São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007

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Guerras culturais

Distúrbios na Estônia devido à retirada da estátua do "Soldado de Bronze" mostram as leituras paradoxais da história

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Os leitores da Folha devem ter lido reportagens sobre os tumultos na Estônia em abril passado. Promovidos por pessoas de etnia russa -com o apoio de Moscou-, os tumultos se seguiram à remoção do chamado "Soldado de Bronze" de um parque em Tallinn, capital da Estônia.
A estátua, que foi erguida em 1947 e agora transferida para um cemitério, representa um soldado do Exército Vermelho e personifica duas narrativas históricas muito diferentes.
Para os russos, incluindo as muitas pessoas de origem russa que vivem na Estônia hoje, a estátua simboliza a libertação do país do "fascismo" pelos comunistas em 1940.
Para muitos estonianos, porém, o que a estátua simboliza é a incorporação forçosa da Estônia à União Soviética naquele ano.
Essa "guerra da estátua" é a última de muitas. As estátuas freqüentemente ocuparam o centro de conflitos políticos, como pretexto, foco ou símbolo de disputas. Por exemplo, a estátua de Giordano Bruno no Campo dei Fiori, em Roma, hoje um lugar pacífico onde turistas se sentam para comer uma fatia de pizza, foi erguida no século 19 no local onde Bruno foi queimado por heresia. A estátua foi construída por um governo anticlerical para irritar o papa.
A violência contra estátuas muitas vezes sucedeu ou acompanhou outros atos violentos. Durante a Revolução Americana de 1776, por exemplo, a estátua do rei Jorge 3ø em Nova York foi derrubada de seu pedestal.
O mesmo aconteceu com duas estátuas do rei Luís 14 em Paris, em 1792, durante a Revolução Francesa. Novamente, quando a Comuna revolucionária dominou Paris, em 1871, a estátua de Napoleão sobre uma coluna, na Place Vendôme, foi removida, por sugestão do pintor Courbet (que depois foi obrigado a pagar pela recolocação da estátua).
Na segunda metade do século 20, os ataques a estátuas, fossem eles considerados "vandalismo" ou, de modo mais neutro, "iconoclastia", tornaram-se cada vez mais comuns.
Nos países comunistas, um movimento desse tipo começou após a morte de Stálin e cresceu depois de 1989.
O enorme monumento a Stálin em Praga foi explodido em 1962, por ordem de Khruschov, enquanto o de Budapeste já havia sido derrubado e arrastado pelas ruas em 1956, durante a Revolução Húngara.
Depois foi a vez de Lênin. Sua estátua foi derrubada em Bratislava (1989), Bucareste e Debrecen (1990), Vilna (1991), Berlim (1992) e assim por diante.
Mais recentemente, em 2003, a estátua de Saddam Hussein foi derrubada na Praça Fridous em Bagdá. Colombo teve a mesma sorte em Caracas em 2004: sua estátua foi removida e pendurada de cabeça para baixo em uma árvore no "Dia da Resistência Indígena", antes chamado "Dia do Descobrimento da América".

Destruição simbólica
Esses movimentos de iconoclastia podem ser descritos como atos de destruição simbólica, a destruição de um passado que as pessoas preferem esquecer.
Eles revelam não apenas as atitudes políticas predominantes em um determinado lugar e um determinado momento -hostilidade ao comunismo, ditaduras, colonialismo- como também o poder das imagens.
A construção de monumentos forma uma parte importante do que poderíamos chamar de fabricação da memória coletiva.
Monumentos como os cavaleiros de bronze encontrados em tantas cidades européias e sul-americanas (Pedro, o Grande em Moscou, Garibaldi em Roma e outras cidades italianas, San Martín em Buenos Aires, Bento Gonçalves em Porto Alegre) são representações congeladas, parte do que se poderia chamar de encenação da memória.
Parte da força dos monumentos públicos vem de que -apesar dos muitos conflitos na época em que foram erguidos- mais tarde eles parecem articular um consenso.
No entanto, como demonstra a iconoclastia de maneira dramática, memórias de conflito levam a conflitos de memória. Erguer estátuas e removê-las exemplifica e personifica narrativas rivais, como no caso estoniano.
O mesmo ocorre com o que poderíamos descrever como a "reutilização" de monumentos pelo público ou partes do público. Por exemplo, uma estátua oficial pode se tornar o local de grafites subversivos que oferecem uma narrativa não-oficial.
Depois de 1989, a inscrição "Proletários de todo o mundo, uni-vos!", no monumento a Marx em Moscou, foi estendida para dizer "uni-vos na luta contra o comunismo!". Em 2004, o pedestal da estátua de Colombo em Caracas foi coberto de grafites acusando Colombo de genocídio.
O que aconteceu em Tallinn é um caso recente de uma situação recorrente, um conflito político que assume uma forma visual dramática.
As "guerras culturais" desse tipo são inevitáveis em nossa era de políticas de identidade? Tendem a se tornar cada vez mais comuns no futuro? Seria possível fazer algo para reconciliar adversários ou negociar soluções?
A idéia de que os conflitos sobre símbolos como estátuas e bandeiras podem ser administrados, senão resolvidos, encontra apoio na história recente da Espanha, da Hungria e da Índia.
O Valle de los Caídos, no vale de Guadarrama, perto de Madri, contém um monumento construído por ordem do general Franco para comemorar os mortos na Guerra Civil Espanhola.
Originalmente, foi visto como um monumento aos vitoriosos, os nacionalistas, mas desde a morte de Franco passou a incluir os republicanos derrotados.

Parque especial
Em Budapeste, depois da queda do regime comunista, em 1989, as estátuas de importantes membros do partido foram retiradas das ruas, mas hoje são exibidas em um parque especial, inaugurado em 1992.
Um exemplo de administração de conflito ainda mais notável também está em Nova Déli. Depois da revolta de 1857, que os britânicos chamaram de "Motim Indiano", enquanto os indianos a viam como uma luta pela independência, foi erguido em 1863 o Memorial do Motim, dedicado à memória dos soldados britânicos e seus "leais" aliados indianos que reprimiram a revolta.
Poder-se-ia esperar que esse memorial tivesse sido derrubado após a independência, em 1947.
Mas uma segunda inscrição foi acrescentada em 1972, em memória dos combatentes da liberdade indianos.
Assim, o passado foi renegociado e o significado do monumento se tornou mais abrangente, numa tentativa de reconciliar os dois lados do conflito. Se tal solução de conflito político é ou não possível no caso do "Soldado de Bronze" de Tallinn, o exemplo do memorial de Nova Déli nos dá esperança para o futuro.

PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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