que desfilem modelos com índice de massa corporal maior ou igual a 18?
RUSSELL -
É sempre triste que precisemos regulamentar algo ditado pelo senso comum. Os empregadores deveriam se preocupar com elas. Mas, se o mercado não faz isso sozinho, então faz sentido.


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